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Pacto de cooperação nuclear, os segredos da paz no Cone Sul

Vinícius Gorczeski


Odilon Marcuzzo do Canto, o secretário da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), com sede no Rio de Janeiro, recebeu, no mês passado, um e-mail dos Estados Unidos com uma revelação surpreendente.

Nele, Paul Findley, um americano de 94 anos, senador pelo Partido Republicano pelo Estado de Illinois entre 1961 e 1983, narrava seu papel breve, mas único, no "grande drama" que foi a criação da ABACC, constituída em 1991 com o objetivo de evitar uma corrida nuclear entre a Argentina e o Brasil rumo à bomba atômica.

O e-mail de 5.368 palavras tinha como ponto de partida o ano de 1977, quando Findley e outros congressistas americanos fizeram um tour diplomático pela América do Sul. Dois anos antes, o Brasil fechara um acordo nuclear histórico com a Alemanha.

Pelo acordo, os alemães exportariam a tecnologia necessária para o Brasil dominar uma etapa industrial que transforma o urânio em combustível nuclear para ser usado nas usinas de Angra dos Reis. Apesar de o Brasil insistir que seus planos eram pacíficos, os americanos e os argentinos, que eram mais avançados no domínio da tecnologia nuclear e tinham em funcionamento a usina de Pilcaniyeu, no sul da Argentina, receavam que o próximo passo dos brasileiros fosse a fabricação da bomba.

Os argentinos também diziam que seus planos nucleares eram pacíficos, mas o temor de uma corrida na América do Sul pela construção da bomba tinha alguns fundamentos.

Os dois países, na época, eram governados por ditaduras militares. Ambos recusavam-se a aderir ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares de 1968. Para piorar, os militares dos dois lados alimentavam desavenças, como em torno da construção da usina hidrelétrica de Itaipu, na fronteira dos dois países. Findley terminou sua viagem em Brasília e Buenos Aires.

A diplomatas dos dois países – e de boca – ele sugeriu a fiscalização mútua de instalações nucleares. Na Argentina, a recepção foi mais calorosa. No Brasil, nem tanto.

Ao voltar para Washington, Findley, de forma desvinculada do governo do então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, resolveu insistir em sua proposta de uma parceria entre Brasil e Argentina: por que ambos não renunciavam, publicamente, às suas intenções de fabricar uma bomba nuclear? Por que cientistas argentinos e brasileiros não fiscalizavam suas usinas nucleares de forma recíproca, livre e recorrente? Findley avaliava que o pacto renderia aplausos mundiais às duas nações, por se tratar de uma iniciativa sem nenhuma mediação global.

De quebra, o acordo poderia levar a uma parceria comercial entre os países. Findley detalhou suas ideias numa carta, datilografada sob o brasão do Congresso americano e enviada, em setembro de 1977, ao então vice-presidente do Brasil, Adalberto Pereira, e ao presidente da Argentina, Jorge Rafael Vi-dela.

A carta de Findley ficou esquecida até agora. Acaba de ser revelada graças a uma extensa pesquisa do especialista em relações internacionais Matias Spektor, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), do diplomata argentino Rodrigo Mallea e do inglês Nicholas Wheeler, professor da Universidade de Birmin-gham.

Parte da pesquisa se tornou o livro Origens da cooperação nuclear – Uma história oral crítica entre Argentina e Brasil, em que os três autores mostram como os Estados Unidos, a partir da carta de Findley, enquanto publicamente pressionavam os dois países a arrefecer seus planos nucleares, plantaram em vários momentos a ideia que resultaria na ABACC.

Tudo de forma discreta e secreta – mas onipresente. Seria a vanguarda da diplomacia pautada na criação de instituições para fomentar a confiança entre os países, um princípio que o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, está tentando recuperar agora no atual acordo nuclear com o Irã.

Em sua pesquisa, Spektor, Mallea e Wheeler desencavaram centenas de documentos secretos que mostram como a diplomacia americana fez inúmeras tentativas de estabelecer um acordo entre Brasil e Argentina nos termos propostos por Findley – uma ideia, desde o início, recebida com mais simpatia pelos argentinos. "Não sei explicar por que o Brasil recuava. Talvez por causa das falhas do país em avançar no campo nuclear", disse Findley a ÉPOCA.

"Todo governo tem gente que quer iniciar uma guerra." Por causa das reticências dos brasileiros, a década de 1970 terminou sem avanços. Uma reviravolta aconteceria em 1980. A lei americana de não proliferação de materiais nucleares entrou em vigor. Os Estados Unidos deixaram de enviar tecnologia a países não signatários do tratado, caso do Brasil e da Argentina.

Os dois países, pela primeira vez, se inclinaram a uma cooperação pacífica na área nuclear. Em janeiro de 1984, o embaixador da Argentina em Washington, Garcia Del Solar, recebeu uma visita ilustre.

O secretário de Estado americano George Shultz – que faria uma viagem ao Brasil na sequência – apareceu com uma ideia com contornos de novidade.

Shultz disse que os Estados Unidos viam Brasil e Argentina de forma equivalente. E que haveria uma "melhora relevante" nessa relação se o Brasil e a Argentina declarassem que não fabricariam a bomba atômica. Disse ainda que, se a Argentina propusesse a criação de um órgão que fiscalizasse as instalações nucleares de ambos os países, a ideia seria bem-vista tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.

Concluiu que haveria mais avanços – ainda – se a proposta não fosse interpretada como pressão americana. Essa seria a primeira vez que o governo americano, representado por Shultz, mostrou que tinha encampado as ideias do acordo proposto por Findley. Alguns meses depois da visita, em 1985, a Argentina já tinha pronta uma proposta de acordo nuclear – nos termos defendidos por Findley e Shultz – para levar para o Brasil.

Os regimes militares dos dois países já estavam em retirada e os civis assumiam o poder. Diante da reticência brasileira em se pronunciar sobre as propostas, o presidente da Argentina, Raúl Alfonsín, apelou publicamente por um acordo ao então presidente eleito do Brasil, Tancredo Neves.

Mas Tancredo morreu e Sarney assumiu a Presidência. Ainda em 1985, os diplomatas da Argentina arquitetaram um plano: aproveitar um encontro entre os chanceleres das duas nações para entregar as propostas de forma institucional e cobrar respostas. Mas antes que houvesse o encontro, o ministro do Exército de Sarney, o general Leônidas Pires, defendeu a fabricação da bomba atômica.

Pouco depois da declaração de Pires, um avião militar brasileiro desviou de rota e sobrevoou as instalações nucleares de Pilcaniyeu. Alfonsin tomou conhecimento do ocorrido, mas não se abalou. Ele aproveitaria seu encontro com Sarney, em 29 de novembro de 1985, na inauguração da Ponte Tancredo Neves, em Foz do Iguaçu, como o momento perfeito para mudar para sempre as relações entre os dois países no campo nuclear.

Segundo o livro de Spektor, na conversa em Foz do Iguaçu, Alfonsín convidou Sarney a visitar as instalações nucleares de Pilcaniyeu. Por reciprocidade, Sarney convidou Alfonsín a visitar as instalações brasileiras de Resende, no Estado do Rio de Janeiro. Estava dado o primeiro passo para diversos pactos de cooperação nuclear que levariam à assinatura, em 1991, do tratado de Guadalajara – e à criação da ABACC. "Os dois presidentes foram sábios e usaram a política externa de forma inteligente para ganhar espaço no embate interno, à margem da mão de ferro dos militares", diz Spektor.

Com o surgimento da agência, o Brasil, a Argentina, a ABACC e a AIEA assinariam, em 1991, um tratado de salvaguardas – o jargão usado pelos especialistas para se referir à contabilidade nuclear. Entre 1997 e 1999, Argentina e Brasil aceitariam os termos do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.

Sob a responsabilidade da ABACC e da AIEA, existem 23 instalações nucleares brasileiras e 45 argentinas. As inspeções do material nuclear acontecem com e sem aviso prévio dos dois órgãos. Confere-se a localização de cada grama de plutônio ou urânio enriquecido pelas duas nações.

Entre março e junho deste ano, ocorreram 28 inspeções na Argentina e 28 no Brasil. Aqui ou do outro lado da fronteira, nenhuma delas encontrou irregularidades que indicassem que Brasil ou Argentina desenvolvem a bomba.

Mais de 30 anos depois de sua proposta, Paul Findley mora em Jacksonville, Illinois. Aos 94 anos, mal enxerga, mas escreve artigos sobre mediação de conflitos no Oriente Médio e cartas – endereçadas ao presidente Obama -, todas com tipologia não menor que 20.

Se tiver saúde, gostaria de vir ao Rio de Janeiro para a comemoração dos 25 anos da ABACC, em dezembro, para gritar saudações às presidentes Dilma Rousseff e Cristina Kirchner por chefiarem os países a firmarem a "primeira cooperação nuclear da história".

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