Gás, terror ou religião? Quatro analistas comentam os fatores que estão por trás do isolamento diplomático e econômico imposto ao Qatar por países da região, na pior disputa dos últimos anos
Artigos ajudam a explicar a mais recente crise no Oriente Médio, onde sete países muçulmanos romperam relações diplomáticas com o Qatar.
1 – Emaranhado mais do que sectário
GUGA CHACRA
A Arábia Saudita, um dia, acusa o seu ex-aliado Qatar de ter ligações não apenas com o Estado Islâmico (EI) como também com o regime de Teerã, maior rival dos sauditas. No outro, o EI realiza atentados no Irã, a quem considera um de seus principais inimigos, e autoridades iranianas acusam os sauditas de estarem por trás desta organização terrorista.
Para aumentar a complexidade, os EUA, que são aliados dos hoje rompidos Qatar e Arábia Saudita, veem o governo iraniano e o EI como seus adversários apesar de estes dois estarem lutando entre si na Síria e no Iraque. Ao mesmo tempo, as forças americanas apoiam o Exército iraquiano que, por sua vez, atua em coordenação com Guardas Revolucionárias iranianas e milícias xiitas para combater o EI em Mossul.
Diante deste emaranhado de alianças e inimizades no Oriente Médio e no Golfo Pérsico, que muitas vezes lembram as da série “Game of Thrones“, não dá para simplificar e dizer apenas que há o lado saudita contra o iraniano. Cada ator se posiciona de forma distinta em cada uma das disputas na região, levando em consideração a importância e os interesses das nações envolvidas.
A Arábia Saudita (e alguns aliados) entrou em choque direto com Qatar, apesar de concordarem em alguns dos conflitos regionais. Ambos são a favor da criação de um Estado palestino nas fronteiras pré-1967, avaliam ser fundamental uma aliança militar com os EUA, lutam a favor do governo deposto no Iêmen e defendem a queda de Assad na Síria.
Por outro lado, divergem em algumas questões e estas se sobrepuseram às áreas nas quais existe concordância. O Qatar concede proteção a grupos ligados ao chamado “Islã Político”, cujo principal representante é a Irmandade Muçulmana. Já a Arábia Saudita vê a Irmandade como uma ameaça à estabilidade regional e descreve a organização como terrorista. Para os sauditas, o ideal para a região são nações estáveis, desde que sejam aliadas de Riad.
A postura ideal para seus vizinhos do Golfo na avaliação saudita é a dos Emirados Árabes, apesar de um deles (Dubai) ter boa relação comercial com Teerã. Já o cenário em Bahrein é complicado por ser uma nação majoritariamente xiita regida por monarquia sunita.
Omã, onde há uma convivência pacífica de muçulmanos ibadis, sunitas e xiitas, gosta de manter boas relações com todos.
É próximo politicamente ao Irã e também aos sauditas. O sultão Qaboos governa a nação há décadas, desfruta de enorme respeito regional e abriu espaço, em seu país, para que o governo Obama iniciasse as negociações sobre o acordo nuclear com o Irã. Kuwait, exemplo de coexistência entre sunitas e xiitas, busca manter um equilíbrio de forças e, agora, tenta mediar o conflito entre Qatar e Arábia Saudita.
O Iraque se diferencia por ser uma república e não uma monarquia, por ter eleições relativamente livres, apesar de instituições fracas e por ser palco de guerras quase ininterruptamente desde a década de 1980. As forças iraquianas, em teoria, contam com apoio de Irã, EUA e Arábia Saudita. Os sauditas, porém, temem o controle político dos xiitas próximos a Teerã (e a Washington) em Bagdá.
E o EI? A organização é oficialmente inimiga de todos os governos da região. Não há provas de ligação direta do Qatar ou da Arábia Saudita com o grupo. Há, porém, pontos que acabam por associar estas nações ao EI. Primeiro, o regime saudita difunde a ideologia wahhabita do islamismo sunita. Esta vertente acaba por radicalizar alguns jovens que aderem à ideologia do EI. Em segundo, atores independentes concedem ajuda financeira ao grupo. Terceiro, algumas das armas fornecidas a rebeldes na Síria acabam nas mãos do EI ou da Frente de Conquista do Levante (antiga Frente al-Nusrah, a al-Qaeda na Síria). Ao mesmo tempo, Qatar e Arábia Saudita colaboram na luta contra o EI ao integrarem e darem apoio às operações americanas.
2 – Jogo duplo e dois lados inflexíveis
RASHEED ABOU-ALSAMH
Agrave crise diplomática entre o Qatar e Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Egito está se aprofundando com o ministro de Relações Exteriores do Qatar insistindo que seu país não modificará sua política externa e tampouco fechará a emissora Al Jazeera. O governo qatari tem tentado acalmar sua população, que correu na segunda-feira aos supermercados para estocar comida e água.
Tensões entre Qatar e seus vizinhos no Golfo não são novas. Em 2014, Arábia Saudita, Emirados, Bahrein e Kuwait chamaram seus embaixadores em Doha de volta e suspenderam relações diplomáticas. Furiosos, estes países exigiram do Qatar interromper o que consideram jogo duplo: apoiar grupos vistos como extremistas, como a Irmandade Muçulmana e o Hamas, e, ao mesmo tempo, hospedar tropas americanas numa base militar no seu solo. Depois de algumas semanas, os qataris disseram que mudariam seu comportamento, e as relações voltaram ao normal.
Mas esse é o problema do Qatar, não cumprir promessas. Líderes da Irmandade Muçulmana, como o egípcio Youssef al-Qaradawi, permanecem em Doha. O grupo palestino Hamas recebe US$ 20 milhões por mês, como pagamento de salários de seus funcionários em Gaza. Sauditas, emiratis e egípcios apoiam a Autoridade Nacional Palestina liderada por Mahmoud Abbas e consideram que o apoio qatari ao Hamas serve para dividir os palestinos.
Mas o último ato de desafio de Doha que desencadeou esta crise, segundo o diário “Financial Times”, foi o pagamento em abril de US$ 1 bilhão a uma milícia pró-iraniana no Iraque para a libertação de vários xeques qataris que foram sequestrados em 2015, enquanto caçavam naquele país.
As demandas dos países do Golfo são bem claras: fechar a emissora Al Jazeera, que sempre deu pesadelos para as monarquias absolutas com suas críticas pontuadas; suspender o apoio financeiro e político à Irmandade e ao Hamas; e parar de flertar com o Irã, arqui-inimigo da Arábia Saudita e dos EAU.
A diferença entre a crise de 2014 e a de agora é que o presidente americano é Donald Trump e não Barack Obama. Obama mantinha os Estados do Golfo à distância e foi responsável pelo acordo nuclear com o Irã, enfurecendo a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Mas Trump é republicano, admirado pelos monarcas do Golfo, e também vê o Irã como um centro de apoio ao terrorismo.
Já há murmúrios de uma mudança de regime no Qatar. A CNN em Árabe informou, no último dia 7, que, segundo uma fonte militar americana, as forças militares do país estavam em alerta máximo, temendo uma invasão saudita por terra.
O presidente Trump vem apoiando a ação diplomática da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos e chegou a tuitar, depois do anúncio do rompimento das relações com o Qatar: “Durante minha viagem recente ao Oriente Médio, eu disse que não podia haver mais o financiamento de ideologia radical. Líderes apontaram para o Qatar — vejam! ”
Após os ataques terroristas em Teerã na terça-feira, ele lamentou a violência, mas disse que os EUA sublinham que Estados que apoiam o terrorismo se arriscam a ser vítimas da maldade que promovem. Com todas essas ações, está muito claro que Trump parou de dar apoio ao emir Tamim bin Hamad alThani. O Qatar se encontra num beco sem saída, e não pode aceitar ajuda do Irã ou da Turquia.
Tudo indica que esta crise ainda vai durar um bom tempo. Os dois lados estão inflexíveis em suas posições, o que não ajuda a manter a estabilidade da região. Temos que esperar a ação dos EUA para evitar que um conflito maior exploda na região.
3 – Terrorismo de conveniência
ADRIANA CARRANCA
Esqueça o terrorismo. O que está por trás do isolamento diplomático e econômico do Qatar, capitaneado pela Arábia Saudita, é a maior reserva de gás natural do mundo, sob as águas do Golfo Pérsico, que o pequeno país compartilha com Irã, na margem oposta. Há cerca de um mês, o emir qatari anunciou que retomaria o desenvolvimento do Campo Norte, após 12 anos de moratória auto imposta, oficialmente, para avaliação técnica — extraoficialmente, por pressão dos sauditas.
Arábia Saudita, berço do Islã sunita, e Irã, teocracia xiita, encarnam não apenas a disputa milenar pela sucessão de Maomé e o domínio do mundo muçulmano, como uma guerra econômica. São, respectivamente, o segundo e o terceiro países da Opep em reserva de petróleo, atrás da Venezuela (que perde dos concorrentes pelo preço alto de extração). Analistas projetam para daqui a 25 anos, ou antes, o pico de demanda mundial por petróleo e o início do seu declínio, enquanto a demanda por gás continuará crescendo, por enquanto, a perder de vista.
O Campo Norte — South Pars, para Teerã — responde por 60% das exportações do Qatar, mas vinha perdendo competitividade para EUA, Austrália e Rússia. Em novembro, o Irã firmou acordo com a francesa Total (na qual o fundo Qatar Holding teria participação) para desenvolvimento do South Pars II, no primeiro negócio fechado após o acordo histórico com EUA que relaxou as sanções econômicas contra o regime dos aiatolás. Daí a paciência da Arábia Saudita com o pequeno Qatar ter se esgotado, mesmo antes de suas reservas naturais.
Menor país do Conselho de Cooperação do Golfo, o Qatar era considerado insignificante até o xeque Tamim bin Hamad Al Thani, pai do atual emir, assumir o poder, em 1995, e começar a perseguir autonomia e uma política externa independente do vizinho gigante. Pouco mais de 20 anos, uma série de crises diplomáticas e duas tentativas de golpe depois — ambas atribuídas pelos qataris aos sauditas —, o Qatar se tornou o país mais rico do mundo, em renda per capita, e se projetou como um ator regional influente, ameaçando a supremacia geoestratégia de Riad.
O Qatar diversificou a economia, investiu na Europa e na Ásia, transformou Doha em um hub econômico, financeiro e cultural, com Qatar Airways entre as maiores companhias aéreas do mundo; fundou a rede Al Jazeera, que concorre em audiência internacional com BBC e CNN — embora os interesses do Qatar afetem sua credibilidade, é a emissora que mais se aproxima de um modelo “independente” no Mundo Árabe, que expõe e enfurece as monarquias vizinhas.
O xeque comprou símbolos ocidentais como o clube Paris Saint-German e a loja Harrod’s, em Londres, onde sua mulher pretendia transformar o Cornwall Terrace, projetado pelo arquiteto do Buckingham Palace, em um palácio para o filho e novo emir, xeque Tamim, que se prepara para sediar (não sem acusações de compra de votos e uso de trabalho escravo) a Copa do Mundo em 2022.
Ao abdicar em favor do jovem, o xeque ameaçou monarcas vitalícios. O emir apoiou a Primavera Árabe e a eleição de Mohammed Mursi, no Egito, deposto em 2013 por militares, que têm apoio da Arábia Saudita — a perspectiva de eleições e o Islã político são vistos como ameaça existencial às monarquias do Golfo.
É acusado de financiar grupos radicais na Síria ao mesmo tempo em que se aliou à Otan na Líbia e abriga uma base aérea, de onde os EUA lançam operações militares em toda a região.
Os argumentos para o isolamento do Qatar foram o jogo duplo na política externa e financiamento do terrorismo, mas estas são acusações das quais a própria Arábia Saudita é alvo. É a ascensão econômica e política do Qatar, com influência regional e internacional, que irrita Riad e os vizinhos do Golfo e provoca fissuras no bloco há mais de duas décadas, intensificadas pela possibilidade de aproximação com Irã, arqui-inimigo da Arábia Saudita.
O primeiro atentado do Estado Islâmico no Irã, em momento tão delicado, somou-se à crise. A Guarda Revolucionária acusou Riad. O EI, como se sabe, deriva da al-Qaeda, de origem saudita, e é integrado por ex-militares de Saddam Hussein, deposto pela invasão americana e substituído por um governo xiita no Iraque — o quarto país da Opep em reservas de petróleo, em disputa, como na Síria. São grupos que se escondem sob a couraça da religião, mas servem a interesses econômicos de quem os financiam, sequestrando a fé de dois bilhões de pessoas, entre as quais está a maioria das vítimas do terrorismo e das guerras.
4 – Sauditas têm muito a perder
Aceitar essas demandas é um desafio à soberania do Qatar, e consequentemente à legitimidade da família real
GLEN CAREY E MARC CHAMPION
Os sauditas e seus aliados elevaram a pressão sobre o Qatar, cortando laços diplomáticos e fechando fronteiras, numa tentativa de fazer com que o emirado deixe de se aproximar do principal rival saudita, o Irã, e abandone o apoio a grupos islamistas na região. O Qatar diz estar sendo punido por coisas que não fez, e os EUA sinalizaram que querem um relaxamento do embargo.
Embora discordâncias em relação ao Qatar não sejam uma novidade, a proporção da crise atual é sem precedentes e ela surge em um Oriente Médio já polarizado pela guerra. A Arábia Saudita lutou para impor sua vontade na Síria e no Iêmen, e agora a discórdia se espalhou pelas monarquias do Golfo.
“O mais preocupante é que Arábia Saudita e Emirados Árabes podem repetir os erros cometidos quando decidiram iniciar uma guerra no Iêmen”, afirma Yezid Sayigh, analista do Fundo Carnegie para a Paz Internacional. “Eles não tinham uma estratégia política clara, basearam suas ações em deduções falsas, sofreram com enormes custos financeiros, têm uma crescente perda humana, e provavelmente estão piores em termos de segurança".
Como acontece em outras disputas regionais, poderes externos estão sendo atraídos para a batalha no Golfo, e nem todos estão do lado dos sauditas. No Twitter, Donald Trump demonstrou apoio à medida liderada por Riad, mas o Pentágono e o Departamento de Estado adotaram posições mais neutras. A Turquia acelerou planos de transferências de tropas para o Qatar, e o Irã ofereceu rotas alternativas de transporte para produtos que não podem mais ser importados da Arábia Saudita, o que reduz as chances de uma vitória rápida para o clã dos Saud.
Do ponto de vista dos sauditas, o Qatar tem criado problemas por toda parte, seja por promover a Irmandade Muçulmana, rejeitada pelas monarquias do Golfo; por sua cordialidade com o Irã; por financiar a emissora Al Jazeera, crítica dos aliados sauditas, e por apoiar o Estado Islâmico e a al-Qaeda, uma acusação que também recai sobre Riad, e que o Qatar, assim como seus vizinhos sauditas, nega.
“Vemos o Qatar como um Estado irmão”, afirmou na quarta-feira o chanceler saudita, Adel al-Jubeir. “Mas temos que ser capazes de dizer a amigos e irmãos o que está errado. ”
“Ainda que Riad e Abu Dhabi indiquem que devem adotar medidas complementares para reforçar suas posições, o Qatar deverá ser motivado a resistir pela percepção de que o que os sauditas buscam na verdade é uma mudança de regime no país”, afirma Sanam Vakil, do centro de estudos Chatham House. “Aceitar essas demandas é um desafio à soberania do Qatar, e consequentemente à legitimidade da família real. Acho difícil acreditar que eles simplesmente irão ceder. ”
“Ainda que ações sauditas tenham tido pouca variação no mercado — contra uma queda de 7% das ações qataris — o país não pode se dar ao luxo de enfrentar instabilidade no Oriente Médio, especialmente turbulências criadas por seu próprio governo”, explica James Reeve, economista do Samba Financial Group, de Londres. “Qualquer disputa como essa deve atrapalhar o clima para investimentos. Os investidores serão lembrados de que se trata de uma região na qual disputas políticas podem explodir de forma inesperada. ”
Em entrevista na quarta-feira, o ministro das Relações Exteriores dos Emirados Árabes, Anwar Gargash, reconheceu que a reputação do Golfo Pérsico como um destino seguro para o capital pode ser abalada pela crise diplomática. Mas afirmou que não havia alternativa a não ser confrontar o Qatar porque os membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) não podem confiar em um parceiro que será “dissimulado em suas políticas”.
Na sexta-feira, Gargash voltou a criticar o Qatar, afirmando que a solução “deve ser encontrada por meio da diplomacia, e não recorrendo a aliados turcos ou iranianos”.
Para Theodore Karasik, analista-sênior do Gulf State Analytics, o Qatar pode reagir ameaçando deixar o CCG.
“Seria uma poderosa mensagem a todas as partes envolvidas, e muito provavelmente teria o respaldo da Turquia, do Irã e até mesmo da Rússia”, diz.
O Kuwait, outro membro do CCG, lidera os esforços para garantir que as coisas não cheguem a esse ponto. Seu emir viajou para a Arábia Saudita e para o Qatar na semana passada, e o teor de suas discussões ainda não foi revelado. Na quinta-feira, Trump ofereceu o secretário de Estado americano, Rex Tillerson, como mediador.
No entanto, o presidente americano já criticou o Qatar e é visto como alguém cooptado pelos sauditas desde que prometeu adotar uma postura mais combativa contra o Irã e classificou o rei Salman como “um aliado-chave”.
Esse é um dos motivos pelos quais a Guarda Revolucionária iraniana imediatamente culpou a Arábia Saudita e os Estados Unidos pelos ataques do Estado Islâmico ao coração de Teerã — os primeiros do grupo à capital iraniana — e prometeu vingança, em mais um exemplo de como as frentes de batalha estão se solidificando no Oriente Médio.
“As monarquias do Golfo, agora envolvidas em um imbróglio, estavam entre os últimos locais ainda pacíficos na região”, observa Paul Sullivan, especialista em Oriente Médio da Georgetown University, em Washington. “Estou ficando preocupado.”