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O ocaso do MST

Pedro Marcondes de Moura/ Fotos: Rafael Hupsel

Menos de 60 quilômetros separam três cenários distintos: o berço, o palco da consolidação e a demonstração definitiva da decadência atual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O primeiro cenário está à beira da rodovia RS-324. Um monumento de ferro retratando um casal de camponeses sinaliza o embrião mítico do MST no Rio Grande do Sul, a “Encruzilhada Natalino.” Ali, cerca de 600 famílias expulsas de uma reserva indígena mostraram, em 1981, o poder de resistência de um grupo organizado em prol da reforma agrária. Apesar da forte repressão, em pleno governo militar, eles não arredaram pé do acampamento.

A poucos minutos da Encruzilhada ficam as terras que testemunharam a primeira grande prova de força do movimento, a fazenda Anoni, invadida, na chuvosa madrugada de 29 de outubro de 1985, por cerca de sete mil pessoas. A organização que cortou as cercas da propriedade ameaçava incendiar os campos brasileiros e despertava o medo nos latifundiários. É um sentimento muito diferente do que hoje pode ser experimentado em Sarandi, a pequena cidade vizinha da Anoni.

Barracos abandonados e outros trancados com cadeados, mas também vazios, atestam a decadência do MST. Das 83 famílias teoricamente instaladas no acampamento, um quarto só aparece aos sábados, domingos e feriados. Durante os dias úteis, tocam suas vidas. Moram e trabalham nas zonas rurais e urbanas de cidades próximas. Para eles, a peleja pela terra virou uma atividade de fim de semana.

As estatísticas confirmam o declínio. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que, em uma década, a quantidade de famílias acampadas sob a bandeira do MST diminuiu seis vezes de tamanho. Durante o governo Lula, a queda foi ainda maior: desabou de 32.738 famílias acampadas para 1.204, excluindo as fileiras comandadas por José Rainha, considerado “dissidente” pela cúpula nacional do MST. “O momento está difícil mesmo”, admite Laércio Barbosa, um dos dirigentes na região do Pontal do Paranapanema, no sudoeste paulista. “Não vemos sinal de desapropriações e assentamento por parte dos governos ou do Incra. Não tem jeito. Isso afasta as pessoas da luta mesmo”, diz ele. Barbosa deu essa entrevista em meio a um acampamento à beira de uma estrada vicinal de acesso a Sandovalina. Consta que ali estariam abrigadas 220 famílias. As lideranças dizem que 40% delas vão ao local apenas nos fins de semana. Mas, na verdade, foi impossível contar mais do que 80 pessoas no local.

Parte do encolhimento das fileiras do MST pode ser explicada pela situação econômica do País. Viver anos a fio sob barracos de lona, à espera de um lote de terra, deixou de ser a única opção para uma legião de trabalhadores rurais. O Brasil cresceu, em média, 3,65% nos últimos dez anos. Novas oportunidades surgiram no campo e nas cidades.

A poucos metros do marco da Encruzilhada Natalino, por exemplo, funcionam hoje duas grandes agroindústrias. Antes só havia por ali campos de soja e fazendas improdutivas que geravam contingentes de marginalizados. A luta pela conquista de um pedaço de terra, nos braços do MST, era a única perspectiva concreta de futuro. “Hoje a gente tenta mostrar que a crise está aí, fala da situação da Europa e dos Estados Unidos para provar isso, mas muitos só pensam no agora e desistem”, lamenta-se José Machado, coordenador do acampamento em Sarandi. “A luta é dura”, diz ele, que registrou 20 baixas entre seus comandados desde 2009.

No Pontal do Paranapanema, os assentamentos também contabilizam dissidentes. Muitos deles estão entre os brasileiros que foram beneficiados pelo 1,8 milhão de empregos formais que o País gerou nos oito primeiros meses do ano. É o caso de Rodrigo Capatto Rodrigues, 30 anos, assentado na fazenda São Bento. Ele arrumou trabalho como auxiliar de serviços em uma escola pública na cidade de Mirante do Paranapanema e agora pode sustentar a mãe e o irmão caçula.

Principal alvo da fúria do MST, o setor agroindustrial também passou por um importante processo de modernização e hoje se tornou um dos pilares da geração de emprego. Com investimentos em técnicas e equipamentos, a produtividade das lavouras nacionais cresceu cerca de 150% nos últimos 35 anos. O MST certamente contribuiu em parte para este avanço, pois o medo de ver terras improdutivas desapropriadas funcionou como impulso para proprietários rurais mais reticentes e tradicionalistas. Na região do Pontal do Paranapanema, um dos principais redutos do MST, a mudança é eloquente.

Fazendas que na década de 90 se destinavam a uma pecuária extensiva de pouco investimento deram lugar a canaviais integrados a uma sofisticada cadeia produtiva, que desemboca em grandes usinas. Apenas a ETH Bioenergia, produtora de etanol e açúcar, gera mais de três mil empregos com duas plantas nas cidades de Teodoro Sampaio e Mirante do Paranapanema. “No meu assentamento, dá para montar mais de dois times de futebol com a meninada que foi trabalhar na usina”, conta João Bosco Rodrigues. O filho dele, Irivan, 20 anos, é um dos beneficiados pelo novo ciclo produtivo da região.

Os programas sociais do governo federal, em especial o Bolsa Família, tiveram igualmente um papel relevante para afastar a população do campo do Movimento dos Sem Terra. O benefício pago mensalmente a pessoas em situação de miséria (cerca de 20% dos moradores da área rural do País) atacou um dos principais bolsões de captação de novos integrantes da organização. Além disso, a própria ideia da reforma agrária como panaceia do desenvolvimento econômico perdeu seu charme. Ela não integra sequer o principal projeto de erradicação da pobreza extrema do país, o Brasil Sem Miséria. O programa, concebido pela presidente Dilma Rousseff, aposta em regularizar, facilitar as linhas de crédito e melhorar a produtividade de terras já ocupadas. Não contempla investimentos para a ampliação do número de famílias assentadas.

Por todas essas razões, a imagem do MST sofre um sério desgaste na sociedade. Uma pesquisa do Ibope realizada no final de 2009 demonstra o descontentamento dos brasileiros com os rumos adotados pela organização. Mais de 70% dos entrevistados dizem que o Movimento dos Sem Terra prejudica a geração de empregos e o desenvolvimento econômico e social do País. Um cenário bem distinto daquele que embalou o ato de fundação do movimento em 1984, em Cascavel, no Paraná. “Naquele tempo, o MST tinha amplo apoio”, relembra Darci Maschio, um dos nomes da emblemática ocupação da Fazenda Anoni no Rio Grande do Sul. “No final da ditadura, a defesa da luta pela reforma agrária estava presente em quase todos os partidos. As pessoas abraçavam a causa. Hoje, você observa que o PT está no governo e essa questão saiu de pauta.”

O isolamento do MST é resultado direto das políticas escolhidas por seu comando. A relação do movimento com a Igreja Católica talvez seja o melhor exemplo disso. Desde o início, os padres tiveram um papel fundamental na organização e arregimentação dos sem-terra. Religiosos tratavam de amparar as famílias no mítico momento da Encruzilhada Natalino e estavam na linha de frente dos camponeses que romperam os arames da Fazenda Anoni. “Um povo que se emancipa e enfrenta o opressor para chegar à terra prometida” era o lema dessa ala chamada de “progressista”, como lembra o padre Arnildo Fritzen, 68 anos, um dos principais responsáveis pela formação de lideranças do MST no Rio Grande do Sul. Aos poucos, porém, os religiosos foram sendo deixados de lado no comando da organização.

A separação ficou mais forte na década de 90, quando a Igreja Católica como um todo acabou se afastando dos movimentos populares, na esteira do declínio da Teologia da Libertação, que, anos antes, assanhava seus setores de esquerda.

A direção do movimento passou a apostar numa estrutura altamente hierarquizada, mesmo entre seus pares. Nos seus primórdios, o MST parecia uma assembleia permanente. Hoje, os acampados apenas colocam em prática as decisões tomadas em esferas superiores. Nos assentamentos do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, e também da região norte do Rio Grande do Sul, é evidente o fosso que separa o discurso dos dirigentes das práticas adotadas na vida real.

É comum ver nessas áreas colonos que já conseguiram prosperar recrutando vizinhos para trabalhar como empregados, miseravelmente remunerados, em suas novas propriedades. Também se vê gente arrendando áreas para aumentar a produção – o que, antes, era denunciado como um pecado pelo MST. Isso sem contar os casos de compras irregulares de lotes de reforma agrária. Na grande vitrine da organização, a Fazenda Anoni, a comercialização das terras, proibida por lei, foi recentemente alvo de uma operação do Incra. Em 19 dos 412 lotes do assentamento, houve flagrantes de venda ilegal. No Pontal do Paranapanema, a negociação é feita sem pudor. Em Mirante do Paranapanema, pagando entre R$ 20 mil e R$ 30 mil, adquirem-se terras de pessoas que ficaram anos embaixo de uma lona.

Durante mais de duas décadas de história, o MST passou por um processo de filtragem ideológica. Lideranças mais pragmáticas ou que divergiam da orientação de cunho stalinista, adotada pela cúpula, foram alijadas. Um caso emblemático é o de José Rainha. Responsável por levar o movimento no Pontal do Paranapanema às manchetes de jornal, ele acabou renegado, em 2007.

Rainha foi acusado de não seguir as orientações do movimento e “apoiar candidatos que não eram identificados com a causa da organização”. Pouca gente, no entanto, fala abertamente sobre as divergências internas. Todos temem o poder do grupo dirigido por João Pedro Stédili. Não é à toa que o MST assistiu à criação de uma legião de siglas concorrentes. Essa trajetória levou a um forte enfraquecimento do movimento, situação confirmada por dados da CPT: o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra representa hoje apenas 33,6% dos acampados brasileiros.

Essa redução do poder de mobilização do movimento não se reflete, no entanto, no acesso a verbas públicas. Mesmo sendo uma organização social semiclandestina que nunca existiu no papel (para evitar a criminalização de seus membros), o MST criou dezenas de ONGs, associações e cooperativas com a finalidade de abrigar os seus líderes e captar dinheiro de prefeituras, Estados e da União.

Até o seu site está hospedado em nome da Associação Nacional de Cooperação Agrícola. Segundo levantamento da ONG Contas Abertas, os repasses triplicaram durante a gestão do presidente Lula. De R$ 73,3 milhões, em 2003, cresceram para R$ 282,6 milhões em 2010, embora, no mesmo período, o número de famílias acampadas sob a bandeira do movimento tenha desabado. Sem a aura e a força do passado, o MST sobrevive das verbas do Estado capitalista brasileiro.

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