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O desafio da democracia e a doença populista

O presidente eleito da Argentina, Mauricio Macri, deu uma declaração corajosa logo depois de sua vitória. Ele disse que a Venezuela deveria ser banida do Mercosul, por causa das práticas antidemocráticas do governo de Nicolás Maduro. A frase de Macri embute uma reflexão. A verdadeira clivagem na América do Sul não é entre regimes de esquerda e direita. Em vez disso, existem governos que favorecem o avanço da democracia e governos que recuam na direção das velhas práticas populistas.

Na "liga democrática" formam, por exemplo, Chile, Uruguai (com governos de centro-esquerda) e Colômbia (de centro-direita). Não por acaso, estão entre os países sul-americanos mais integrados à economia mundial e – em parte por causa disso – com melhores perspectivas de crescimento, mesmo num continente em crise.

Formam na "liga populista" a Venezuela, o Equador e a Bolívia. Nesses países há prisões políticas, constrangimento da imprensa e governos assentados em figuras carismáticas – sintomas característicos da doença populista. A principal diferença é que, na "liga democrática", há algum avanço das instituições – mesmo que estejamos ainda longe dos padrões europeus ou dos Estados Unidos. Na "liga populista", governos personalistas atentam contra as instituições da democracia onde se criaram.

Com a eleição de Macri, a Argentina tem a chance de migrar de uma liga para a outra. Sob os Kirchners, a Argentina era governada por uma mesma família havia mais de uma década. Essa família dividiu o país entre "nós" e "eles" e perseguiu a imprensa oposicionista. O ambiente de negócios se deteriorou, os números da economia foram ao chão e a vida dos argentinos, especialmente os mais pobres, piorou muito.

Sobretudo, o governo minou as instituições democráticas, ao tentar submeter Legislativo e Judiciário. A prática política anterior de Macri – além de declarações recentes em favor da independência do Judiciário e do Banco Central – faz supor que ele respeitará as instituições, trazendo a Argentina de volta ao caminho democrático.

No Brasil, como em qualquer país da América do Sul, a tentação populista está sempre à espreita. Mas as instituições democráticas vêm-se fortalecendo de maneira admirável, e o episódio da prisão do senador Delcídio do Amaral é uma amostra disso. Ele foi acusado pelo Ministério Público perante o Supremo Tribunal Federal – como parlamentar eleito, tem foro privilegiado -, o STF decretou sua prisão e o Senado confirmou essa decisão.

Tudo dentro do que determina a Constituição e o estado de direito. O Palácio do Planalto não se manifestou. Temos aí um caso exemplar de independência entre os Poderes. O Judiciário decidiu, o Legislativo respeitou a decisão do Judiciário e o Executivo – ao contrário do que costuma acontecer na Venezuela -não interferiu.

É assim que funcionam as democracias. Ao se posicionar corajosamente contra o autoritarismo venezuelano, o novo presidente argentino, Mauricio Macri, já mostrou que pretende ser um líder regional. Ele comanda a segunda maior economia da região.

Que a primeira, o Brasil, continue a fortalecer suas instituições e que nossos governantes tenham coragem de combater, inclusive em foros internacionais, pela democracia e contra o autoritarismo. Se as duas maiores economias da América do Sul sinalizarem claramente a direção certa, é possível que o continente como um todo reencontre o caminho do crescimento sustentado, com mais oportunidades para todos.

Um não ao autoritarismo¹

Para os moradores de Buenos Aires, discutir é quase um estilo de vida. Discorda-se de tudo, apenas pelo prazer de divergir. Nos últimos dias, no entanto, reina quase um consenso entre os portenhos. Mauricio Macri, eleito presidente da Argentina, com 51,8% dos votos, mais de 12 milhões de eleitores, pode ser um bom presidente apenas por representar um alívio à la grieta, a fenda aberta na sociedade argentina por 12 anos de governos liderados pela presidente Cristina Kirchner e seu falecido marido, Néstor. "Essa foi uma derrota que os próprios kirchneristas se infligiram", afirma o argentino Federico Finchelstein, diretor do Departamento de História da New School for Social Research, em Nova York. "Ao criar um discurso de nós contra eles e incitar uma divisão da sociedade argentina, o kirchnerismo jogou eleitores moderados no colo da oposição."

Uma consulta ao mapa de votação dá contornos mais nítidos a essa explicação. Macri colheu votos em vários redutos antes dominados por apoiadores de Cristina Kirchner e peronistas, os seguidores do movimento político criado por Juan Domingo Perón, que se abrigam, sob a forma de diferentes facções, no Partido Justicialista.

Foram votos de eleitores incomodados com o discurso de ódio político alimentado pelo kirchnerismo, como a funcionária pública Karina Cipolla, de 44 anos. Filha de uma família peronista, Karina votou nos Kirchners em "todas as eleições, de 2003 até a anterior à reeleição de Cristina". Karina se desiludiu com Cristina quando percebeu que o kirchnerismo buscava dividir o país. "Os anos Kirchners provocaram essa fenda na sociedade, em que colegas de trabalho, amigos, parentes brigam entre si e não voltam a se falar. Isso não havia antes."

A ideia de criar uma divisão entre seguidores de um partido e seus opositores não é nova na política -basta lembrar como o PT, no Brasil, também recorre ao discurso do "nós" contra "eles" . Na Argentina, o termo la grieta foi usado pela primeira vez em um discurso de Perón, em 1955. "A fenda sempre esteve aí, na sociedade argentina. O que o kirchnerismo fez foi aprofundar a divisão até o ponto de torná-la quase intransponível", afirma Marcos Novaro, cientista político da Universidade de Buenos Aires. "A intenção era garantir uma massa de apoiadores."

Casada, mãe de quatro filhos e moradora de um bairro de classe média baixa de Buenos Aires, Karina diz que votou em um candidato não peronista pela primeira vez por ter sentido na pele essa divisão. "As políticas sociais de Cristina são para poucos. Meus filhos têm de trabalhar para pagar os estudos na faculdade, mas há pessoas que vivem muito bem com o dinheiro que ganham do Estado", diz Karina. "O dinheiro que eu ganho mal dá para o fim do mês, mas para o governo estou entre o 1% mais rico da população; os preços dobraram em um ano, mas para Cristina e (Daniel) Scioli não existe inflação."

Nos anos de kirchnerismo, a economia argentina foi submetida a políticas intervencionistas e autoritárias. "Cristina merece um Nobel porque inventou um novo modelo econômico: a economia do faz de conta", afirma Dante Sica, diretor da Abeceb, consultoria especializada em análises econômicas. A Argentina do faz de conta começou em 2007, quando o governo interveio no Indec, o órgão oficial de estatísticas, o IBGE argentino. A inflação, segundo a estatística oficial, não passa de 15% – mas consultorias privadas e independentes afirmam que ela chega aos 35% ao ano.

Para tentar neutralizar os efeitos indesejáveis da inflação galopante, o atual ministro da Economia, Axel Kicillof, criou um programa, o Precios Cuidados, responsável pelo controle de uma cesta de 500 produtos básicos, com os preços tabelados, como pão, leite, artigos de higiene pessoal e de beleza, óleo, arroz. A medida aumentou as distorções da economia e não atenuou o crescimento da pobreza. O último dado do Indec sobre pobreza é de 2013:4,7% da população. Desde então, esse índice deixou de ser medido "para não estigmatizar" os cidadãos – na Argentina edulcorada dos Kirchners, os pobres não podem ser chamados de pobres. Calculado pela Universidade Católica da Argentina (UCA), esse percentual chegaria hoje a 28%.

Nas ruas de Buenos Aires, não é preciso ir muito longe para deparar com uma miséria incomum na cidade até anos atrás. Andando pela Plaza San Martin, um antigo reduto aristocrático que, no começo do século XX, originou o apelido de "Paris latino-americana" para Buenos Aires, se dá de cara com a "Villa 31", um dos inúmeros aglomerados de casas de alvenaria com moradores pobres e tomados pelo tráfico de drogas que se espalharam pela capital argentina. Estima-se que sejam 35 as "villas miséria", pequenas favelas que dobram de população todo ano.

A história de Darío Vergara, de 52 anos, ilustra o crescimento da pobreza. Veterano da Guerra das Malvinas, em 1982, entre Argentina e Reino Unido, Vergara mora num acampamento montado em frente ao palácio presidencial, a Casa Rosada, na Plaza de Mayo. Lá, ele reclama o aumento de sua pensão de 1.300 pesos, sem reajustes há dois anos. Ele votou em Néstor Kirchner, em 2002, mas diz ter se desapontado com Cristina. "Tudo que Néstor conquistou, a melhora na economia, os avanços sociais, Cristina conseguiu desfazer com essa política desastrosa de apadrinhados políticos", diz Vergara. Apesar de ter votado em Macri, ele se diz pessimista com o futuro da Argentina. "Não creio que ele vai conseguir governar. Os peronistas nunca deixaram um adversário governar."

Os temores de boa parte da população com relação à capacidade de Macri governar são justificáveis. Nos últimos 68 anos, antes de Macri, apenas dois presidentes eleitos não eram peronistas: Raúl Alfonsín (1983-1989) e Fernando de la Rúa (1999-2001). Nenhum dos dois conseguiu terminar o mandato. Alfonsín renunciou cinco meses antes de terminar seu mandato por pressões políticas.

De la Rúa renunciou pouco mais de dois anos depois de eleito, em meio à maior crise econômica da Argentina. Teve de deixar a Casa Rosada de helicóptero, em meio a protestos. Os desafios de Macri são tão estrondosos quanto sua vitória, e muitos comparam a situação econômica da Argentina hoje às do tempo de De la Rúa.

Macri vai pegar uma economia em recessão, com inflação alta, produtividade baixa, baixas reservas internacionais, dívidas urgentes para pagar e um Congresso dominado pelos adversários. "Há semelhanças, principalmente na falta de reservas e nas dificuldades com o Parlamento", afirma o ex-presidente De la Rúa. "Mas Macri é um político habilidoso.

Não creio que a história vá se repetir." Para formar seu governo, composto de nomes de perfil eminentemente técnico, Macri fez questão de manter dois nomes ligados ao peronismo e que participaram do governo Kirchner – um pequeno aceno para a oposição. O novo ministro da Fazenda e Finanças será o economista Alfonso Prat-Gay, presidente do Banco Central entre 2002 e 2004, sob os governos Eduardo Duhalde e Néstor Kirchner.

Ele pretende acabar aos poucos com a proteção cambial e com alguns subsídios e vai tentar uma negociação com os chamados "fúndos abutres" – credores externos que cobram parte da dívida do calote argentino de 2001. Macri também entregou quatro ministérios à Union Civica Radical (UCR), o mais tradicional partido de oposição ao peronismo e que o apoiou na campanha eleitoral.

Desde a renúncia de De la Rúa, a UCR nunca mais teve um candidato próprio às eleições argentinas, mas o partido tem um público fiel e aguerrido. Em geral, os radicais são eleitores mais velhos, conservadores nos costumes e liberais na economia – embora se definam como de centro-esquerda e o partido seja afiliado à Internacional Socialista.

O administrador Estebán Perez, de 32 anos, trabalha em um hotel no centro de Buenos Aires, é filho de pais eleitores da UCR e neto de avós filiados ao partido. Ele diz ter votado em Macri por convicção. "Ele era o único capaz de varrer o kirchnerismo e fazer um governo para recuperar a Argentina", afirma Perez. "Se ele fizer para o país o que fez por Buenos Aires, já será muito mais que os Kirchners fizeram." Macri foi um dos prefeitos mais bem avaliados da história de Buenos Aires. Fez fama de bom gestor ao tirar a cidade de uma crise financeira, remodelar o transporte público, construir escolas e obras viárias.

Poucos acreditavam que ele seria capaz disso quando se lançou na política, em 2003. Antes, era percebido como um playboy que nascera em berço esplêndido. Filho de Franco Macri, um dos empresários mais poderosos da Argentina, Mauricio se formou em engenharia civil e trabalhou nas empresas da família. Ganhou notoriedade nacional em 1991, depois de ficar 12 dias sequestrado. Depois do drama pessoal, dedicou-se ao futebol.

Em 1995, elegeu-se presidente do Boca Juniors, o clube mais popular da Argentina. Em sua gestão, o Boca tornou-se o maior clube da América Latina. Ganhou 17 títulos – entre eles, quatro Libertadores da América e dois mundiais de clubes.

A carreira política de Macri nasceu paralelamente à de dirigente esportivo. Em 2003, ao disputar a primeira eleição para prefeito de Buenos Aires, perdeu. Dois anos depois, criou o partido Proposta Republicana (PRO), como uma terceira via aos partidos tradicionais. Em 2007, ao deixar o Boca Juniors, conquistou a prefeitura de Buenos Aires. Usou sua gestão para fazer uma eficiente oposição aberta ao governo de Cristina.

Lançou ataques à política econômica intervencionista dos Kirchners, ao cerco do governo ao dólar e às estatizações promovidas no período. Ao mesmo tempo, adotou uma postura mais sóbria para mostrar maturidade. Queria afastar a imagem de bon-vivant, fã inveterado de shows de rock e da Liga dos Campeões de Futebol – ele assiste aos jogos in loco.

Para se desvencilhar dessa imagem, Macri tomou um banho de peronismo nos últimos meses. Prometeu que fará os ajustes econômicos necessários, mas sem deixar de combater a miséria e lutar contra a desigualdade. Macri adotou a bandeira da "pobreza zero", prometeu criar renda mínima para os mais velhos e manter "conquistas sociais do kirchnerismo", como o plano social Asignación Universal por Hijo, equivalente ao Bolsa Família do Brasil. E disse que não vai mexer nas polêmicas estatizações da companhia aérea Aerolíneas Argentinas e da petrolífera YPF.

Macri também se empenhou para afastar a pecha de machista e conservador que ganhara por comentários intempestivos feitos antes de se lançar na política. Em 1995, disse que não via problema em dar cantadas, porque "mulheres gostavam de ter a bunda elogiada". Em 1997, afirmou em entrevista ao jornal La Nación que "a homossexualidade é uma doença, um desvio", e os homossexuais não são "100% saudáveis".

Ao longo da campanha, adotou a postura de político liberal que não quer interferir na vida particular das pessoas. Como prefeito, já comprara uma desavença com o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje o papa Francisco, ao se recusar a contestar a lei da união entre pessoas do mesmo sexo. O papa era contra, e Macri defendeu os direitos dos gays.

Essa mudança foi essencial para conquistar a juventude, decisiva para a vitória eleitoral de Macri. Estima-se que Macri tenha conseguido quase 60% dos votos entre os jovens de 16 a 25 anos, que representam 15,7% da população argentina e somam quase 5 milhões de eleitores. Daniela Baez, de 25 anos, foi uma das jovens que Macri atraiu. Estudante de Direito, filha de pais peronistas, ela se cansou do kirchnerismo. "A falta de respeito às instituições, o descaso com a economia, a manipulação de dados, a apropriação do Estado como um bem privado, o projeto de poder hegemônico, tudo isso me deu nojo", diz Daniela. "Sou peronista, acredito nos ideais de justiça social do peronismo, mas o kirchnerismo é outra história."

No primeiro turno, Daniela votou em Sergio Massa, um candidato peronista que fez parte do governo de Cristina, mas se desentendeu com ela. Massa foi o terceiro colocado nas eleições. Ele não apoiou Macri formalmente, mas a maioria de seus eleitores votou nele. "Não compartilho algumas ideias de Macri, mas estou cansada do kirchnerismo", diz Daniela. "A Argentina precisava de alternância de poder."

As palavras de Daniela são um bom resumo dos motivos da vitória de Macri em um pleito histórico. Por maiores que sejam os desafios do novo presidente, ele parece ter o apoio de boa parte da população argentina para curar as feridas abertas por 12 anos de kirchnerismo.

¹ Rodrigo Turrer

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