Em sua primeira declaração sobre os protestos no Irã, o líder supremo iraniano, Ali Khamenei, acusou nesta terça-feira (02/01) os "inimigos" do país de estarem por trás das manifestações que deixaram ao menos 21 mortos nos últimos seis dias. "Nos últimos dias, os inimigos do Irã usaram diferentes ferramentas, incluindo dinheiro, armas, política e aparato de inteligência, para criar problemas para a República Islâmica", acusou Khamenei.
O inimigo sempre esteve esperando a oportunidade de penetrar e prejudicar a nação iraniana, acrescentou o líder. "O que evita a hostilidade do inimigo é a existência do espírito de coragem, sacrifício e fé da nação", ressaltou.
Khamenei não mencionou quem seriam esses inimigos. Porém, o secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional Ali Shamkhani acusou os Estados Unidos, o Reino Unido e a Arábia Saudita de estarem por trás dos protestos nos país.
Onda de protestos
Desde a última quinta-feira, o Irã enfrenta uma onda de manifestações em diversas cidades. Os protestos são considerados os maiores desde a revolta de 2009, quando uma série de manifestações tomou as ruas do país contra supostas fraudes eleitorais a favor do linha-dura Mahmoud Ahmadinejad, logo se tornando um movimento de maior escala de contestação ao regime dos aiatolás.
Desta vez, os protestos tiveram inicialmente a inflação e o desemprego como alvo, mas logo ganharam tom político, com críticas ao presidente Hassan Rohani e a Khamenei. Não está claro, porém, se as manifestações, que acontecem por todo o país, tem uma reivindicação uníssona.
Desde o início dos protestos, cerca de mil pessoas foram detidas. Somente em Teerã, foram 450 detenções. O vice-promotor da cidade de Mashhad, Hassan Heidari, informou que 138 pessoas foram presas. O comandante dos Guardiões da Revolução da província de Kerman, Golam Ali Abuhamze, disse que na cidade de mesmo nome há mais de 80 detidos. Em Hamedan, no oeste do país, os presos superam 150, de acordo com o governador da província, Ali Toali. Outras centenas foram presas em várias cidades.
O governo do Irã afirmou nesta terça-feira que aqueles que participarem de protestos podem ser acusados de vários crimes, alguns deles punidos com a pena de morte.
"A cada dia que passe e as pessoas forem detidas, aumentará seu crime e castigo, e nós já não os consideramos manifestantes pelos seus direitos, mas como pessoas que querem prejudicar o regime", disse hoje o presidente do Tribunal Revolucionário de Teerã, Musa Ghazanfarabadi.
Os detidos serão declarados culpados de diferentes delitos, entre os quais figuram "atentado contra a segurança nacional" e "inimizade com Deus", ambos punidos com a pena de morte, esclareceu Ghazanfarabadi.
Segundo o vice-ministro iraniano do Interior, Hossein Zolfaghari, 90% dos detidos têm menos de 25 anos, o que indica a insatisfação dos jovens com os rumos econômicos e a falta de liberdade social.
O desemprego entre jovens atingiu recentemente a marca de 40%. Muitas das sanções internacionais foram revogadas com o acordo nuclear de 2015, mas medidas unilaterais americanas contra transações financeiras com o Irã continuam a minar a economia e impedem a maioria dos bancos ocidentais de conceder crédito a iranianos.
Protestos no Irã podem ser tiro pela culatra
Em meio à atual onda de protestos no Irã, o vice-presidente do país, Eshaq Jahangiri, pediu cautela. Segundo Jahangiri, quem incita a protestos corre o risco de perder o controle sobre as manifestações – uma máxima que, para ele, também vale para os protestos atuais. Iniciadas na semana passada, as manifestações tiveram num primeiro momento a inflação e o desemprego como alvo, mas logo ganharam tom político, com críticas ao presidente Hassan Rohani e ao líder supremo, Ali Khamenei.
"Aqueles que estão por trás desses acontecimentos vão queimar os próprios dedos", disse o vice-presidente. "Eles acham que estão atingindo o governo com suas ações." Jahangiri sugeriu que, na verdade, os organizadores das manifestações estariam prejudicando, em primeira linha, a si próprios.
Muitos observadores apontaram que os protestos não tiveram início num local qualquer, mas na cidade de Mashhad, no nordeste do país, próxima à fronteira com o Turcomenistão. A metrópole de três milhões de habitantes é um dos sete locais sagrados para os muçulmanos xiitas e é a cidade natal do clérigo conservador Ebrahim Raisi. Derrotado por Rohani nas eleições presidenciais em maio do ano passado, ele foi o principal rival do atual chefe de Estado iraniano no pleito.
O sogro de Raisi, o clérigo radical Ahmad Alamolhoda, também vive em Mashhad. Recentemente, Alamolhoda protestou contra a decisão de concertos musicais voltarem a ser permitidos no país.
Os protestos atuais começaram um dia depois de o chefe da polícia da capital Teerã anunciar que mulheres que contrariem as regras de uso do véu não serão mais presas, mas que, em vez disso, deverão frequentar aulas educativas.
"Clérigos se comportam como deuses"
O alerta de Jahangiri parece sugerir que o círculo em torno de Raisi e Alamolhoda exortou o povo a sair às ruas para protestar. Agora, no entanto, as manifestações claramente saíram de seu controle. No início, os protestos eram claramente conservadores, com menções também a problemas sociais, como críticas ao aumento do custo de vida no país.
Depois, porém, o tom mudou. Os protestos se tornaram cada vez mais direcionados contra o establishment religioso do país – tanto contra os privilégios materiais dos líderes religiosos quanto contra o curso social e político que estes estão impondo ao Irã.
Segundo um relatório da rede britânica BBC, os manifestantes entoaram coros como "O povo está mendigando; os clérigos agem como deuses". Outros meios de informação relataram que, na cidade de Abhar, no noroeste do país, a população queimou fotos do aiatolá Ali Khamenei.
O povo também está se voltando contra a política externa que os líderes revolucionários estão impondo no país – especialmente contra as ambições hegemônicas que o governo do Irã vem demonstrando ter, principalmente desde o início da guerra da Síria, em 2011.
Ainda de acordo com a emissora britânica BBC, os manifestantes gritaram "nem Gaza, nem Líbano – minha vida pelo Irã". A mensagem é que a energia gasta pelos clérigos muçulmanos na política externa deveria ser direcionada para resolver os problemas internos do país.
Crítica a carências sociais
A população iraniana está preocupada com a alta taxa de inflação que assola o país desde o início dos anos 1970. Nos últimos anos do reino do xá Mohammed Reza Pahlavi, a inflação superava os 15%, enquanto que, nos anos 1990, sob o presidente Akbar Hashemi Rafsanjani, a taxa subiu para mais de 25%.
Nos anos seguintes, a inflação caiu, com algumas altas ocasionais, para pouco menos de 18%. O governo atual, de Rohani, nivelou a inflação para pouco abaixo de 9% – o patamar mais baixo em mais de 40 anos.
No entanto, muitos iranianos ainda estão insatisfeitos, também porque o próximo orçamento prevê cortes em programas de ajuda social. A população mais pobre será a mais afetada, e grande parte dela terá poucas chances de melhorar sua situação social num futuro breve – o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê uma taxa de desemprego de cerca de 12% nos próximos anos.
"Morte aos talibãs"
Soma-se a isso o fato de que os iranianos direcionam suas esperanças para as consequências positivas do acordo nuclear fechado, em 2015, entre o Irã e os países com poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas mais a Alemanha. Porém, a eliminação das sanções contra o Irã ainda não levou às tão esperadas melhoras na vida financeira da população.
Os manifestantes também estão culpando os líderes religiosos por isso – eles teriam gritado "morte aos talibãs", sugerindo que, em seus olhos, não há grande diferença entre clérigos xiitas iranianos e os extremistas sunitas no vizinho Afeganistão.
Se os protestos foram realmente incitados por clérigos muçulmanos conservadores, houve, como deu a entender o vice-presidente Jahangiri, um erro maciço de cálculo. O tiro teria saído pela culatra, com a insurgência se voltando claramente contra eles e contra a ordem política e social que criaram. Um manifestante disse à BBC que não estaria protestando contra Rohani, mas contra o sistema "podre".
O "punho de ferro da nação"
O governo iraniano iniciou uma resposta maciça contra os manifestantes, que deverão, segundo o alerta de um general, sentir "a mão de ferro da nação".
Até agora, ao menos 21 pessoas morreram nos protestos. Não se sabe quem são os responsáveis pelas mortes. O que parece certo é que as autoridades de segurança decidiram por um curso linha dura. De acordo com informações da agência de notícias ILNA, 200 manifestantes foram presos no fim de semana.
No entanto, está claro que muitos iranianos não se deixarão intimidar pela repressão do governo. Em vídeos divulgados nas redes sociais, milhares de pessoas são vistas protestando na capital, Teerã, e também em cidades como Isfahan e Chorramabad.
Possivelmente, as manifestações são apenas o início de uma série de protestos. Titular do Prêmio Nobel da Paz, a iraniana exilada Shirin Ebadi acredita que esses protestos se tornarão ainda maiores que as manifestações pós-eleitorais de 2009.
"Regime isolado do Irã não tem como sobreviver à crise"
Ao menos 21 pessoas foram mortas nos protestos contra o governo de Hassan Rohani no Irã, desencadeados no fim do ano pelo alto grau de descontentamento popular com a situação econômica nacional. Entre outros fatores, uma elevada taxa de inflação assola o país desde o início dos anos 1970.
Em entrevista à DW, o especialista em política iraniana Paulo Casaca prevê que o governo Rohani não sobreviva à atual onda de manifestações.
Casaca, que é fundador e diretor executivo do Fórum Democrático do Sul da Ásia (SADF), sediado em Bruxelas, também justifica a estratégia do chefe de Estado americano, Donald Trump, de manifestar interesse pelos iranianos descontentes: "Os EUA precisam transformar a 'política de tuíte' de seu presidente em políticas reais e apoiar inteiramente os protestos em curso no Irã, […] porque seu sucesso é crucial para os iranianos e a comunidade internacional."
DW: A razão principal por trás dos protestos populares no Irã é a frustração dos cidadãos com a situação econômica do país. Mas também há outros fatores que forçaram os iranianos a irem às ruas?
Paulo Casaca: Questões econômicas deram a partida a um movimento de protesto que rapidamente se transformou em algo maior, com o povo exigindo a troca do regime, o fim da teocracia e sua substituição por uma forma democrática de governo.
O senhor acha que os protestos podem escalar e levar à queda do regime teocrático do Irã?
Sim. Desta vez, esse regime isolado não tem como sobreviver à crise. Ninguém, dentro e fora do Irã, acredita mais na farsa dos "reformistas conservadores". O regime só a manteve intacta através de repressão. A questão é se as condições que permitiram, por exemplo, o regime da Síria continuar, apesar da impopularidade, também se aplicarão ao Irã.
A liberação feminina se transformou numa reivindicação-chave de grande parte dos manifestantes iranianos. A Arábia Saudita também parece estar gradativamente permitindo mais liberdade para as mulheres. Por que se está vendo um movimento feminista nesses dois países, neste momento?
A misoginia é uma marca registrada das velhas formas conservadoras do islã, a exemplo do wahabismo saudita ou de movimentos islâmicos modernos, como a Irmandade Muçulmana e o xiismo iraniano. A revolta contra a misoginia é uma força estrutural fundamental que desafia todas as formas de islamismo, especialmente no Irã, à medida que os países vão avançando culturalmente.
Os setores xiitas linha-dura do Irã acusam os Estados Unidos de estarem orquestrando os protestos. O senhor vê uma participação do governo do presidente Donald Trump?
Esse é o velho mantra do regime iraniano, toda vez que é confrontado com os movimentos cidadãos antigovernistas. A acusação de intervenção americana, no entanto, não pode ser levada a sério.
Na verdade, nos últimos anos, o Ocidente tem assumido uma postura conciliadora em relação ao Irã – a administração americana sob o ex-presidente Barack Obama é um bom exemplo dessa abordagem. Mas Trump reconhece que um regime erguido sobre a permanente narrativa de "morte à América" não pode ser amigo dos EUA. A abordagem de senso comum de Trump ainda precisa penetrar nas complexas estruturas de poder nos EUA (e em outras partes do Ocidente), que ainda estão dominadas por uma falta de compreensão da realidade do Irã.
Os EUA precisam transformar a "política de tuíte" de seu presidente em políticas reais e apoiar inteiramente os protestos em curso no Irã, não só devido à visão simplista de que eles são bons para os EUA, mas porque seu sucesso é crucial para os iranianos e a comunidade internacional.
Que papel tiveram as sanções americanas para o agravamento da situação econômica no Irã, indiretamente causando a revolta?
Nós presenciamos a desescalada das sanções de Washington até o princípio de 2017. As novas sanções americanas ainda têm que surtir efeito sobre a vida cotidiana dos cidadãos iranianos. Obama chegou a dar vários milhões de dólares para as autoridades iranianas que costumavam exportar terrorismo para a região, em vez de empregá-los no bem-estar dos iranianos.
Que opções o presidente Hassan Rohani tem para controlar a situação?
Rohani tem evitado o povo iraniano. Acho que ele não tem credibilidade doméstica, nem influência sobre o único instrumento que poderia funcionar na presente situação: repressão brutal. As Guardas Revolucionárias do Irã não dependem em absoluto dele, pois são controladas pelo líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei.