Ruth Costas
A menos de duas semanas para a entrada oficial da Venezuela no Mercosul, a decisão de completar a adesão de Caracas ao bloco a toque de caixa, aproveitando a suspensão do Paraguai, ainda é fonte de polêmicas dentro e fora do Brasil.
Autoridades paraguaias, que se opunham à entrada da Venezuela no bloco, apelaram contra a manobra no Tribunal de Justiça Arbitral do Mercosul.
Já as autoridades brasileiras são enfáticas ao explicar o apoio à iniciativa: negócios. Mas como exatamente o Brasil espera se beneficiar com a adesão de Caracas ao Mercosul? E o que explica a pressa em completar o processo de expansão do bloco?
Para analistas ouvidos pela BBC, dois fatores ajudam a entender esse senso de urgência do governo brasileiro: incertezas ligadas à política interna do país vizinho e o avanço da China em seu mercado.
Francine Jácome, diretora do Instituto Venezuelano de Estudos Sociais e Políticos, afirma que, nos últimos anos, os negócios do Brasil com a Venezuela se multiplicaram, favorecidos, em grande parte, por uma certa preferência do governo Hugo Chávez pelos investimentos e comércio com empresas brasileiras.
Agora, as eleições de outubro, aliadas às notícias sobre o câncer de Chávez, teriam gerado incertezas sobre os rumos das relações bilaterais. "O Brasil quer assegurar esses negócios institucionalizando as relações entre os dois países para que, no médio prazo, eles não sejam desfavorecidos por mudanças políticas", opina.
"O candidato da oposição (Henrique Capriles Radonski), em especial, parece mais favorável a uma maior diversificação das relações comerciais da Venezuela e provavelmente seria menos reticente a uma reaproximação com os Estados Unidos no médio prazo", concorda Fernando Portela, da Câmara de Comércio e Indústria Venezuelana-Brasileira (Cavenbra), em Caracas.
Apostas
Uma das promessas de Capriles é fazer a Venezuela voltar para a Comunidade Andina, bloco que inclui Bolívia, Colômbia, Peru e Equador, abandonado por iniciativa de Chávez.
Recentemente, ele declarou que a entrada no Mercosul poderia ser uma "grande oportunidade" para a Venezuela, mas apenas se o bloco mudar seu modelo de integração. Ao defender que Caracas deve reduzir sua dependência de importações, acrescentou: "Não quero dar emprego a brasileiros, mas sim a venezuelanos."
Para Portela, as perspectivas para os negócios brasileiros no país poderiam mudar no médio prazo – principalmente se a oposição ganhasse as eleições de outubro, mas também se houvesse uma transição dentro do chavismo, com Chávez cedendo mais espaço para outras lideranças por causa de sua doença.
"A Venezuela é a terceira economia da América do Sul e as relações econômicas e políticas com o país têm sido uma das grandes apostas do Brasil na região", avalia Pedro Silva Barros, do Instituto de Pesquisas Economicas Aplicadas (Ipea), centro de estudos ligado ao governo brasileiro que em 2010 abriu um escritório em Caracas.
"Incluir o país no Mercosul seria uma forma de institucionalizar e dar mais estabilidade para que essa relação se amplie, como ocorreu com a Argentina após a criação do bloco. Mas particularmente não entendo que esse processo esteja sendo realizado com pressa, já que a Venezuela solicitou seu ingresso em 2001 e Uruguai, Argentina e Brasil já haviam aprovado a entrada do país no bloco", opina Silva Barros.
China
Portela é quem aponta outro fator importante para o empenho brasileiro em levar adiante a expansão do Mercosul: a preocupação com a concorrência chinesa no mercado venezuelano.
"O Brasil quer ampliar as exportações de produtos manufaturados para a Venezuela, mas, nos últimos anos, elas vêm sofrendo principalmente com a competição com a China", afirma. "Até 2006, por exemplo, o país tinha uma considerável linha de exportações de celulares para a Venezuela que, aos poucos, perdeu espaço no mercado local."
Hoje, a China já é o segundo parceiro comercial da Venezuela, depois dos Estados Unidos. O Brasil ocupa a terceira posição.
O setor de construção é outro em que a concorrência é acirrada. Nos últimos anos, o BNDES prometeu mais de US$ 4 bilhões em crédito para financiar empreiteiras brasileiras na Venezuela. A China firmou um convênio prevendo US$ 20 bilhões para grandes projetos no país em 2010 e, pouco antes, um fundo conjunto foi formado para financiar US$ 12 bilhões em projetos de moradia, defesa e infraestrutura.
No geral, empresários brasileiros têm lucrado com o chavismo. Quando Chávez assumiu o poder, em 1999, as exportações brasileiras para o país vizinho eram de US$ 536 milhões. O esperado para 2012 é que o valor chegue a US$ 6 bilhões, embora as importações brasileiras de produtos venezuelanos não devam crescer muito mais do que o total de US$ 1,2 bilhão registrado no ano passado.
Em 2011, a Venezuela foi responsável por 10% do superávit da balança comercial brasileira.
Reorientação comercial
Portela diz que parte desse aumento do comércio Brasil-Venezuela pode ser atribuído ao empenho do líder venezuelano em redirecionar as relações econômicas do país do "norte" – mais precisamente, dos Estados Unidos – para o "sul" do continente. A isso, somam-se os problemas políticos que até 2010 reduziram o comércio com a Colômbia.
Chávez investiu em parcerias com países que passavam fora do radar venezuelano – como Irã, Rússia e, com especial ênfase, Brasil e China.
Além disso, segundo avalia Jácome, o setor produtivo do país encolheu por causa da instabilidade econômica e dos conflitos entre o governo e elites econômicas. O resultado foi um aumento substancial da dependência de importações, pagas com recursos do petróleo – hoje responsáveis por 80% do que os venezuelanos consomem.
Desde 2005, quando uma aliança estratégica foi firmada entre Chávez e o presidente Luíz Inácio Lula da Silva, a corrente de comércio entre os dois países se multiplicou mais de sete vezes, segundo Barros.
A pauta de exportações é variada, incluindo desde manufaturados até alimentos – ou bois vivos. O principal cliente dos exportadores brasileiros é o governo venezuelano, que abastece com produtos básicos do Brasil as redes de supermercados estatais subsidiadas Mercal e PDVAL, além de importar bens e serviços brasileiros para suas obras de infraestrutura.
"Sobre as importações de produtos básicos do Brasil por órgaos ligados ao governo, não há tarifas, e a liberação de dólares para o pagamento das transações ocorre sem dificuldades. Já a importação de manufaturados é mais difícil – e é aí que o Brasil pode avançar", avalia Portela.
Investimentos
Motivadas por essa aproximação bilateral, algumas empresas privadas brasileiras se animaram a investir na Venezuela depois de 2005.
Pelo menos até 2009, quando a economia Venezuelana entrou em recessão, empresários brasileiros desembarcavam no aeroporto de Caracas entusiasmados para conferir as oportunidades de negócios no país, enquanto empresas americanas e europeias estavam desesperadas para sair da Venezuela, alarmadas pela onda de nacionalizações implementada por Chávez.
"Estamos vivendo uma onda de nacionalizações na Venezuela, menos das brasileiras", chegou a declarar Chávez na época.
Entre as brasileiras que entraram no país nessa época estão a Gerdau, a Braskem, a Alcicla, a Natura, e o Grupo Ultra – entre as construtoras que iniciaram ou ampliaram projetos no país, estão a Camargo Correa, a Adrade Gutierrez e a Queiroz Galvão, além da Odebrecht, que está na Venezuela há mais tempo.
Mais recentemente, algumas empresas brasileiras, como a Braskem, revisaram seus projetos em função das dificuldades para se fazer negócios na Venezuela. Mas o empenho do governo brasileiro em fazer as relações bilaterais deslancharem não parece ter diminuido.
O estímulo a investimentos e o estabelecimento de esquemas de cooperação técnica são uma forma de tornar a relação mais vantajosa aos olhos dos venezuelanos – já que o comércio é claramente favorável ao Brasil.
Um dos projetos bilaterais que vem sendo costurado com apoio do Ipea, por exemplo, é a integração das atividades econômicas do sul da Venezuela com a região amazônica brasileira.
Em 2011, Chávez e a presidente Dilma Rousseff se comprometeram a elaborar um Plano de Desenvolvimento Integrado para as duas regiões.
A Embrapa também tem atuado no país, e a Caixa Econômica Federal vem apoiando a Venezuela na versão local do programa Minha Casa, Minha Vida – o Grande Missión Vivienda, do qual participam 20 empresas brasileiras, com contratos de mais de US$ 30 milhões.
Contradições
Mesmo com esses esforços, ainda restam dúvidas sobre o nível de apoio ao Mercosul entre setores produtivos venezuelanos.
"Para muitos empresários do país, o Mercosul é uma ameaça por ampliar a competição com produtos brasileiros", diz Portela. Barros acrescenta que, por isso, o processo de redução de tarifas sobre produtos venezuelanos deve tomar tempo e exigir intensa negociação.
Segundo os analistas, o maior interesse da Venezuela no bloco estaria, na realidade, no campo político.
Para Jácome, o governo venezuelano vê a adesão ao Mercosul como uma oportunidade para ganhar legitimidade e deve pressionar para que o bloco amplie seu foco em temas políticos, deixando de lado questões comerciais – o que iria contra o interesse brasileiro.
"O governo venezuelano é contra a idéia liberal de redução das barreiras ao comércio, que é a base do Mercosul, então é difícil prever quanto empenho fará para se adequar às regras do bloco", afirma a analista.
Ela diz que a entrada de Caracas no Mercosul também deve dificultar a costura de acordos com outros países. "O Mercosul já tem um acordo comercial com Israel, por exemplo, e a Venezuela rompeu as relações diplomáticas com o país", lembra Jácome.