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Haiti se tornou laboratório para o Brasil, diz embaixador

Às vésperas de deixar o comando das atividades do governo brasileiro no Haiti, o embaixador Igor Kipman diz que sai do cargo num momento em que o Brasil exerce, no país caribenho, papel de ator principal.

"O Haiti é, sem sombra de dúvida, o palco mais importante para a nossa política externa. Do ponto de vista de exposição, de interação com parceiros, é o posto mais importante da carreira", diz Kipman à BBC Brasil, em entrevista concedida na embaixada brasileira em Porto Príncipe.

À frente da missão desde 2008, Kipman vivenciou dois dos episódios mais trágicos da história haitiana recente: o terremoto de 2010, uma das maiores catástrofes naturais da era moderna, e a epidemia de cólera que sucedeu o tremor.

No período, diz o embaixador, o Brasil intensificou os esforços de cooperação iniciados em 2004, mesmo ano em que o país assumiu a chefia do braço militar da Minustah (Missão da ONU para a Estabilização no Haiti).

Kipman, que assumirá a embaixada na Suíça, afirma ainda que a ênfase dada pelo Brasil ao Haiti nos últimos anos transformou o país num laboratório para experimentos brasileiros nas áreas civil e militar, o que, segundo ele, tem beneficiado ambas as nações.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil – No período em que o senhor foi embaixador no Haiti, o país ganhou muita importância para a diplomacia brasileira. Como isso se fez sentir em seu trabalho na embaixada?

Kipman – O Brasil mudou sua atitude em relação ao Haiti em 2004, por uma determinação do presidente Lula. Ele decidiu que era momento de o Brasil estender uma mão solidária ao Haiti, o país mais pobre do Ocidente. Desde então, o Brasil tem aqui posição de ator principal.

A embaixada é uma espécie de coordenadora de atividades não só do governo brasileiro: temos uma presença aqui do Estado brasileiro, incluindo sociedade civil, com inúmeras ONGs. De 2008 pra cá, tentei aproximar esforços para evitar duplicidade.

BBC Brasil – O que mudou após o terremoto em 2010?

Kipman – Tínhamos um elenco importantíssimo de 30 projetos de cooperação técnica em saúde, agricultura, justiça, até que houve o terremoto, que há quem diga foi a maior catástrofe natural da era moderna.

Diferentemente do tsunami na Indonésia e do furacão Katrina em Nova Orleans (EUA), aqui o terremoto afetou capital do país, que concentra todos os serviços. Derrubou todos os prédios públicos exceto um ministério, matou cerca de 30% da força de trabalho do governo. O Estado ficou por um período sem capacidade de reação.
 

Foi uma situação de emergência em que Brasil, mas não só, atuou de forma extraordinária. O terremoto foi na terça, no domingo começou a funcionar o hospital da Força Aéra, que fez milhares de intervenções, centenas de cirurgias. Entre janeiro e maio, houve mais de 200 voos da FAB com ajuda humanitária.

Passada a fase de emergência, não só retomamos projetos anteriores como passamos a implementar mais alguns. Desde que estou aqui, posso afirmar que sinto crescimento da presença brasileira em todos os níveis, seja político, em ajuda humanitária ou em cooperação técnica.

Para exemplificar esse significado da presença brasileira aqui, basta dizer que, nesses quatro anos em que estou aqui, organizei três visitas de presidente da República. Isso você não verá em outros países.

BBC Brasil – Esse crescimento exponencial da presença brasileira no Haiti não gera riscos de ingerência no país? No Brasil, diz-se que atuação das Forças Armadas aqui recuperou o moral da instituição e inspirou a política de segurança atualmente implantada nas favelas do Rio. O Haiti não pode se tornar uma espécie de laboratório para experimentos brasileiros?

Kipman – O Haiti é um laboratório para nós, nas áreas militar e civil, de governo e de sociedade civil. Aqui temos aprendido muito na área de cooperação. Desde 2004, temos feito experiências com cooperação triangular. Já tivemos projeto Canadá-Brasil-Haiti na área de saúde, já tivemos Espanha-Brasil-Haiti na área de reflorestamento. Isso tudo é aprendizado que fica. É amplamente benéfico para Haiti e extremamente interessante para nós.

Mas não há ingerência porque estamos aqui a convite do governo haitiano e por determinação do Conselho de Segurança da ONU, com mandato absolutamente correto do ponto de vista do direito internacional. Quanto aos militares, não concordo que recuperaram o moral aqui, porque não o tinham perdido.

BBC Brasil – Críticos também mencionam os altos custos da operação para o Brasil e questionam seus benefícios.

Kipman – Vemos crítica em relação ao custo, mas o retorno é intangível. O militar que passa seis meses aqui volta com outra visão de mundo. Vendo aqui realidade muito mais dura que a sua, volta reconciliado com Brasil. Há ganho a nível pessoal, cultural, de educação.

O ganho não é só na área militar. Os técnicos da Embrapa, de saúde, de direitos humanos que vêm trazem aporte, mas levam de volta aprendizado também.

BBC Brasil – No ano passado, o Conselho de Segurança da ONU determinou o início da retirada das tropas estrangeiras (Minustah) no Haiti. Há margem para novas reduções no contingente?

Kipman – Com o terremoto, o Conselho autorizou um aumento para atender à emergência. Hoje estamos retornando quase aos níveis anteriores. Ainda há muito a fazer, mas a emergência passou, e a epidemia de cólera está controlada.

Representa o início de uma retirada gradual? Esperamos que sim. Ninguém tem objetivo de se perenizar no Haiti, fazer disso um laboratório permanente. Mas há objetivo que se superpõe a esse: o de não precisar voltar. Esta já é a sétima missão da ONU no país, porque as demais se retiraram prematuramente, antes de o país assumir o desenvolvimento com suas próprias mãos.

BBC Brasil – Como avalia o processo de ampliação da Polícia Nacional do Haiti?

Kipman – Em 2004, havia força policial no país com cerca de 3 mil homens. Hoje ela tem mais de 10 mil. Ainda precisam de treinamento e equipamento, que estamos proporcionando juntamente com França, Canadá, Estados Unidos.

Meta atual é de 20 mil, mas já houve melhora grande. Em outubro, haverá discussão na ONU de renovação do mandato da Minustah, onde será discutida provavelmente uma nova redução do contingente para 2012, acredito eu, em função da melhoria das condições da Polícia Nacional do Haiti.

Desde 2008, 2009 defendo que temos que discutir internamente no Brasil e com parceiros uma estratégia de saída, que é fundamental.

BBC Brasil – Pelo andar da carruagem, o senhor vislumbra um prazo para a retirada total das tropas?

Kipman – Há vários cenários em discussão. Alguns colocam 2016, outros 2018, há um cenário que fala em 2020. É difícil me arriscar a dizer, mas acho que o mais realista seria 2018. Mas isso é uma previsão quase profética, porque há eleições aqui novamente em 2015, e o novo governo pode dizer: obrigado, vocês nos ajudaram, mas…

BBC Brasil – Mas o presidente Michel Martelly já anunciou a intenção de reconstruir o Exército haitiano para substituir as forças da ONU, inclusive em discurso dentro do batalhão brasileiro.

Kipman – Nenhum povo gosta de ver seu país com forças estrangeiras. O haitiano quer que nós vamos embora? Quer. Mas todos os níveis, do presidente aos moradores de Cité Soleil, entendem que não pode ser uma retirada precipitada e imediata, com risco de ter retrocesso às condições de 2004, quando áreas de Porto Príncipe eram controladas por gangues.
 

Em 2004, quando escurecia, não havia rigorosamente nenhuma iluminação, e não se via vivalma na rua. As pessoas se recolhiam, era insegurança total. Hoje tem comércio, tem gente. Todos entendem que não é ainda o momento, por isso que defendo retirada gradual à medida que a Polícia Nacional Haitiana e ou a nova força que o presidente mencionou possam se ocupar sozinhas das forças do país.

BBC Brasil – Não seria interessante trocar o comando da vertente militar da Minustah? É raro um único país, no caso o Brasil, permanecer por tanto tempo à frente de uma missão multilateral.

Kipman – A que se deve a perenização do nosso comando? Ao amplo êxito da Minustah, reconhecido por todos os parceiros. Enquanto a ONU nos pedir que comandemos, comandaremos. Conheci aqui no Haiti todos os force commanders (comandantes da força), e todos foram excepcionais.

BBC Brasil – Como o governo e o povo haitianos reagiram à decisão do governo brasileiro de conceder cem vistos mensais a cidadãos do país?

Kipman – Houve um equívoco, que foi culpa nossa, do governo, de não explicar a medida, porque falaram que estabelecemos cotas. Não foi isso. Qualquer haitiano que venha aqui (à embaixada) para se candidatar a um visto permanente ou de trabalho, temporário, continua com todos os direitos de qualquer cidadão no mundo. Criou-se uma cota de concessão além do normal. Não é uma restrição, é uma ampliação de direito.

O governo haitiano ficou lisonjeado e feliz com essa abertura, porque obviamente o problema de desemprego no país é seríssimo e não será resolvido em 15 dias. O haitiano que aqui não encontra oportunidades de trabalho busca não só o Brasil: há cerca de 75 mil haitianos nas Bahamas, dezenas de milhares em Guadalupe, na Martinica, na Guiana Francesa, milhões nos Estados Unidos, na República Dominicana.

A reação da população foi de procura imensa, para buscar informações sobre o que é necessário para se candidatar ao visto. Não estamos concedendo ainda grande quantidade porque há três exigências: ter passaporte, ser residente no Haiti, comprovado por atestado de residência, e apresentar atestado de bons antecedentes. Aqui isso é relativamente complicado, leva pelo menos um mês para produzir a documentação.

BBC Brasil – Por que cem vistos por mês?

Kipman – Do terremoto para cá, houve ingresso de cerca de 70 e 80 haitianos ilegais pela fronteira norte do Brasil ao mês. Ao conceder cem vistos, damos margem para absorver os que estão sendo submetidos a maus tratos pelos coiotes, para a travessia pela floresta, com risco de saúde e morte.
 

Abre-se porta para essa cota que entrava ilegalmente entrar de cabeça erguida em Guarulhos, Brasília, Manaus, pelos aeroportos.

BBC Brasil – Esses critérios não vão peneirar os postulantes ao visto, dificultando que os mais pobres o obtenham?

Kipman – Sem dúvida, mas aí não há muito o que fazer. Se ele vai ao Brasil, depende de comprar bilhete aéreo também. Em vez de pagar bilhete até Quito e o coiote, vai economizar o coiote.

BBC Brasil – Mas chegar ao Brasil só com o visto, sem apoio para aprender português e se inserir no mercado de trabalho, não é pouco?

Kipman – Mas há apoio. Ilegais têm apoio de igrejas, de governos locais. O Ministério do Trabalho está organizando elenco de associações, de entidades que se dispuseram a prestar apoio a eles. Isso está sendo feito de forma muito profissional.

BBC Brasil – O senhor vai sentir falta do período aqui?

Kipman – O Haiti é, sem sombra de dúvida, o palco mais importante para a nossa política externa. Do ponto de vista de exposição, de interação com parceiros, é o posto mais importante da carreira. Mas também pelas características do país, as dificuldades, acho que nenhum embaixador deveria ficar aqui mais de três anos. Estou indo para o quarto, então é o momento de partir.

Lá na Suíça será muito diferente e sem dúvida sentirei falta de uma porção de coisas. Por outro lado, poderei caminhar sozinho e livremente pela rua, poderei ir ao cinema toda semana, terei tempo para ler bons livros. A Suíça tem outros tipos de problema, não está sujeita a terremotos nem furacões, mas também tem atividades muito importantes para o governo brasileiro.

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