Guerra de desinformação contra a Rússia
Lorenzo Carrasco e Geraldo Lino
MSIa
Um dos pilares do fustigamento permanente que os EUA e seus apêndices europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) têm mantido contra a Federação Russa, como elemento-chave de um inócuo esforço de preservação de uma hegemonia já superada pela dinâmica histórica, é uma ostensiva e virulenta campanha de desinformação sobre o país.
Os exemplos são legião, com a prevalência de uma indisfarçada duplicidade na apresentação dos fatos, criticando e cobrando da Rússia atitudes que costumam ser simplesmente ignoradas quando se referem a ocorrências nas potências ocidentais.
A destruição do Voo MH17 da Malaysia Airlines, em 2014, foi prontamente atribuída a Moscou, apesar de ter ocorrido sobre território ucraniano e de os rebeldes do Leste do país não disporem de mísseis antiaéreos como o que derrubou o avião malaio. Após quatro anos, uma investigação internacional encabeçada pela Holanda apenas confirmou a acusação inicial, mesmo tendo suprimido informações cruciais como os registros do controle de tráfego aéreo ucraniano, responsabilizando três oficiais militares russos e um líder rebelde ucraniano pela tragédia.
A vitória eleitoral de Donald Trump sobre Hillary Clinton, em 2016, que surpreendeu a muitos, também foi parar na conta das maquinações do presidente russo Vladimir Putin, apesar de nenhuma evidência minimamente plausível ter sido apresentada para sustentá-la. Mesmo tendo sido amplamente refutada, inclusive, por elementos da inteligência estadunidense, continua sendo repetida como parte da campanha contra a Rússia.
A mesma encenação envolveu o suposto envenenamento do ex-oficial de inteligência russo Sergei Skripal e sua filha Yulia, na Inglaterra, em 2018, por um agente químico fabricado na antiga União Soviética, o Novichok, que, se fosse real, não os teria deixado vivos, bem como os policiais e funcionários de saúde que os atenderam. Desde 2020, não há qualquer notícia deles, a despeito de repetidas tentativas da família e do governo russo junto às autoridades britânicas. Pode-se imaginar o escândalo que seria feito, se um caso semelhante tivesse ocorrido na Rússia com cidadãos do Reino Unido ou outro país ocidental.
Jornalistas em franca batalha para atrair a atenção e fazerem perguntas para Vladimir Putin na Conferência de Imprensa, Kremlin 23DEZ2021. Foto Kremlin.ru
O conflito na Ucrânia tem proporcionado numerosas oportunidades para a manifestação desse aparato de desinformação. A começar pela assim chamada “revolução da Praça Maidan”, em 2014, que resultou na deposição do presidente pró-russo Viktor Yanukovich por um golpe de Estado instigado pelos EUA e seus satélites europeus. Uma consequência imediata foi o plebiscito em que mais de 90% da população da Crimeia, de população predominantemente russa, votou pela reintegração da península à Federação Russa.
Apesar do precedente da secessão do Kosovo da Sérvia, em 2008, amplamente incentivada e celebrada pelas potências da OTAN que ocupavam a região desde a intervenção militar de 1999, o caso da Crimeia é rotulado como uma “anexação” forçada por Moscou. Recorde-se que a península era parte da Rússia até 1957, quando foi “transferida” à Ucrânia pelo então líder soviético, o ucraniano Nikita Krushchov.
A operação mais recente envolve uma alegada ameaça de invasão da Ucrânia por forças militares russas, pretexto que tem justificado toda sorte de ameaças e sanções contra Moscou e gerando uma atmosfera de confronto altamente carregada, com a possibilidade de ocorrência de incidentes perigosos que podem resultar em uma escalada militar de alto risco.
E o mesmo procedimento se observa na alegação de que a estatal russa Gazprom teria interrompido os fornecimentos de gás natural à Alemanha pelo gasoduto Yamal-Europa, como forma de contrapressão pela procrastinação alemã na autorização final para a entrada em operação do gasoduto Nord Stream 2, uma das pedras no sapato dos estrategistas de Washington, Londres e Bruxelas. A realidade parece ser mais prosaica, pois, segundo o presidente Putin, as companhias importadoras alemãs e francesas, simplesmente, não fizeram pedidos de compra por essa rota (RT, 23/12/2021).
A imprensa brasileira, fortemente influenciada por tal aparato de desinformação, não tem ficado atrás das suas contrapartes da América do Norte e da Europa, na cobertura dos assuntos russos. Um exemplo é uma reportagem do New York Times republicada no “Estadão” de 22 de dezembro, com o título “Como o Kremlin está militarizando a sociedade russa”. O lide sintetiza: “Nos últimos oito anos, o governo russo promoveu a ideia de que a pátria está cercada de inimigos, filtrando o conceito por meio de instituições nacionais como escolas, forças armadas, mídia e Igreja Ortodoxa.”
Em tom ostensivamente depreciativo, os autores da nota afirmam que o patriotismo incentivado pelo governo é “uma disciplina cada vez mais importante na Rússia”.
“Agora, enquanto a Rússia reúne tropas na fronteira com a Ucrânia, estimulando os temores ocidentais de uma invasão iminente, a constante militarização da sociedade russa sob o presidente Vladimir Putin de repente se torna grande e parece ter convencido a muitos com a ideia de que uma luta poderia estar se aproximando” – afirmam.
Em um parágrafo verdadeiramente ultrajante, diz o texto: “E todos estão unidos pela memória quase sagrada da vitória soviética na 2ª Guerra – aquela que o Estado aproveitou para moldar uma identidade de uma Rússia triunfal que deve estar pronta para pegar em armas mais uma vez.”
A memória da Grande Guerra Patriótica, como os russos chamam a sua participação na II Guerra Mundial, não precisou muito da ação do Estado, inclusive o soviético, para se consolidar na alma da população russa. Basta recordar que a União Soviética perdeu 27 milhões dos seus 170 milhões de habitantes, entre 1941 e 1945, de longe, o maior número entre os participantes do conflito (em segundo lugar, bem atrás, veio a China, com 17 milhões).
Apenas nas cruciais batalhas de Stalingrado, Kursk e da Bielorrússia (Operação Bagration), as baixas fatais do Exército Vermelho superaram o total combinado das mortes militares e civis do Reino Unido e dos EUA. É quase inexistente alguma família russa, bielorrussa ou ucraniana que não tenha perdido parentes na guerra, razão pela qual, nas celebrações russas do Dia da Vitória (9 de maio), os desfiles militares são sempre encerrados pelo Batalhão dos Imortais, civis que desfilam com retratos de seus entes queridos mortos.
Má vontade idêntica se observa no artigo de Filipe Barini, no Globo de 23 de dezembro: “Trinta anos após fim da URSS, Rússia não superou trauma da transição econômica e da perda de poder.” Para o autor, a “crise dos anos 1990 ajudou a estabelecer padrões para a Rússia atual, que apesar de uma situação econômica mais confortável, vivencia retrocessos democráticos cada vez mais palpáveis”.
Presidente Vladimir Putin na Conferência de Imprensa, 23DEZ2021. Foto Kremlin.ru
Até mesmo em um texto não totalmente tendencioso, que consegue em várias passagens descrever alguns dos problemas vividos pela Rússia pós-soviética, o ranço contra o “autocrata” Putin é evidente, como no parágrafo seguinte: “Nos 20 anos seguintes, incluindo quatro como primeiro-ministro, Putin imprimiu sua ideia de grandeza da Rússia. Em 2005, durante o discurso sobre o Estado da União, afirmou que o fim da União Soviética foi a ‘maior tragédia’ do século XX. Dois anos depois, na Conferência de Segurança de Munique, decretou o ‘fim’ do mundo unipolar comandado pelos EUA, recolocando Moscou no centro do debate político global. Em 2014, ele anexou a Península da Crimeia, punindo a ex-república soviética da Ucrânia por ter levado ao poder um governo pró-Ocidente [grifos nossos].”
Todo esse quadro é característico do funcionamento do velho aparato midiático anglo-americano de desinformação, estabelecido no período da II Guerra Mundial, em torno de impérios de imprensa como as do canadense Max Aitken (vulgo Lorde Beaverbrook) e do estadunidense Henry Luce, depois sucedidos por Conrad Black, Rupert Murdoch e outros menos votados, com notórios vínculos com os respectivos serviços de inteligência. Como adendo, recorde-se que o brasileiro Assis Chateubriand e seu sucessor putativo, Roberto Marinho, tinham estreitos vínculos com tais redes internacionais. Em essência, o uso constante do cachimbo geopolítico costuma entortar as bocas midiáticas.