Search
Close this search box.

Golpe institucional aprofunda crise na Venezuela

A decisão do Supremo Tribunal de Justiça de transferir para si os poderes legislativos alçou a crise política na Venezuela a uma nova dimensão. O golpe institucional foi amplamente condenado internacionalmente e denunciado pela oposição como a confirmação de que o país, em grave crise econômica e com o governo Nicolás Maduro acuado, vive uma ditadura.

Instalada em 2016 com inédita maioria antichavista, a Assembleia Nacional, o parlamento unicameral venezuelano, era tida como último bastião opositor perante o governo Maduro, que há anos é questionado por se distanciar dos modelos democráticos com uma série de medidas autoritárias.

"É um golpe de Estado. Na Venezuela não há Constituição, Nicolás Maduro tem todo o poder", afirmou o presidente da Assembleia Nacional, Julio Borges, na quinta-feira (30/03). "Isso não tem outro nome, senão golpe de Estado e ditadura."

Em meio a uma severa recessão, aumento da inflação e falta de comida e remédios, a manobra marca o ápice de uma campanha de Maduro para reduzir o papel da oposição, após a detenção e prisão, sem julgamento, de líderes antichavistas, a suspensão do referendo sobre a revogação de seu mandato e a manipulação do Supremo, na prática um apêndice do Executivo.

Maduro, que praticamente já governa por decreto desde 2015, concentra agora todo o poder na Venezuela. Alguns setores da oposição chamaram uma intervenção militar, mas a posição do Exército, que tem setores descontentes, mas em grande parte é chavista, ainda é incerta. Para os próximos dias, os opositores prometeram ocupar as ruas.

"O tribunal decretou formalmente a ditadura que, desde 2014, estamos denunciando na Venezuela", afirmou no Twitter o opositor Leopoldo López. Ele cumpre pena em uma prisão militar desde 2014, e a mensagem foi postada por sua esposa. "Às ruas! Apenas com mobilização popular regataremos nossa liberdade e democracia."

Outro líder da oposição, o governador do estado de Miranda e ex-candidato presidencial, Henrique Capriles, afirmou que uma ditadura está em curso na Venezuela:

"A comunidade internacional precisa de que mais provas para terminar de fixar uma posição unânime e firme de que na Venezuela temos um governo à margem da Constituição? Na Venezuela já há uma ditadura."

Governo entrincheirado

O Supremo Tribunal assumiu as competências do Legislativo com o argumento de que este se mantém "em desacato" desde o ano passado. A Assembleia, afirma a corte, descumpre a lei por ter empossado três deputados que foram condenados por suposta fraude eleitoral.

Mas o estopim para a decisão do tribunal parece ter sido o pedido do Legislativo – controlado pela oposição – para que a Organização dos Estados Americanos (OEA) ativasse a Carta Democrática Interamericana, o que Maduro chamou de traição à pátria.

Na terça-feira, o TSJ divulgara também uma sentença na qual retira a imunidade dos parlamentares, o que abre caminho para que sejam processados. No mesmo dia, Maduro afirmou ter recebido poderes especiais do tribunal, apesar de ser uma atribuição do Legislativo, e não do Judiciário, determinar se o presidente pode governar por decreto.

A comunidade internacional pediu o retorno urgente à normalidade democrática. "Se se rompe a divisão de poderes, se rompe a democracia, afirmou o chefe do governo espanhol, Mariano Rajoy. "É insuportável como o presidente Maduro usa a população do seu país como refém para suas próprias ambições de poder", afirmou o porta-voz da chanceler federal alemã, Angela Merkel.

O próprio Maduro, porém, parece alheio à pressão internacional e se absteve do debate. Nesta quinta-feira, ele se encontrou com o embaixador da Arábia Saudita e apareceu duas vezes na televisão estatal, sem fazer comentários sobre a decisão do TSJ. Quem falou foi a ministra do Exterior, Delcy Rodriguez, que denunciou "uma conspiração da direita regional para atacar a democracia venezuelana".

Poucos instrumentos de pressão

Além de pressionar, parece não haver mesmo muito o que a comunidade internacional possa fazer. A OEA tem se mostrado dividida e não consegue alcançar o número mínimo de 24 de seus 35 países-membros (na prática 34, pois Cuba pertence à OEA, mas não participa desde 1962) para tomar uma decisão sobre a Venezuela. Ainda assim, é a essa instituição que a oposição venezuelana recorre, pedindo a ativação da Carta Democrática.

O vice-presidente da Assembleia Nacional, Freddy Guevara, pediu à OEA que acelere a ativação da Carta Democrática. "É um golpe de Estado e tem que contar com o rechaço de toda a comunidade internacional", afirmou à agência de notícias Efe.

Aprovada em 2001 em Lima, o documento é um mecanismo da OEA para restituir a ordem democrática num de seus Estados-membros e prevê, em último caso, a suspensão do país caso seja alcançado o quórum de dois terços dos votos. A Carta Democrática Interamericana foi aprovada depois de o governo de Alberto Fujimori ter dado um "autogolpe" de Estado em 1992, fechando o Congresso e o Judiciário para elaborar uma nova Constituição no Peru. Isso permitiu que ele fosse reeleito três vezes consecutivas, o que a carta magna anterior não permitia.

Aposta na diplomacia

O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, denunciou que houve um "autogolpe de Estado" na Venezuela e considerou urgente a convocação de um Conselho Permanente da organização no âmbito do artigo 20 da Carta Democrática. "Calar perante uma ditadura é a indignidade mais baixa na política", afirmou.

Num relatório já em 14 de março, Almagro solicitara a suspensão da Venezuela da organização se não fossem convocavadas eleições gerais em 30 dias. Diante desse pedido, 14 países da OEA, incluindo o Brasil, decidiram exigir do governo Maduro um calendário eleitoral e a liberação de presos políticos.

No entanto, o passo foi insuficiente para ativar o processo de suspensão do país caribenho solicitado pelo secretário-geral, já que são necessários aos menos 24 países para tomar decisões desse nível na OEA. Os 24 seriam necessários também para convocar uma assembleia de chanceleres, que poderia iniciar gestões diplomáticas entre governo e oposição, uma outra via possível de ação.

Nesta mesma semana, 20 dos 35 países-membros da OEA pactuaram uma declaração conjunta na qual se comprometem a concretizar um roteiro "no menor prazo possível" para "apoiar o funcionamento à democracia e o respeito ao Estado de Direito" na Venezuela. Ou seja, eles deixaram claro que vão insistir na diplomacia e tentar mediar a crise política na Venezuela, apesar de o governo Maduro rechaçar totalmente que a OEA desempenhe esse papel.

Comunidade internacional condena violação da democracia na Venezuela

A decisão do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) da Venezuela em assumir as competências do Congresso venezuelano causou uma onda de reações de governos mundo afora. A maioria demonstrou preocupações com a defesa dos valores democráticos e reiterou a importância da separação clara dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

O Supremo, controlado pelo chavismo, decidiu assumir nesta quarta-feira (29/03) o poder parlamentar. Desde que passou para as mãos da oposição, em janeiro de 2016, a Assembleia Nacional foi desacreditada pelo TSJ, por ter incorporado três deputados indígenas cujas eleições foram questionadas pelo Executivo.

A União Europeia (UE) advertiu que a decisão do Supremo da Venezuela de assumir as competências do Parlamento "está comprometendo" os poderes constitucionais da Assembleia Nacional, eleita democraticamente pelo povo venezuelano.

A porta-voz da Alta Representante da UE para as Relações Exteriores, Maja Kocijanocic, afirmou que a situação está sendo acompanhada "de muito perto" por Bruxelas e apontou que a UE está ponderando "as próximas etapas". Mas ao ser questionada se pode haver sanções contra autoridades venezuelanas, a porta-voz afirmou que "nesta fase é prematuro avançar a natureza dessas etapas".

A porta-voz leu uma declaração da chefe da diplomacia europeia, Federica Mogherini, que recordou que "o pleno respeito à Constituição, os princípios democráticos, o Estado de Direito e a separação de poderes são cruciais para que o país possa alcançar uma saída pacífica para a difícil situação que atravessa e recuperar a estabilidade política".

"Para tal, é de extrema importância estabelecer um calendário eleitoral claro e respeitar a Assembleia Nacional e todos os seus membros, como previsto na Constituição", afirmou Mogherini.

O presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, considerou que as recentes decisões do Supremo venezuelano violam a democracia e o princípio da separação de poderes. "Hoje é um dia muito triste para a democracia. A América Latina tem vivido mudanças importantes e positivas nos últimos anos, mas, hoje, deploramos que a Venezuela tenha dado um passo atrás na democracia. Uma democracia respeita a sua própria Constituição", salientou.

A Alemanha acusou o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de manter a população do país como "refém" em sua batalha com o Congresso. O porta-voz do governo alemão, Steffen Seibert, pediu ao país para "voltar aos princípios democráticos e da separação dos poderes". Ele também afirmou que "é intolerável como o presidente Maduro está fazendo a população de seu país refém para sua própria ambição de poder".

"Forças externas"

A Rússia apelou ao diálogo na Venezuela, pedindo a "forças externas" que se abstenham de interferir numa "questão interna". "É muito importante que a lógica do diálogo se imponha sobre a lógica da confrontação. As forças externas não devem colocar mais lenha na fogueira no conflito interno da Venezuela com suas declarações e ações", afirmou a porta-voz do Ministério do Exterior russo, Maria Zakharova.

"Defendemos o princípio da não ingerência nos assuntos internos", repetiu, numa declaração divulgada na página de internet do ministério. A porta-voz acrescentou que a Rússia está "analisando atentamente os aspetos legais e as consequências" da decisão tomada em Caracas. Para Moscou, "qualquer posição dos órgãos de poder, das forças políticas e sociais deve se basear na Constituição do país".

Já o presidente do governo da Espanha, Mariano Rajoy, advertiu para o rompimento da democracia no país. "Se for rompida a divisão de poderes, será rompida a democracia. Pela liberdade, democracia e o Estado de Direito na Venezuela", escreveu em sua conta no Twitter.

O Departamento de Estado dos EUA emitiu um comunicado no qual acusa o Supremo da Venezuela de minar a democracia, ao atribuir a si próprio as competências parlamentares. "Consideramos que é um grave revés para a democracia na Venezuela", diz o texto.

"Pedimos ao governo venezuelano que permita à Assembleia Nacional, democraticamente eleita, que desempenhe as suas funções constitucionais, que realize eleições [regionais] o mais rápido possível e que liberte imediatamente todos os presos políticos", prossegue a nota.

Itamaraty: "Radicalização política"

Num comunicado, o Brasil também condenou a decisão do TSJ, "que retirou da Assembleia Nacional as suas prerrogativas, numa clara violação da ordem constitucional" e afirmou que "vê com grande preocupação a sentença daquele tribunal que suspendeu arbitrariamente as imunidades dos parlamentares venezuelanos".

"O pleno respeito ao princípio da independência dos poderes é elemento essencial da democracia. As decisões do Supremo violam esse princípio e alimentam a radicalização política no país. O Brasil apela à ponderação de todos os atores relevantes", disse o Itamaraty. 

O governo do Peru anunciou a retirada definitiva de seu embaixador na Venezuela. "A separação, independência e respeito recíproco dos poderes públicos é um elemento essencial da democracia representativa, que todos os membros da Organização de Estados Americanos (OEA) estão obrigados a respeitar", afirmou o Ministério do Exterior peruano em nota.

A presidente do Chile, Michelle Bachelet, manifestou-se surpresa. "Quero manifestar em nome do povo chileno, preocupação em relação ao que se passa na Venezuela", disse Bachelet, acrescentando que o Chile está empenhado em colaborar para fazer voltar a democracia ao país.

O presidente da Argentina, Mauricio Macri, se reuniu na quinta-feira com Lilian Tintori, esposa do opositor venezuelano preso Leopoldo López. No encontro, que aconteceu na Casa Rosada, Macri insistiu na necessidade do cumprimento de um calendário eleitoral no país governado por Maduro e pediu pela libertação dos "presos políticos", disse a Secretaria de Direitos Humanos argentina em comunicado.

La Paz expressa solidariedade a Maduro

Por outro lado, o governo do presidente da Bolívia, Evo Morales, expressou sua "solidariedade e incondicional apoio à irmã República Bolivariana" da Venezuela, por entender que Caracas enfrenta "um novo ataque e perseguição política que tenta fraturar a democracia, desestabilizar o governo do presidente Nicolás Maduro e ignorar a Constituição venezuelana".

A oposição da Venezuela e o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, qualificaram o ato do Supremo de "golpe de Estado". A OEA inclusive já havia denunciado que na Venezuela estava em curso um "autogolpe de Estado perpetrado pelo regime venezuelano contra a Assembleia Nacional, o último poder do Estado legitimado pelo voto popular".

"Aquilo que alertamos infelizmente se concretizou", afirmou Almagro. "As duas sentenças do TSJ de tirar as imunidades parlamentares dos deputados da Assembleia Nacional e de assumir o Poder Legislativo de forma completamente inconstitucional são os últimos golpes com os quais o regime subverte a ordem constitucional do país e termina com a democracia."

 

 

Compartilhar:

Leia também
Últimas Notícias

Inscreva-se na nossa newsletter