Cosme Degenar Drumond
Jornalista e Escritor
Especial para DefesaNet
A história é antiga. O Brasil sempre teve as fronteiras vulneráveis a ameaças e agressões externas. Ao longo dos anos, o governo criou planos para proteger a soberania territorial. Nenhum deles, no entanto, funcionou efetivamente na plenitude por falta de tecnologia de prevenção, localização, identificação e repressão às hostilidades.
O governo José Sarney (1985-1989) iniciou a construção de ampla infraestrutura de vigilância e comunicação no Norte e no Centro-Oeste, integrada via satélite. Uma das metas do projeto era melhorar a proteção na linha de divisas do país naquelas regiões. Mas permaneceu praticamente paralisado no governo Collor (1990-1992). Ganhou velocidade na gestão do presidente Itamar Franco (1992-1994) e foi inaugurado no último ano do governo Fernando Henrique (1995-2002), duas décadas depois de idealizado.
O Programa Calha Norte, outro projeto estratégico criado no governo Sarney, visando a ocupação militar no norte da calha do Rio Solimões e do Rio Amazonas, ficou longo tempo engavetado por razões políticas. Hoje, subordinado ao Ministério da Defesa, projeta benefícios de alcance social. Sua meta principal é “fortalecer a presença nacional” ao longo de 6,5 quilômetros da fronteira amazônica.
Ogoverno Lula (2003-2010) concebeu uma nova política de defesa mais moderna, a Estratégia Nacional de Defesa (END), centrada em projetos estratégicos de fortalecimento da linha demarcatória do país. Um dos projetos, o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON), emprega radares, sensores e sistemas de comando e controle, além de aviões de vigilância, monitoramento e interceptação. Implantado em 2014 para cobrir 650 quilômetros de fronteiras no Mato Grosso do Sul, a primeira etapa incluíao objetivo de avaliar o plano original e estender o sistema nas demais fronteiras do país. Os primeiros resultados práticos obtidos confirmam o acerto da decisão. O projeto esbarrou na crise econômica e teve o seu prazo de implantação dilatado. Hoje, já se fala que deverá consumir 80 anos para ser concluído.
Não só de recursos orçamentários dependem os projetos estratégicos de defesa. Há necessidade do apoio de outras instituições do Estado. No Sisfron, o Ministério das Relações Exteriores tem papel relevante a cumprir. Especialistas no assunto dizem que uma das medidas essenciais para a eficácia de suas ações é reavaliar alguns acordos que o Brasil mantém com os países vizinhos. Há razões para isso.
Em Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia vizinha a Ponta Porã (MS), o comércio ilegal de armas e munições cresceu nos últimos anos. Por acordo binacional, o armamento comprado pelo Paraguai cruza o Brasil. Porém, nem sempre chega totalmente ao importador; boa parte é desviada no território brasileiro. O Paraguai recebe apenas os papéis da burocracia de importação.
Em 1961, o Brasil concedeu área livre ao Paraguai, direitos alfandegários especiais e armazenamento de produtos nos portos de Santos (SP) e de Paranaguá (PR). Segundo as mesmas fontes ouvidas, a fiscalização no terminal é feita pelo Paraguai. As mercadorias ficam em regime aduaneiro livre, sujeitas apenas ao pagamento de taxas portuárias e alfandegárias devidas pela prestação de serviços. Agentes brasileiros são impedidos de entrar no terminal; questão de soberania paraguaia.
Armas e munições não declaradas oficialmente já foram apreendidas no porto de Paranaguá. A apreensão foi levada a Justiça brasileira, que determinou sua devolução ao importador. Outra medida generosa do Brasil foi permitir à Bolívia estabelecer depósito soberano no mesmo porto paranaense, em condições semelhantes.
No campo da ilegalidade, o comércio de maior lucro é o contrabando de cigarros. Curiosamente, o dono da maior empresa fabricante de cigarros do Paraguai, a Tabacalera del Este, é o presidente do país, Horácio Cartes, contra quem correu na Justiça paraguaia, denúncia por lavagem de dinheiro, como mostram informações disponíveis na Internet.
Cartes se diz um conservador moral. Foi eleito em 2013. Antes de ingressar na política, porém,foi acusado de manter ligações com o tráfico de maconha e cocaína, depois que um avião com matrícula brasileira foi apreendido na sua fazenda; Cartes livrou-se da acusação, ao sustentar que a aeronave fizera um pouso de emergência na propriedade.
A tríplice fronteira Brasil-Paraguai-Bolívia é um descaminho de produtos pirateados e veículos roubados. Os criminosos lançam mão de estratagemas para tentar confundir os agentes da lei. No tráfico de armas e drogas, para escapar à interceptação de aviões hostis que invadem o espaço aéreo brasileiro, pilotos civis a serviço dos traficantes conduziam crianças a bordo, orientadas a acenar para os pilotos da FAB.
Abater aeronave clandestina com criança a bordo é, de fato, desumano. Se o interceptador cumprisse o que manda a Lei do Abate, sabia de antemão que teria implicações com a Justiça, inclusive por eventuais danos causados pelos destroços do avião abatido no solo. A legislação recebeu ajustes que garantiram ao piloto militar maior proteção no cumprimento da missão.
O poder de polícia dado às Forças Armadas foi um avanço. No entanto, o militar que, em operação policial, revidar tiro e causar vítimas inocentes é julgado na Justiça do município onde se der o episódio. A Marinha do Brasil passou por caso parecido quando ocupou, por decisão superior, uma comunidade no Rio de Janeiro controlada pelo crime organizado – a mesma, aliás, onde recentemente se deu o triste desfecho envolvendo agentes da Força Nacional de Segurança na Olimpíada 2016. A legislação, portanto, ainda carece de ajustes.
Em entrevista coletiva sobre a Operação Hashtag, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, disse que o grupo de pessoas suspeitas e detidas na operação pretendia comprar armamento no Paraguai. Ou seja: as autoridades sabem da facilidade do comércio ilegal de armas no Paraguai.
Operações militares, em conjunto com a Receita Federal e a Polícia Federal, são acionadas regularmente para combater atos ilícitos nas fronteiras. Entretanto, passada a operação, os crimes voltam a ser praticados por falta de vigilância e monitoramento tecnológico permanente.
O deputado federal Raul Jungmann, atual ministro da Defesa, declarou certa vez que, sem ações concretas de controle, não há como reduzir o número de armas ilegais que entram no Brasil e a consequente violência provocada pelos criminosos, pelo acesso fácil a armamentos. Dados recentes mostram que São Paulo e Rio de Janeiro são os estados que mais controlam o comércio ilegal de armas. Estranhamente, os criminosos usam até armas de emprego restrito do Estado e artefatos explosivos. E espalham o terror no país.
Os criminosos também atuam no mar. No Rio de Janeiro, navegantes vindos da Europa e da África dizem que costumam cruzar com navios-mercantes parados em águas brasileiras. Embarcações entram nas marinas sem passar por fiscalização alfandegária. Piratas modernos rondam a Baía de Guanabara e colocam em risco o comércio marítimo, pois sabem que as tripulações dos navios-mercantes não portam armas de defesa pessoal a bordo, impedidas por dispositivo da Organização Marítima Internacional, agência ligada à ONU.
A Marinha patrulha as águas brasileiras com tecnologia insuficiente para localizar as ameaças. Enquanto isso, um projeto estratégico que poderia identificar com precisão de um metro as ações delituosas no mar, o SisGAAz – Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul, de monitoramento e controle das águas brasileiras, apoiado por ações de segurança à navegação nas fronteiras, foi paralisado por falta de recursos públicos.
Proteger as fronteiras terrestres e marítimas de um país territorialmente extenso é, de fato, operação complexa. Os EUA que o digam. Sem o emprego de tecnologia de ponta, a missão fica mais difícil, não se completa ou beira o fracasso. Por outro lado, a legislação criminal brasileira é fraca e a Justiça, lenta, o que alimentam a sensação de impunidade.
Em meadosdo século XIX, o Paraguai armou o seu exército e invadiu territórios de Brasil, Argentina e Uruguai na tentativa de “abrir mercados” com o uso da força. A guerra que se seguiu causou uma reviravolta na história do hemisfério sul. O Paraguai saiu derrotado do conflito. Mas, hoje, possui o maior mercado de bens de consumo da América do Sul. O Brasil tornou-se o principal corredor da economia paraguaia.
Conceder franquia soberana estrangeira pode ser politicamente correto; manter a boa vizinhança, também. Porém, é hora de reavaliar certos convênios firmados pelo Brasil no continente. A população brasileira está acuada pela violência urbana e preocupada por não ver solução efetiva, sobretudo quanto à crescente enxurrada de armas e munições que entra ilegalmente no país pelas fronteiras.