Leonardo Cavalcanti / Natália Lambert
Uma revolução no comércio brasileiro de armas está prestes a sair do papel. Criado ainda na década de 1930, o regulamento militar sobre o controle de armamentos será alterado em vários capítulos pelo governo Michel Temer.
O ponto mais sensível do novo texto — e que ao longo dos últimos 90 anos sofreu pressão do lobby da indústria nacional — vai permitir a importação de revólveres, espingardas e determinados tipos de pistolas, como a .380 ou até mesmo as .40 e a .45, de calibres com maior poder de fogo para órgãos de segurança pública. O documento altera, de maneira histórica, o comércio de produtos controlados no Brasil.
A mudança no artigo 190 do R-105, como é chamado o regulamento para produtos controlados, foi definida pelo Exército e, neste momento, está sendo discutida entre o Ministério da Defesa e a Casa Civil. Militares da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) alteraram o texto permitindo a importação de armamentos que não tenham “uso finalístico das Forças Armadas”, o que abre definitivamente a importação das chamadas armas leves, como espingardas, revólveres e determinados tipos de pistolas.
A novidade foi encaminhada ao Departamento de Produtos de Defesa do ministério, que, na prática, estuda agora a definição de quais armamentos entram na liberação.
Apesar de ter força de lei há décadas, o veto à importação de armas no Brasil não é claro na legislação. A proibição vem de uma junção do artigo 190, que afirma que “o produto controlado que estiver sendo fabricado no país, por indústria considerada de valor estratégico pelo Exército, terá a importação negada ou restringida”, e do artigo 5º da portaria 620/06, que define que a compra do exterior será negada quando existirem produtos similares fabricados por indústria brasileira. O Comando do Exército é o responsável por definir os critérios.
Monopólio
De acordo com o presidente da Confederação de Tiro e Caça do Brasil (CTCB), Fernando Humberto Fernandes, a proibição é uma questão de interpretação. “Não existe isso no texto nem em lugar nenhum.
É pura interpretação subjetiva do Exército, que não deixa claro quais são os critérios para se definir o que é ‘similar’”, comenta. A questão da “similaridade” também gerou polêmica, em 2004, quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Estatuto do Desarmamento com um artigo que determinava a restrição. O episódio ficou conhecido como a “emenda Taurus”.
A Forjas Taurus é a maior fabricante de armas da América Latina. Pertencente à Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) desde 2014, o grupo tem, praticamente, o monopólio do mercado no Brasil, vendendo artigos, principalmente, para os órgãos de segurança pública.
Nos últimos 10 anos, entre 2006 e 2016, as empresas receberam pagamentos do governo federal de R$ 82 milhões e R$ 129 milhões, respectivamente. Enquanto a CBC exporta uma caixa de munição 9x19mm, com 50 tiros, por U$ 6 (R$ 18,62), vende o mesmo produto para as Forças Armadas no Brasil por R$ 123.
Além do sobrepreço, outra motivação fez com que militares antecipassem a conclusão do documento: as forças de segurança passaram a questionar a qualidade dos produtos após frequentes falhas em pistolas que travavam ou disparavam sozinhas ao cair no chão. Por causa da quantidade de acidentes, mais de 90 registrados desde 2005, foi criada a Associação das vítimas por disparos de arma de fogo sem acionamento do gatilho (Avida), conhecida como As Vítimas da Taurus.
As denúncias fizeram com que o Exército determinasse a averiguação dos equipamentos e, em outubro do ano passado, a comercialização do modelo PT-24/7 chegou a ser proibida. Em nota no site, a empresa alegou que perícias negaram a existência de defeitos, mas, mesmo assim, realiza periodicamente revisões e manutenções nos equipamentos.
Restrições
No Brasil, o Estatuto do Desarmamento restringe a compra e o porte de armas para pessoas físicas, exigindo a comprovação de necessidade por atividade profissional de risco ou ameaça à integridade física, além de outras limitações. Tramita na Câmara dos Deputados um projeto que pretende revogá-lo e criar o Estatuto de Controle de Armas de Fogo, que, entre outras medidas, permite o acesso a qualquer cidadão maior de 21 anos. Segundo dados do Mapa da Violência 2015, mais de 880 mil pessoas morreram no Brasil vítimas de armas de fogo de 1980 a 2012.