O NOVO CONCEITO ESTRATÉGICO DA OTAN
(Documento "NATO 2022 Strategic Concept" publicado nesta página na íntegra)
SERGIO DUARTE
Embaixador. Presidente das Conferências Pugwash
sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Ex-Alto
Representante das Nações Unidas para
Assuntos de Disarmamento.
Considerações gerais
A reunião de cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) realizada em Madrid de 28 a 30 de junho último teve com o objetivo principal de assegurar a adaptação da Aliança Atlântica às mudanças ocorridas no mundo desde a última reunião desse tipo, ocorrida em 2010. O conclave adotou o novo “Conceito Estratégico”, que deverá orientar as ações da Aliança no curto e médio prazo.
Em resumo, o documento adotado identifica a Rússia como “a ameaça mais importante e direta à segurança dos aliados, pela primeira vez trata da China e outros desafios – como o terrorismo e uso hostil da cibernética e outros avanços tecnológicos – e dedica grande atenção ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia.
Entre as decisões tomadas estão:
– o aumento das forças militares em alerta em determinadas regiões e a defesa de países específicos, especialmente na fronteira leste; o compromisso de cada país de dedicar ao menos 2% do PIB para a defesa até 2024;
– o prosseguimento do apoio militar à Ucrânia e promessas de ajuda a outros parceiros em situação de risco, inclusive Bósnia-Herzegovina, Moldávia e Geórgia;
– o lançamento de um Fundo de Inovação,que investirá € 1 bilhão ao longo dos próximos 15 anos para desenvolvimento de tecnologias de uso duplo;
– o convite oficial à Suécia e à Finlândia para fazerem parte da Aliança e a reafirmação da política de “portas abertas” para ingresso de novos membros.
Panorama internacional
O novo Conceito Estratégico da OTAN representa a pá de cal sobre as esperanças de uma era de entendimento e cooperação que parecia haver-se aberto entre a Federação Russa e o Ocidente com a implosão da União Soviética. Deve-se recordar que o Conceito Estratégico de 2010 considerava a Rússia como possível “parceiro”.
A sensação inicial de otimismo sobre os rumos das relações internacionais deu lugar a um período de incerteza no qual a redução das tensões consubstanciada no Tratado Novo START, do mesmo ano, foi sendo substituída por progressiva desconfiança mútua e abandono dos acordos bilaterais de controle de armamentos entre os Estados Unidos e a Rússia.
Embora não tenham ocorrido novos episódios de proliferação de armas nucleares além dos atuais nove possuidores, revelou-se impossível conter as ambições da Coreia do Norte, se prepara para novo ensaio com explosivos, enquanto o combalido acordo denominado JCPOA com o Irã ameaça soçobrar sem realizar seus objetivos.
Os limites numéricos de ogivas nucleares e vetores fixados pelo Novo START permanecem em vigor, mas os aperfeiçoamentos tecnológicos introduzidos desde então tornam necessário um novo entendimento entre as duas principais potências, que no entanto parece no mínimo remoto. Nenhum dos dois países se mostra interessado em estabelecer novos padrões de controle sobre seu armamento. Por sua vez, a China se esforça por acompanhar a evolução da tecnologia bélica e por expandir sua presença militar no oceano Pacífico e sua influência no mundo em desenvolvimento.
O avanço da Aliança Atlântica para o leste, englobando a maior parte dos países da Europa Oriental que anteriormente se encontravam sob o domínio da URSS acentuou a preocupação de Moscou com questões relativas a sua segurança. Historicamente ciosa de sua importância geopolítica e limitada pelo relativo isolamento que a geografia lhe impõe, a Rússia parece agora empenhada em recuperar a importância e prestígio de que desfrutou nos tempos da Guerra Fria.
Nos últimos anos a evolução do relacionamento Leste-Oeste seguiu a lógica da desconfiança e da hostilidade. Enquanto os Estados Unidos adotavam uma orientação de aberta confrontação com sua rival e destinavam recursos crescentes à “modernização” de seus arsenais, o caminho escolhido pela Rússia foi o de rearmamento, intervenção militar e ameaça não muito velada de uso de armas nucleares.
Assim como em uma briga entre jovens, não importa estabelecer quem é o maior responsável pela situação atual. Embora todos os membros das Nações Unidas estejam obrigados pela Carta a solucionar suas divergências por meios pacíficos e a abster-se do uso ou ameaça da força em suas relações internacionais, desde 1945 não se verificava a ocorrência de agressão militar entre países europeus, como ocorreu em fevereiro último com o ataque russo contra a Ucrânia a pretexto de resguardar interesses nacionais.
Por um breve momento, a declaração dos presidentes das duas potências em junho de 2021 no sentido de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e não deverá jamais ser travada” pareceu prenunciar a retomada da tendência a um entendimento estratégico que levasse à progressiva redução dos riscos de confrontação armada e de uma hecatombe nuclear. Esses propósitos, porém, não tiveram seguimento.
A Ucrânia foi o centro das discussões que influenciaram o novo Conceito Estratégico da OTAN
As consequências negativas da invasão da Ucrânia pela Rússia vão desde a desorganização do fornecimento de combustíveis à Europa ocidental à ameaça de desabastecimento de grãos básicos oriundos da Ucrânia para regiões menos desenvolvidas do mundo, sem falar na tragédia humana e social representada pela destruição e pelo deslocamento de milhões de pessoas afetadas pela guerra. Inflação, aumento da pobreza e rearmamento, em lugar de investimentos produtivos, são outros efeitos nefastos que já começam a fazer-se sentir. No que respeita especificamente à segurança europeia, em vez de opor um freio à expansão da OTAN a invasão teve o efeito contrário de reforçar a união dos países ocidentais, promover a entrada na Aliança de novos membros que até agora hesitavam e facilitar o acordo para o aumento da contribuição de todos ao orçamento militar da Organização.
O arcabouço de normas e pressupostos em que se baseava a convivência internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial se encontra gravemente combalido. A conclusão inevitável é que ordem mundial estabelecida desde 1945 já não corresponde à realidade contemporânea.
O novo Conceito Estratégico
O novo Conceito Estratégico 2022 aprovado em Madrid substitui o documento anterior, datado de 2010, e se inicia reconhecendo a existência de desafios críticos para a paz e estabilidade internacionais em um mundo imprevisível, no qual a OTAN percebe ameaças persistentes de terrorismo, instabilidade, competição estratégica crescente e avanço do autoritarismo, em contraposição aos interesses e valores da Aliança.
Define também os três elementos básicos de sua ação: dissuasão e defesa, prevenção e gestão de crises e segurança cooperativa, além de ressaltar o caráter essencialmente defensivo da instituição.
Os líderes europeus concordaram em aumentar consideravelmente, até o próximo ano, dos atuais 40.000 para 300.000 homens, os efetivos militares das forças de reação rápida ao longo da fronteira oriental, desde a Romênia até os países bálticos. A inclusão da Suécia e da Finlândia, já aprovada em princípio pela Aliança, acrescentará 1.300 quilômetros à linha que separa a OTAN da Rússia.
No que parece ser um gesto de aproximação, o Conceito enfatiza em várias passagens a ameaça mais importante e direta à segurança de seus membros e à paz e estabilidade no espaço euro-atlântico, representada pela Rússia, mas afirma a disposição de manter abertos os canais de comunicação com Moscou a fim de mitigar os riscos, evitar a escalada e aumentar a transparência.
O documento vê também na China uma ameaça aos interesses, segurança e valores da OTAN ao procurar expandir sua influência no mundo e projetar seu poder mantendo pouco transparentes suas intenções e desenvolvimento militar, mas registra a disposição de levar adiante um engajamento construtivo com a potência asiática.
Mais além do horizonte europeu, o Conceito Estratégico aborda a existência de conflitos e a fragilidade e instabilidade na África, particularmente no norte e no Sahel, onde mudanças climáticas e insegurança alimentar continuam a estimular o êxodo de imigrantes para a Europa, e afirma que a situação no Oriente Médio afeta diretamente a segurança da OTAN e seus parceiros. Ressalta também a importância da região do Indo-Pacífico para o tratamento de desafios comuns e interesses compartilhados. Não há nenhuma menção à América Latina.
O documento reconhece o impacto negativo sobre a estabilidade estratégica da erosão da arquitetura de controle de armamentos, desarmamento e não proliferação, e imputa à Rússia violações e implementação seletiva de obrigações nesse campo, que teriam contribuído para a deterioração do panorama mais amplo de segurança. Novamente menciona nesse contexto a atuação da China, que expande rapidamente seu arsenal nuclear e desenvolve sistemas sofisticados de lançamento sem aumentar a transparência e nem se engajar de boa fé em atividades voltadas para o controle de armamentos e redução de riscos.
Reafirma, finalmente, o compromisso com a implementação integral do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, inclusive o Artigo VI e reitera o objetivo de “criar um ambiente de segurança para um mundo sem armas nucleares”.
Comentário
O Conceito Estratégico é perfeitamente claro e incisivo ao definir e defender os interesses da aliança atlântica, que até certo ponto coincidem, ainda que com nuances, com os de boa parte da comunidade internacional, com a qual a OTAN se declara disposta a cooperar. O documento se dirige também a outros países do entorno europeu que pretendam tornar-se membros, inclusive a Geórgia e a Ucrânia, confirmando o que parece ser a intenção de prosseguir em direção ao leste.
Nesse particular, é evidente a profunda divergência com o interesse da Rússia de evitar a expansão da Aliança para o Cáucaso e mais além. No curto prazo este é sem dúvida o principal fator de instabilidade, e não apenas para a Europa.
O tom das menções e acusações à China ao longo do texto é mais suave do que o utilizado em relação à Rússia. Na visão da OTAN, esta última busca o estabelecimento de esferas de influência e de controle direto mediante coerção, subversão, agressão e anexação de territórios, além de disposição de usar a força para seus objetivos políticos e para solapar a ordem internacional baseada em normas. Pequim é acusada de ambicionar o controle de setores-chave de tecnologia, infraestrutura, materiais estratégicos e cadeias de suprimento, além de dedicar-se a práticas comerciais e financeiras condenáveis.
As reações imediatas da Rússia e da China vieram por meio de declarações de suas autoridades. O presidente Putin disse que não vê problemas na entrada da Suécia e Finlândia para a OTAN, mas que tomará as medidas de segurança que considerar cabíveis. O ministro do exterior Sergey Lavrov afirmou que está sendo criada uma nova “cortina de ferro” entre a Rússia e o Ocidente.
A China, por sua vez, reagiu dizendo que o verdadeiro desafio sistêmico à paz e estabilidade mundiais é a própria OTAN, que não cessa de ampliar-se além de seus limites regionais. Para Pequim, atitude da OTAN representa uma “relíquia da Guerra Fria”, que não teria mais lugar no mundo de hoje.
Não é demais recordar que algumas das estratégias e métodos atribuídos às duas potências, afinal, pouco ou nada diferem das utilizadas pelos países ocidentais em outros momentos da História em relação ao restante do mundo para obter e assegurar hegemonia política e econômica.
O Conceito retoma a ideia, cara a certos setores do pensamento político norte-americano, de que é necessário subordinar a adoção de medidas efetivas de desarmamento nuclear à criação de um ambiente de segurança favorável. Muitos analistas consideram que essa posição na verdade impede qualquer progresso no sentido de passos construtivos e sequenciais em direção ao desarmamento nuclear. Nesse sentido, o documento justifica a permanência de seu próprio armamento atômico “enquanto as armas nucleares existirem”. Essa convicção, expressa com essa fórmula que denota o interesse em preservá-las, explica a feroz resistência a iniciativas de proibição linear das armas nucleares como passo inicial para sua completa eliminação.
É visível a preocupação dos redatores do Conceito Estratégico em enfatizar as finalidades pacíficas da aliança atlântica e ressaltar o caráter defensivo e não excludente de suas intenções, assim como o compromisso de trabalhar em prol de uma paz equânime e duradoura, com base em regras reconhecidas e respeitadas por todos.
A comunidade internacional certamente compartilha os propósitos descritos no final do Prefácio o documento: um mundo no qual a soberania, integridade territorial, os direitos humanos e o Direito Internacional sejam respeitados e no qual cada país possa escolher seu próprio caminho, livre de agressão, coerção ou subversão. É necessário que todos participem do desenvolvimento, elaboração e adoção dos instrumentos que permitam atingir esses objetivos.