Leandro Beguoci
Em abril de 2001, um grupo de estudantes entrou em confronto com a Polícia Militar na Avenida Paulista. Eles protestavam contra a Alca – a Área de Livre Comércio das Américas, que pretendia estabelecer a livre circulação de mercadorias do Alasca à Terra do Fogo –, e contra o “imperialismo americano”, que viam expresso no acordo comercial. A manifestação terminou com vários feridos e vitrines depredadas. Cinco meses mais tarde, a tensão do quebra-quebra pareceria deslocada. Dez anos depois, a Alca é apenas um projeto que nunca saiu do papel.
Com os ataques do 11 de Setembro, a relação entre os EUA e a América Latina mudou. As negociações comerciais com os países da região, que já não eram a prioridade número um dos americanos no mundo, deram lugar a vagas conversas sobre segurança e narcotráfico, o líder cubano Fidel Castro e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Aquela terça-feira em Nova York e Washington deixou a região ainda mais de lado. Os EUA passaram a se concentrar no Afeganistão e no Iraque, o que acelerou algumas mudanças que vinham acontecendo lentamente.
Ao longo da década, os presidentes recém-eleitos nos países da América Latina passaram não apenas a pregar, mas também a praticar, certa independência em relação aos EUA. Não é pouca coisa. Entre ressentimentos e empolgação na região e medidas mais duras (apoio a golpes militares) ou mais suaves (programas de cooperação econômica) dos EUA, a primazia americana sempre fora um fato da natureza.
Mas, como resumiu um documento de 2008 do Council on Foreign Relations, um dos principais institutos de pesquisa sobre relações exteriores dos EUA, a Doutrina Monroe, proferida pelo presidente americano James Monroe em 1823, acabou.
A doutrina estabelecia que os interesses dos países da região e dos EUA eram os mesmos – e Washington conseguia, na maior parte das vezes, definir quais eram eles. Ou, como definiu o então embaixador brasileiro em Washington, Juraci Magalhães, em 1964: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil.” Segundo especialistas ouvidos pelo iG, o 11 de Setembro acelerou esse processo de distanciamento.
A lenta separação
Mudanças em relações entre países não acontecem de uma hora para outra, mas alguns fatores as aceleram. No caso da América Latina, o que mais se destaca após o 11 de Setembro é a ascensão gradual de governos de esquerda e centro-esquerda, eleitos no esteio das crises econômicas dos anos 1990.
Foi o caso, por exemplo, da Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai, Uruguai e até na América Central, como em El Salvador e Nicarágua. Presidentes como o boliviano Evo Morales, o equatoriano Rafael Correa e até Luiz Inácio Lula da Silva atribuíram, em graus diferentes, os problemas da região às medidas, segundo eles, impostas pelos EUA e aceitas por seus antecessores, como privatização de empresas e abertura da economia.
A novidade é que, diferente do que aconteceu entre os anos 1960 e 1980, os EUA não intervieram pesadamente para barrar a ascensão desses governos – e não se pode acusar George W. Bush (2001-2009) de ser um presidente pouco disposto a interferir.
Basta lembrar, por exemplo, as ações do governo de Ronald Reagan (1981-1989), que Bush sempre admirou, em equipar com armas os oponentes dos sandinistas na Nicarágua. “Antes do 11 de Setembro, a agenda dos EUA para a região era comércio”, disse Shannon O'Neil, especialista em América Latina do Council on Foreign Relations. “Depois, passou a ser segurança”, afirmou, lembrando que a América Latina sempre foi uma das regiões mais calmas do planeta.
Quando Chávez foi vítima de um golpe na Venezuela, em 2002, os golpistas contavam com os americanos para se manter no poder. Não conseguiram. As relações com Cuba também se mantiveram ruins, mas sem grandes interferências – Fidel passou o bastão para o irmão Raúl Castro em 2008, e não há notícias de que mercenários tenham tentando matá-lo, como aconteceu na década de 1960.
A única inflexão aconteceu na Colômbia. Por conta da ameaça terrorista das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e do narcotráfico, o país estreitou laços com os EUA. Foi uma das poucas nações, por exemplo, que mantiveram bases americanas em seu território. Mas a Colômbia foi uma exceção, e o México nunca foi uma questão por conta das fronteiras em comum, dos estreitos laços econômicos e da grande comunidade mexicana que vive no outro lado do Rio Grande.
Cerca de 80% das exportações do México são para os EUA, por exemplo. No caso do Brasil, esse número é de 10% – e já foi maior. No começo da década de 2000, o principal destino das exportações do Brasil eram os EUA. Hoje, é a China. Os EUA também perderam espaço em outros países. Quem mais compra da Argentina? O Brasil. Da Bolívia? O Brasil também.
Como explica Pio Penna, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília: “O 11 de Setembro redefiniu a agenda americana. Antes dele, a tônica era globalização e integração regional. A agenda econômica, de globalização, de integração financeira, caiu drasticamente após os ataques. A temática da segurança cresceu, e isso conteve os processos de integração.” A relação só aumentou onde os interesses eram comuns – o que não era o caso de muitos dos países da região. Nesse cenário, o Brasil cresceu.
Para onde ir?
Apesar da retórica antiamericana, Chávez continuou exportando petróleo para os EUA. E, mesmo que Chávez não seja palatável para os americanos, a grande parte do petróleo consumido por eles vem da América Latina. Mesmo com todas as suas diferenças, Lula recebeu Bush em São Paulo, em 2007, com sorrisos, piadas e reuniões de negócio.
Afinal, o país continua sendo o principal destino de bens de valor agregado do Brasil, como lembra o embaixador brasileiro nos EUA durante o segundo mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), Rubens Barbosa. Mas, no final das contas, os anos 2000 foram a década da desconfiança.
Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue, uma organização especializada nas relações entre os países do continente, explica que a imagem dos EUA, que já não era boa, piorou com o 11 de Setembro por conta “do Iraque e da (base dos EUA na Baía de) Guantánamo e da confiança excessiva no uso da força”.