DARC COSTA,
Rio de Janeiro em 22/08/2019
Vou me dedicar a ver a geopolítica como área do conhecimento, pois ciência para mim sempre correlaciona fato com princípio.
A epistemologia dedica-se, como vocês sabem, ao estudo da origem, da estrutura, dos métodos e da validade do conhecimento. Pergunto: Haveria uma epistemologia da geopolítica? Como afirmava Platão conhecimento não é crença ou opinião. Para ele o conhecimento é o conjunto de informações explicativo do mundo natural e social que nos cerca. Teria a geopolítica parte deste conjunto?
Ao responder estes questionamentos faz-se necessário que nos apresentemos como indivíduos e como sociedade. Somos humanos detendo, portanto, dois atributos que nos diferenciam de tudo que nos cerca; a razão e a vontade. Tudo que fazemos, as nossas ações, tem aí suas origens. Nascem da nossa razão, ou da nossa vontade, ou da conjugação de ambas, razão e vontade. Chamemos nossas ações de intervenções.
Toda e qualquer intervenção responde a um triângulo indissolúvel, indissociável que une o que fazer (política), ao como fazer (estratégia) e ao com que meios fazer (poder).
Munidos desta colocação podemos acrescentar que toda intervenção, como toda nossa existência, está submetida a dois parâmetros: espaço e tempo. O espaço onde nos encontramos e o tempo em que vivemos.
O espaço é sensorialmente observável já o tempo não. Isto explica a grande relevância que o espaço ocupa no estudo da intervenção.
A Geografia é uma disciplina que se dedica ao estudo do espaço e que tem sua origem, como vocês sabem, na Antiguidade. Já o seu ramo Geopolítica é algo moderno tendo atingido destaque no século XX. Só surgiu explicitamente como área de conhecimento no final do século XIX, graças aos estudos de Friedrich Ratzel e Halford Mackinder. Área de conhecimento que trabalha com a intervenção, que busca responder o que fazer dado o espaço, o como fazer dado o espaço e com que meios fazer dado o espaço. Ou seja, Geopolítica surge como sendo Geopolítica, Geoestratégia e Geopoder.
Todos aqui sabemos que o espaço e mais claramente o território, ou seja, o espaço delimitado tem uma relação com a política, já que ambos, território e política, fazem parte do processo histórico de formação das sociedades.
Isto faz que na Geografia haja uma subdisciplina que antecede a Geopolítica a chamada Geografia Política e que buscava compreender como a política era afetada pela Geografia.
Nos seus primórdios a Geografia Política seguia o pressuposto de ser a natureza quem conduz o processo, na corrente pós-aristotélica. A Geografia buscava então na natureza um marco teórico que explicasse a vida política. E o fazia seguindo a tradição filosófica do determinismo da natureza, já que a vida política estaria apoiada em fatores estáticos, quase imóveis, como o meio físico.
Foi desta forma que pela primeira vez o termo Geografia Política foi usado. Em 1750, o filósofo francês Turgot apresentou uma teoria que para ele era um “tratado de governo” e que na verdade foi uma tentativa de formalizar uma intersecção da Geografia com a Política. Esta teoria ele formalizou numa obra que nomeou como Teoria de Geografia Política, algo que claramente havia sido inspirado pela obra de Montesquieu em especial pelo Espírito das Leis, de autoria desse filósofo.
Todavia, a moderna concepção da Geografia Política como área consolidada e terminologia das ciências sociais, data do final do século XIX, quando do seu reconhecimento formal na Alemanha, a partir dos trabalhos do jurista Friedrich Ratzel.
Ratzel vai muito alem da visão da natureza como uma das responsáveis do processo político. Apoia-se na visão platônica hegeliana do idealismo e da dialética e busca construir uma teoria das relações entre o espaço e a Política, dando ao espaço sentido, seguindo a tese de que certos povos moldavam as paisagens, utilizavam os recursos naturais e se fortaleciam pelo seu enraizamento no território.
Ratzel em um ensaio por ele denominado de Antropogeografia lançou as bases do pensamento geopolítico, vendo o Estado como um ser que vive, orgânico, que mesmo com suas imperfeições tinha necessidade, como todo ser vivo, de crescer, sendo esta expansão uma necessidade orgânica. Uma clara visão hegeliana calçada na história do devir do Estado.
Resumidamente Ratzel fundamentou em sete princípios a importância do território para o espaço:
1- Há uma tendência de crescimento do espaço de um Estado advindo da conexão territorial de espaço em espaço, incrementado pela identidade cultural;
2- O primeiro impulso para o estabelecimento territorial e seu crescimento chega a um estado primitivo vindo de fora por uma civilização superior;
3- Em seu crescimento o Estado tende a incluir secções politicamente valiosas como os rios, as linhas da costa, as planícies e outras regiões ricas em recursos;
4- A fronteira é um órgão periférico do Estado e, como tal, seu deslocamento é a prova da retração ou do crescimento estatal mostrando o desempenho forte ou fraco deste organismo;
5- O crescimento do Estado pode ser verificado pela coerência e integração de pequenas unidades fruto do amalgama e da absorção de unidades menores;
6- O espaço dos espaços aumenta com o crescimento cultural; e
7- O crescimento dos Estados apresenta sintomas de desenvolvimento cultural, de ideias, de produção industrial e comercial, algo que precede necessariamente a expansão efetiva do Estado.
Literalmente de Ratzel:
“Um povo quando perde território ele pode, apesar de contar com menos cidadãos, conservar ainda muito solidamente o território restante, desde que ali se encontrem as fontes de sua vida. Mas se seu território se reduz é, de uma maneira geral, o começo do fim”.
Para Ratzel o território é apresentado como um espaço variável, não é um espaço fixo, pelo contrário, está sempre propenso a profundas modificações. Para ele um Estado que almejasse a paz, que não tivesse ameaças a sua integridade territorial, teria que possuir um amplo espaço que lhe permitisse se defender de invasões provenientes de quaisquer de suas fronteiras.
Nessa sua teoria Ratzel recorreu à biologia fazendo com que os temas de sua época, problemas como as disputas territoriais, fossem enfrentados pelo seu discurso. Propugnava que o poder exercido pelos povos sobre os seus territórios levava ao fortalecimento dos seus Estados Nacionais.
Ratzel atendia assim a uma necessidade de sua época como posta no Congresso de Berlim, em 1884, na chamada partilha da África, ao defender que o colonialismo nada mais era que a simples progressão dos Estados evoluídos, detentores que são de um expansionismo crescente e que buscam ampliando suas fronteiras conservarem sua plena vitalidade. Justificava, portanto ações colonialistas colocando a Geografia Política nas mãos dos dirigentes políticos, econômicos e militares.
Contudo, o termo Geopolítica só aparecerá em 1916, quando um professor sueco chamado Rudolf Kjellen o utilizou no seu livro O Estado Como Uma Forma de Vida. Kjellen foi um dos grandes ideólogos do célebre Instituto de Munique, tinha suas ideias embasadas em Ratzel e afirmava que o Estado era sim um organismo vivo e que deveria se fosse preciso utilizar-se da guerra para crescer territorialmente.
A Geopolítica desde seus primórdios, como vemos, está associada à ideia de poder. O inchaço dos Estados seria justificado pela necessidade de seu crescimento orgânico.
Outro geógrafo que contribuiu para esta associação foi, sem dúvida, o inglês Sir Halford Mackinder, que doze anos antes do lançamento do livro de Kjellen, em 25 de janeiro de 1904, proferiu sua notória palestra na Real Sociedade Geográfica de Londres, intitulada The Geographical Pivot of History, onde defendia a tese da existência do poder terrestre sobre o espaço mundo. Contraposição à visão de um poder marítimo que veio a ser apresentado e defendido pelo almirante estadunidense Alfred Mahan.
Mackinder apresentava especial interesse nas estepes da Ásia Central, onde havia se gestado levas e levas de invasores de terras europeias. Atenção especial ele concedia às bordas europeias da Ásia, que para ele era o núcleo do grande continente euro-asiático e que cujos limites de um lado eram as cadeias montanhosas dos Urais e de outro o Rio Oder. Para ele, esse território, que na sua exposição era predominantemente russo seria fundamental nas relações de força e poder. Mais tarde, chamou este espaço de Heartland e a periferia a este espaço de Hinterland.
Na sua teoria Mackinder colocava haver uma rivalidade secular entre dois grandes poderes antagônicos que disputavam a supremacia mundial: o poder marítimo e o poder terrestre. O poder terrestre situado no coração da Eurásia que através de uma expansão centrifuga buscava se apropriar das regiões periféricas da Eurásia com suas saídas para o mar aberto. Já o poder marítimo se apresentava nas bordas da Eurásia, nas suas costas marítimas exercendo ali o seu controle e ao praticar uma pressão centrípeta procurava deixar o poder terrestre encurralado no interior da Eurásia.
Mackinder foi o primeiro diretor da Escola de Geografia da Universidade de Oxford tornando-se um grande difusor das ideias geopolíticas.
Na década de 20 do século XX estas ideias foram assimiladas e na Alemanha despontou outro grande nome da geopolítica o general Karl Haushofer. É dele a célebre afirmação que a geopolítica era a consciência espacial do Estado. Haushofer teve de início uma relação bastante cordial com Adolf Hitler, tendo assumido, em 1934, a presidência da Academia Germânica. Contudo essa relação com Hitler é definitivamente rompida quando da invasão da União Soviética pela Alemanha em 1941.
Foi nas formulações geopolíticas de Haushofer que a Alemanha nazista estruturou sua visão de espaço como o disposto na definição oficial pelo 3º Reich que dizia que “a Geopolítica é a ciência dos fundamentos territoriais e raciais que determina o desenvolvimento dos povos e dos Estados”. A Geopolítica transformou-se assim numa espécie de ramo da filosofia política do Estado nazista. Embutem-se nela conceitos como espaço é poder, poder e terra, espaço vital e outros que levaram o 3º Reich a usar a geopolítica como a própria geografia do fascismo.
Geopolítica tornou-se devido a isto numa disciplina malvista logo após o término de Segunda Grande Guerra. Isto levou a que muitas de suas teses ressurgissem nomeadas não mais de Geopolítica, mas sim como Estratégia Nacional. Expurgou-se neste processo com a Estratégia Nacional muito da visão racista e ideológica que permeava até aquele momento a Geopolítica. Isto se explicita nas obras e formulações do geógrafo holandês Nicholas Spykman e do americano George Keenan, recriando o que Mackinder havia denominado de cordão sanitário no entorno da antiga União Soviética. Nas décadas de 50 a 80 do século XX a Geopolítica travestida de Estratégia Nacional determinou os rumos da Guerra Fria.
Para nós brasileiros a Geopolítica surge há cem anos, na década de 20 do século XX. Como este colóquio versa sobre Geopolítica como ciência e área do conhecimento não me aterei a nossa notável contribuição a essa matéria. Não falarei de vários pensadores sobre o tema desde Backheuser até Meira Mattos. Sugiro aos organizadores deste encontro que promovam outro colóquio que versaria sobre o pensamento geopolítico brasileiro. Mas não posso deixar de mencionar o trabalho seminal de Mario Travassos, Projeção Continental do Brasil, que se imiscuiu de forma determinante no Projeto Nacional de Desenvolvimento que vigorou no Estado Brasileiro entre 1930 e 1980.
Mas a conspurcação do termo Geopolítica pelo nazismo proporcionou também enfatizar um novo discurso de Geografia Política a partir da segunda metade do século XX conduzindo a dois eixos de investigação. O primeiro pautado por uma perspectiva neopositivista o outro fundamentado no neomarxismo.
O neopositivismo gerando uma teoria sistêmica que criou um ferramental que observando o espaço deu origem a estudos ditos de “planificação regional”, “integração nacional” e “integração regional” apoiado em ideias que lastrearam um discurso de sistema mundo ou sistema mundial criando uma ordem mundial altamente complexa e não linear. Criaram-se assim as bases para se buscar impor através dessa teoria sistêmica na Geografia Política um modelo que se propunha a ser orientador do estudo de conflitos e um referencial para o estudo de sua complexidade, mas que na verdade procurou ser unificador na determinação de hegemonia estadunidense pós 1989 e formulador e defensor da globalização.
Já o corrente neomarxista defendia a tese que todos os processos estudados pela Geografia Política (como, por exemplo, as causas da expansão ou da dominação territorial dos territórios) seriam mais bem explicados pela sua arguição e demonstração pela ótica dos meios de produção. Incorporava, portanto a filosofia marxista a análise geográfica propondo analisar os processos sociais e econômicos como os geradores de fenômenos sócio-geográficos numa total inversão dos estudos que sobre o tema se processavam desde a antiguidade. Parece-nos que essa incorporação marxista aos estudos geográficos, como a existente nos trabalhos de Massimo Quaim e Henri Lebfevre, nada mais foi do que uma tentativa de dar uma nova forma de tratamento à Geografia Econômica do que uma reconstrução da Geografia Política.
Hoje, a moderna Geografia Política conta com um conjunto de técnicas e métodos muito avançados em suas pesquisas como os possibilitados pelos Sistemas de Informações Geográficos (GIS ou SIG) o que possibilita em tempo real o processamento de dados referenciados geograficamente.
Contudo é preciso deixar claro que a Geografia Política convive com a Geopolítica, mas ambas tem vida totalmente independente. Cumpre mais uma vez enfatizar que a Geografia Política como é praticada não é Geopolítica e que Geopolítica só faz sentido no âmbito de Projeto Nacional de Desenvolvimento que se fundamente em ações e políticas complementares de Estado tanto no plano interno como no externo, com planejamento e visão de longo prazo. Este Projeto Nacional de Desenvolvimento deve ser responsável por aquelas instituições que constituem no terceiro elemento, que em conjunto com o território e o povo constroem uma nação.
O contexto cada vez mais conturbado das relações internacionais deve nos exigir que tratemos a Geopolítica observando os princípios que apresentei aqui no inicio do meu discurso. Não devemos trata-la mais como tem sido feito até agora, como se vivêssemos no século XX, presos exclusivamente a conceitos que não veem a conquista do espaço que se faz presente e está em curso, e que a história da Geopolítica com seu Heartland, Hinterland e Rimland, apesar de ter sua relevância, ficou no passado.
Temos de ultrapassar a visão colonizada que ainda existe nos estudos de Geopolítica no Brasil que se prendem exclusivamente a formulações do século XX. Temos que entender que Geopolítica responde exclusivamente ao que fazer dado o nosso território e a nossa posição geográfica periférica nas terras emersas do planeta, mas prevalente no hemisfério sul. Entender que a Geoestratégia é que nos possibilitará transformar esta posição periférica em posição mais central pela integração da massa continental que nos cerca, a América do Sul e pelo domínio do cordão de ilhas do Atlântico Sul, algo que nos possibilitará ter acesso irrestrito ao continente africano e daí à massa eurasiana.
Considerar que o Geopoder é que construirá, com o tempo, pela mutação dos nossos recursos humanos e naturais a transformação do nosso potencial no nosso poder, de forma a termos os meios para praticarmos a Geoestratégia, para atendermos a nossa Geopolítica.
Meus amigos, temos todos de combater as antigas e errôneas ideias que permeiam muito do imaginário coletivo de que a Geopolítica é uma arma do fascismo e que serve antes de tudo para fazer a guerra. Nada disso é verdade, tudo isso é fake.
A Geopolítica é a disciplina que faz do território nacional um instrumento de construção pelo Estado de uma grande e próspera Nação.