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Crise venezuelana cruza a fronteira em Roraima

Fazia dois dias que a estudante venezuelana Estefani Benavides não comia quando seu corpo se rendeu. A jovem de 18 anos foi encontrada inconsciente ao lado do tanque onde lavava roupa. A mãe, Yusmaris, de 32 anos, já vivia no Brasil há quatro meses e correu para a Venezuela. "Tive que buscá-la", diz, apontando uma menina magra, que lava os vidros dos carros em um semáforo em Boa Vista, Roraima. "Mas os meus outros dois filhos ainda estão lá", diz ela, aflita.

Yusmaris e sua filha estão entre os mais de 77 mil venezuelanos que entraram no Brasil pela cidade fronteiriça de Pacaraima, no norte de Roraima, entre janeiro de 2015 e setembro de 2016, segundo dados do Ministério da Justiça. No mesmo período, saíram pouco mais de 67 mil, ou seja, cerca de 10 mil venezuelanos permaneceram.

Já o governo de Roraima estima que 30 mil imigrantes da Venezuela vivam atualmente no estado, principalmente em Boa Vista e Pacaraima. A Polícia Federal têm realizado deportações em massa – a última, de mais de 450 venezuelanos, foi impedida pela Justiça na sexta-feira (09/12). Em 7 de dezembro, o governo estadual decretou situação de emergência em Saúde Pública devido à sobrecarga dos hospitais locais, com o aumento do fluxo migratório.

Assim como dezenas de venezuelanos, a família de Yusmaris passa o dia nos semáforos da capital, vendendo pão caseiro, morangos, garrafas d'água ou limpando vidros.

"É melhor estar aqui do que lá, sem comida. No semáforo nos humilham, nos atropelam, jogam água na nossa cara, mas eu tenho orgulho de poder mandar comida para a minha família na Venezuela", conta Yusmaris, que deixou dois filhos, um de 14 e outro de 16, com parentes em Maturín, sua cidade natal.

A Venezuela atravessa uma grave crise política e econômica, com desabastecimento e inflação prevista de 720% neste ano. Faltam alimentos, remédios e itens básicos de higiene.

Assim, quando Yusmaris voltou para buscar Estefani, quase trouxe a família inteira. "Eles queriam vir todos para o Brasil. Estão comendo uma vez por dia só. Eu levei arroz e eles choravam: 'ai, há quanto tempo eu não como arroz'", conta Yusmaris. Em Boa Vista há quatro meses, a família divide o aluguel de um quarto, de R$ 350, com outros seis conterrâneos.

Refúgio no Brasil

Assim como muitos venezuelanos, Yusmaris deu entrada em um pedido de refúgio na Polícia Federal em Boa Vista. Para os imigrantes, essa é a forma mais rápida e barata de se regularizar no país. Por isso, as solicitações de refúgio de venezuelanos passaram de apenas uma, em 2012, para 825, em 2015. Até outubro de 2016, foram 1.805.

Com o protocolo da solicitação, os imigrantes podem obter todos os documentos brasileiros enquanto esperam o julgamento do pedido – o que tem demorado em média dois anos, segundo autoridades locais.

"Quando tiver o protocolo, vou procurar um trabalho fixo", comemora Yusmaris. A alta na demanda de refúgios sobrecarregou a sede da Polícia Federal em Boa Vista, que amanhece todos os dias com dezenas de venezuelanos à espera de atendimento.

Poucos meses atrás, a fila era tão grande que os agendamentos eram marcados só para 2018. Esse foi o caso da venezuelana Johandra Adabalo, de 23 anos, que veio de Ciudad Guayana para Boa Vista em setembro. Primeiro, ela foi agendada para 2018, mas voltou à PF e conseguiu ser remarcada para a semana seguinte.

"Recebemos reforço de funcionários e equipamentos de urgência e conseguimos triplicar os atendimentos. Hoje atendemos 50 imigrantes por dia, mas ainda temos uma fila de espera de cerca de quatro mil agendamentos", explica o delegado da PF Marcos de Aguiar Ribeiro, chefe da Delegacia de Polícia de Imigração do Estado de Roraima.

De acordo com especialistas, os venezuelanos optam pelo refúgio porque a lei de imigração é muito burocrática. Para pedir um visto de permanência, normalmente é preciso ter uma justificativa, como trabalho, reunião familiar, casamento ou prole brasileira. Um novo projeto de lei tramita no Congresso para rever o atual Estatuto do Estrangeiro, criado durante o regime militar, em 1980. A medida foi aprovada na Câmara dos Deputados em 6 de dezembro e segue para o Senado.

"Por isso, é mais fácil pedir o refúgio. Enquanto a solicitação não é julgada, a situação no país de origem pode ter melhorado e ele pode voltar, ou ele já casou ou teve um filho brasileiro e pode ficar", explica Gustavo da Frota Simões, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima.

Como a Venezuela faz parte do Mercosul, não é preciso visto para entrar no país. Os venezuelanos têm direito a permanecer até 90 dias no Brasil, para turismo. Na fronteira, basta informar o motivo da viagem e a PF entrega uma autorização com o tempo permitido.

Apesar do refúgio ser mais simples, especialistas afirmam que é pouco provável que ele seja concedido em massa a imigrantes da Venezuela. Em 2015 e 2016, das 2.630 solicitações de refúgio de venezuelanos, apenas 6 foram deferidas. E dos 8.455 refugiados no Brasil, somente 11 são venezuelanos.

"Esses estrangeiros não se enquadram como refugiados, que fogem do seu país devido a perseguições políticas, étnicas, raciais, religiosas. Eles são migrantes econômicos", afirma o delegado Ribeiro.

Preocupados justamente com a negação dos pedidos, movimentos sociais devem demandar que governo federal estenda o visto humanitário, já concedido a haitianos, para os venezuelanos.

"Eles não estão buscando um emprego, uma vida melhor no Brasil, eles estão fugindo da fome", afirma a irmã Telma Lage, advogada e coordenadora do Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima.

Vida de refugiado

Enquanto a sua solicitação não é julgada, Johandra e sua amiga sobrevivem vendendo dindin (suco congelado em saquinhos) nos sinais. Ganham cerca de 25 reais por dia cada uma. Johandra estudava para ser professora e trabalhava em um supermercado na Venezuela, mas, com a inflação, o salário já não dava para pagar os estudos e a comida.

"Mesmo que você tenha o dinheiro, precisa ficar horas na fila do supermercado e não pode levar o que quer. Muitas vezes a comida nem chega na loja, mas chega para um grupo de chavistas, que dividem os alimentos entre si", reclama ela, que pretende enviar comida para a mãe e irmãos.

A amiga, Karelis Delgado, de 27 anos, trabalhava em uma sorveteria em Caracas, onde ganhava 20 reais por mês. "Só que um quilo de arroz está 5 reais lá", conta. Karelis teve que deixar os dois filhos, um de cinco e outro de sete anos, com a avó. "Assim que sair o meu protocolo de refúgio, volto para buscá-los. Porque aqui passo os meus dias chorando, longe deles".

Karelis e Johandra dividem uma pequena casa com outros seis venezuelanos. Dormem todos no mesmo quarto, onde uma cama de casal e dois colchonetes ocupam quase todo o espaço. Há um pequeno cabideiro de plástico no chão e uma rede, pendurada por cima da cama. Um banheiro e uma cozinha, com uma mesa de plástico, completam o imóvel.

A TV é emprestada, a geladeira é de segunda mão e o fogão foi achado no lixo. "Uma benção!", comemoram. Quando entraram no Brasil, as amigas tinham apenas uma colher e uma cumbuca, trazidas da Venezuela. "Tínhamos que comer uma de cada vez", lembram. Agora exibem orgulhosas meia dúzia de pratos e talheres, cada um de um tipo diferente. "Damos graças a Deus! Chegamos aqui sem nada e olha quanto já temos hoje".

 

PF aumenta deportações em RR por "cobrança da sociedade"

A Polícia Federal de Roraima admite que aumentou a deportação de venezuelanos no estado após "cobrança da sociedade roraimense". Em 2015, apenas 54 imigrantes foram deportados em Roraima. Já em 2016, o número saltou para 445, segundo dados da PF de novembro.

"A gente estava deportando porque estava gerando um impacto social muito grande, essas pessoas no sinal pedindo dinheiro. Então vinha uma cobrança da sociedade roraimense em cima da Polícia Federal para tomar alguma medida contra isso. A única medida que tínhamos à disposição era deportar", disse à DW Brasil o chefe da Delegacia de Polícia de Imigração do estado de Roraima, delegado Marcos Ribeiro.

"Mas isso [as deportações] é praticamente enxugar gelo, você tira hoje e amanhã está tudo de volta. E agora todos eles já descobriram a palavra mágica do refúgio, então não dá nem mais para realizar tantas deportações", afirmou o delegado.

Na sexta-feira (09/12), a PF tentou deportar mais de 450 venezuelanos, que foram levados de ônibus da região da Feira do Passarão, em Boa Vista, em direção à Venezuela. A PF argumenta que eles estão irregulares no país e que a legislação permite a deportação.

Entretanto, antes que os imigrantes fossem entregues às autoridades venezuelanas na fronteira, a deportação foi interrompida por uma liminar da Justiça Federal brasileira. A defensora pública federal Roberta Pires Alvim foi a responsável por entrar com um habeas corpus para que os venezuelanos pudessem aguardar o processo de deportação em território nacional.

Ela considera que as deportações em massa não respeitam o devido processo legal, porque, segundo ela, não permitem que o imigrante seja notificado, apresente documentos e possa se defender.

"Quando se deporta em massa não se consegue individualizar a situação de cada um. Pode ser que uma pessoa esteja em condição de refúgio ou tenha uma outra situação migratória. Quatrocentos e cinquenta pessoas foram recolhidas de manhã e já seriam deportadas no mesmo dia, eu não consigo acreditar que houve o devido processo legal", apontou Alvim.

A defensora cita ainda a Convenção Americana de Direitos Humanos, tratado internacional assinado e ratificado pelo Brasil, que proíbe a expulsão coletiva de estrangeiros. "Há decisões da Corte Interamericana justamente falando isso, que deportações em massa ferem a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos. E houve condenações de países já com base nesse fundamento", afirma ela.

O delegado Ribeiro afirma que a deportação não foi em massa. "Não se tratava de uma deportação coletiva. Lógico, o transporte foi coletivo. Mas para cada um foi instaurado uma portaria de deportação. Nós fizemos uma entrevista rápida com todos, é um processo individualizado", afirmou o delegado Ribeiro. 

Entre janeiro de 2015 e setembro de 2016, mais de 77 mil venezuelanos entraram no Brasil pela cidade fronteiriça de Pacaraima, no norte de Roraima, segundo o Ministério da Justiça. No mesmo período, saíram pouco mais de 67 mil, ou seja, cerca de 10 mil permaneceram.

Nesse fluxo, vários indígenas também cruzaram a fronteira e vivem hoje de forma provisória nas ruas de Pacaraima e Boa Vista, em condições precárias de higiene e saúde. Há também muitos venezuelanos trabalhando em semáforos da capital.

Em 2016, o número de solicitações de refúgio de venezuelanos mais do que dobrou, chegando a 1.805. A quantidade é maior do que a soma de todos os pedidos de venezuelanos dos últimos cinco anos.

"Jogados na fronteira"

O prefeito de Pacaraima, Altemir Campos (PEM), também critica a política de deportações. A cidade brasileira, na fronteira com a Venezuela, tem uma relação histórica e intensa com os vizinhos.

Segundo o prefeito, as pessoas "foram jogadas na fronteira" e as autoridades venezuelanas chegaram a reclamar com ele da atitude. "O prefeito de lá ficou chocado e me disse: 'e se eu pegar os 50 mil brasileiros que estão irregulares aqui e jogar na bandeira? Vocês vieram trazer 250, e se a gente levar 50 mil?'", afirmou.

O professor Gustavo da Frota Simões, de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima, também considera as deportações negativas. Ele afirma que essa tem sido a principal face do poder públicoem relação ao fluxo migratório de venezuelanos no estado. Segundo ele, a atuação do governo federal na questão "tem sido muito restrita".

A Irmã Telma Lage, advogada e coordenadora do Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima, concorda. "A única política do Estado é a deportação. E ela é principalmente voltada contra os indígenas", diz ela.

O Ministério da Justiça  disse, por meio de nota, que enviou uma missão para averiguar a situação migratória em outubro e "iniciou tratativas com o Governo do Estado de Roraima para chegar, conjuntamente, a uma solução duradoura nos municípios mais afetados pelo movimento migratório".

Abrigo

Apesar do envio da missão e da presença de centenas de indígenas venezuelanos nas ruas de Roraima, não há um interesse do governo federal em criar um abrigo para acolher os imigrantes. O Ministério da Justiça admite que "não há essa expectativa".

O mesmo vale para o governo estadual, que abriu, no final de novembro, um centro móvel de referência ao imigrante, com atendimento médico e alimentação, mas que não pretende estabelecer um local de acolhida, porque não "há condições financeiras".

"O abrigo não é a opção correta, porque estimularia a vinda de mais pessoas. Se nós criarmos um abrigo e não fizermos uma medida de contenção da vinda de venezuelanos, a gente vai sobrecarregar o abrigo", disse Amaral.

O prefeito de Pacaraima segue o mesmo raciocínio. "Eu não sei se um abrigo seria grande resultado, porque quanto mais você faz, mais aumenta [o número de pessoas]", disse Campos.

A irmã Telma Lage critica esse argumento e defende que o poder público está mais preocupado em impedir a chegada dos imigrantes do que encontrar uma solução. "Infelizmente tem essa mentalidade. As pessoas acham que qualquer ajuda vai aumentar esse fluxo".

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