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Coronavírus: como política de Trump amplia espaço para China conquistar influência

Antes da chegada do coronavírus, o mundo acompanhava uma disputa comercial e tecnológica entre as duas maiores economias. Agora, quando se fala no desenho de forças no cenário pós-coronavírus, a grande pergunta é se a China vai superar os Estados Unidos como liderança global.

A BBC News Brasil consultou especialistas em relações internacionais para explicar as expectativas em relação à ordem mundial pós-pandemia. Eles apontam que a crise está acelerando tendências geopolíticas que se desenhavam antes do coronavírus, como o fato de que Washington já se distanciava da liderança global.

Tatiana Prazeres, que foi secretária de comércio exterior no Brasil e conselheira sênior do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), diz que os Estados Unidos estão mais autocentrados e menos dispostos a liderar uma resposta internacional para a pandemia, o que abre espaço para o avanço dos chineses.

"A China está ocupando um espaço gerado pela retração dos americanos", aponta ela, que é professora na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim. "Há realmente o risco de que a mudança geopolítica se dê nessa direção, e é um resultado que depende mais do que os americanos estão deixando de fazer do que o que a China está fazendo."

Um exemplo claro desse movimento, segundo os especialistas, está ligado ao repasse de recursos para a Organização Mundial da Saúde (OMS).

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a suspensão da contribuição financeira do país à OMS. Ele disse que a entidade errou na forma de lidar com a pandemia e que é "amplamente financiada pelos Estados Unidos, mas muito focada na China". Depois disso, a China anunciou que contribuirá com US$ 30 milhões adicionais à OMS.

O ex-embaixador do Brasil em Washington Rubens Barbosa concorda que "é a atitude de Trump em relação às políticas que abre espaço para a China" e aponta que elas contrariam a tradição americana do pós-guerra.

"Depois da guerra, se não fossem os Estados Unidos, não teria havido reconstrução da Europa", disse ele, em referência ao Plano Marshall, que foi o plano americano de reconstrução de países europeus aliados depois da Segunda Guerra Mundial.

"Agora, com essa atitude, estão perdendo poder e isso cria uma dificuldade adicional, porque não tem ninguém com a força deles. A China tem outro sistema, então fica um vazio que a gente está vendo acontecer, com falta de iniciativa conjunta, falta de cooperação."

Os Estados Unidos foram acusados de "pirataria" e "desvio" de equipamentos que iriam para Alemanha, França e Brasil.

Além do que vem sendo descrito como "roubo" de contratos pelos norte-americanos (que estariam fazendo ofertas financeiras mais altas do que as já assinadas entre países e fornecedores), Trump recorreu a uma lei da época da Guerra da Coreia, nos anos 1950, para proibir a 3M, empresa americana que produz máscaras, de exportar seus produtos médicos para outros países.

Ao mesmo tempo, a China fez o que foi chamado de "diplomacia das máscaras": depois de controlar o coronavírus dentro de suas próprias fronteiras, Pequim ofereceu ajuda a países de vários continentes para combater a doença.

A Itália recebeu doações de suprimentos médicos, kits de testes e até uma força-tarefa de médicos chineses, o que levou a hashtag #grazieCina (obrigada China, em italiano) a fazer sucesso nas redes sociais italianas.

O futuro da política internacional dos Estados Unidos depende, como lembra Rubens Barbosa, do resultado das eleições deste ano: se vencerá o presidente Donald Trump, com sua política nacionalista (sintetizada no slogan "America First"), ou o candidato democrata Joe Biden. De forma geral, republicanos tendem a defender políticas mais isolacionistas que os democratas, ou seja, de olhar pra dentro do país e não priorizar instituições globais e acordos multilaterais.

Até agora, o ex-embaixador diz que a China tem demonstrado mais força no cenário internacional. "Apesar das críticas, apesar da vulnerabilidade, apesar de cair o crescimento da China, eu acho que a China hoje está melhor preparada que os Estados Unidos para emergir mais forte."

Queda histórica na economia

Com a pandemia, a economia da China caiu 6,8% no primeiro trimestre de 2020. Foi a primeira queda do PIB chinês da série histórica que começa em 1992.

E os efeitos desastrosos do coronavírus na economia de países europeus também já começaram a ser divulgados. O PIB da Itália caiu 4,7% no primeiro trimestre, o pior registrado na série histórica iniciada em 1995.

O PIB da França encolheu 5,8% nos três primeiros meses deste ano, maior queda desde 1949, quando começa a série histórica do país. E a economia da Espanha teve contração de 5,2%, a maior queda em quase um século. A última vez que uma retração desse tamanho ocorreu no país foi após a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), segundo estimativas de historiadores.

O que pesa contra a China

O professor de política internacional da Fundação Getúlio Vargas Guilherme Casarões também diz que o presidente chinês, Xi Jinping, está tentando se posicionar "de maneira mais assertiva em defesa do multilateralismo e da cooperação internacional", movimento que a China já vinha fazendo, segundo ele, desde 2014.

"A pandemia abre oportunidade muito clara para que a China aprofunde esse processo."

No entanto, ele destaca que, para conquistar a confiança de outros países, a China enfrenta o desafio de reparar o dano à imagem dela, causada pelo início da pandemia.

"Hoje é fato e é notório que as autoridades chinesas demoraram muito para reagir. Não é só o fato de a China ser uma ditadura, mas tem a ver com a própria dinâmica do Partido Comunista, você tem uma cadeia de comando complexa… foi, inquestionavelmente uma resposta lenta."

A resposta da China, segundo Casarões, está exatamente nessa ampliação de ajuda humanitária e cooperação internacional na área de saúde. O lado bom para os países, segundo ele, é que, de certa forma, compensa a política mais fechada dos Estados Unidos.

Por outro lado, ele aponta que, nessa busca de limpar sua imagem, a China tem adotado medidas autoritárias, como censura, para tentar controlar a narrativa sobre o vírus.

"O lado negativo de tentar limpar a própria imagem é que o governo chinês começou a impor uma série de censuras a pesquisas científicas na China, sobretudo pesquisas que se relacionem com origem do vírus. O governo agora está controlando bastante o estudo sobre as origens, até para que a narrativa chinesa não se comprometa."

Nos últimos dias, a China rejeitou pedidos de uma investigação internacional independente sobre a origem do coronavírus. O argumento do governo chinês é que essas demandas são politicamente motivadas e desviariam a atenção da China do combate à pandemia.

Trump tem adotado um discurso de culpar a China pela pandemia e disse que o governo americano investiga rumores de que o surto poderia ter começado no instituto de virologia de Wuhan, cidade chinesa que foi o primeiro epicentro da doença. O governo chinês já rebateu as acusações e disse que os Estados Unidos querem confundir a população.

Um estudo publicado em janeiro na revista Lancet por mais de 20 pesquisadores sobre o perfil dos pacientes infectados com a covid-19 em Wuhan mostra que 66% dos pacientes pesquisados tiveram uma exposição ao mercado da cidade.

Além disso, outro estudo publicado na mesma revista por cientistas de vários países afirmaram que há sólidas evidências de que o vírus surgiu entre animais selvagens.

Rubens Barbosa diz que a China "vai passar a ser visada" pela Europa, Estados Unidos e outros países. "Os países vão começar a querer processar a China pela maneira que está tratando questão da pandemia. Vai ter mais uma frente de atrito que vai aparecer no cenário internacional depois do fim da pandemia."

Um relatório da União Europeia acusa a China de espalhar desinformação sobre a crise. O texto diz que autoridades chinesas e a mídia estatal cortam qualquer menção a Wuhan como a origem do vírus, com alguns canais de mídia social controlados pelo estado continuando a espalhar a teoria de que o surto estava ligado à visita de militares dos EUA.

No Reino Unido, um grupo de parlamentares conservadores defende que a Grã-Bretanha precisa entender melhor as ambições econômicas e o papel global da China quando a crise do coronavírus terminar.

O parlamentar Tom Tugendhat, que preside o Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos Comuns, diz que o grupo não será anti-China, mas que "exploraria oportunidades de se envolver" com o país e examinaria seus objetivos econômicos. Tugendhat acusou o Partido Comunista chinês de colocar sua própria sobrevivência à frente da sobrevivência das pessoas durante o surto de coronavírus.

A disputa entre Estados Unidos e China continuará pautando o mundo depois da pandemia, segundo Casarões.

"É uma briga de natureza comercial, que entrou no campo tecnológico — sobretudo relativo ao 5G — , e hoje vivemos uma disputa de narrativas muito forte, sobre onde deve ser colocada a responsabilidade sobre o que está acontecendo", diz. "Estamos vendo essa essa estratégia do Trump, da extrema direita americana, e até de apoiadores do Bolsonaro, de rotular o vírus como vírus chinês. Isso faz parte de tentar construir essa perspectiva de vencedores e perdedores, ou do bem e do mal."

Modelo de poder chinês

Quando se fala em um eventual aumento de poder da China, uma das discussões é sobre como seria esse modelo de influência.

Prazeres, que mora na China desde janeiro de 2019, diz que a China não rechaça a ordem existente (e quer reformá-la), mas também quer criar suas próprias regras.

"A China, em alguma medida, é reformista – quer reformar a ordem internacional, as regras internacionais, influenciar a dinâmica de organizações já existentes e regras que foram criadas no pós-guerra, especialmente pelos americanos. Em em algum grau é revisionista e busca estabelecer suas próprias organizações, suas regras, criar novos mecanismos que respondam a seus interesses, e aí você tem o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura e a própria Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative)."

Ela diz que a percepção dos chineses é que é legítimo que o país busque influência no cenário internacional correspondente ao seu peso econômico no mundo.

"A atuação internacional da China está ligada ao objetivo do país de crescer, acabar com pobreza e promover desenvolvimento econômico, mas há outras agendas de ordem política que fazem parte. Não é uma coisa só."

Para Casarões, o modelo chinês de projeção de poder leva em conta soberanias e particularidades dos países com que se relaciona.

"Ela não impõe seu modelo sobre o mundo, mas ela não tem preconceito ideológico ou político de se relacionar com ninguém – das ditaduras mais brutais aos países mais livres. Ela tem postura mais voltada ao interesse econômico", diz ele.

E o Brasil com isso?

Autoridades do governo brasileiro e aliados do presidente Jair Bolsonaro fizeram repetidas críticas à China por conta da pandemia do novo coronavírus.

O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, divulgou em rede social uma mensagem em que diz que "a culpa é da China". A fala foi repudiada pela Embaixada da China.

Em outro episódio, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou no Twitter uma mensagem insinuando que a pandemia servia aos desejos da China de "dominar o mundo".

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que, em meio à disputa das duas potências, o Brasil deveria fazer o possível para não comprar briga com nenhum lado.

"Temos que ampliar relações com todo mundo. O Brasil tem que defender seus próprios interesses. Não devemos tomar partido, como estamos fazendo agora. Temos que ter independência, resolver cada problema de acordo com o interesse brasileiro", diz o ex-embaixador Rubens Barbosa.

Tatiana Prazeres diz que é um momento difícil e que posições equilibradas são "especialmente necessárias".

Para Casarões, "olhando friamente, sem questão ideológica envolvida, não faria sentido entrar em rota de colisão neste momento".

"Já não fazia antes da crise, mas agora faz menos ainda. A China é fator estratégico para o Brasil e para a recuperação econômica no futuro."

Ele diz que considera uma "estupidez estratégica" comprar briga com o principal parceiro comercial do Brasil, mas diz que é uma estratégia política.

"É uma das estratégias que o governo Bolsonaro, fragilizado como está, acaba criando para manter a base mobilizada. Vejo essa briga com relação à China como parte da estratégia do Bolsonaro para dentro, uma coisa populista. Essa narrativa anti-China serve pra continuar mobilizando o apoio nas ruas, no WhatsApp e nas redes sociais."

 

 

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