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Como Guy Fawkes se tornou o rosto de protestos pelo mundo

Quando a noite cai no Reino Unido no dia 5 de novembro, milhares de famílias londrinas se dirigem ao parque mais próximo para apreciar a queima de fogos de artifício e a fogueira local. E provavelmente saborear as especialidades típicas do dia, como bolo parkin e maçãs caramelizadas.

Essa tradição britânica marca o dia em 1605 em que o quase terrorista católico Guy Fawkes foi preso por tentar assassinar o rei Jaime 1º, explodindo as Casas do Parlamento em Londres com 36 barris de pólvora. Depois de torturado para que confessasse, ele foi enforcado e seu cadáver, esquartejado.

Na mesma noite, em outras cidades do país e pelo mundo afora, milhares deverão ir às ruas numa global Marcha dos Milhões de Máscaras, portando a máscara de Guy Fawkes, com o inconfundível rosto pálido e bigode e barbicha finos.

Dos quadrinhos para as ruas

Esse ícone se difundiu através do romance gráfico V de Vingança (V for Vendetta), dos ingleses Alan Moore e David Lloyd, de 1980, e da produção cinematográfica homônima de 2006, dirigida por Andy e Lana Wachowski. Na última cena do filme, uma multidão de cidadãos mascarados de Guy Fawkes, em luta contra um distópico Estado fascista, vê o Parlamento britânico explodir.

O ilustrador do romance em quadrinhos, David Lloyd, descrevera certa vez a máscara como "um cartaz conveniente para se usar em protestos contra a tirania […] um ícone da cultura popular ser utilizado desse modo parece ser algo único".

Este é o quarto ano consecutivo em que o grupo Anonymous convoca cidadãos de todo o mundo para se manifestarem contra o autoritarismo, a austeridade e a vigilância em massa.

O movimento se define como "'hacktivismo' em nome da verdade, como autodefesa contra o governo inconstitucional". Em 2014, as marchas mascaradas se estenderam por locais tão distantes quanto Alemanha, Austrália, Brasil, China, Estados Unidos e Suécia.

Ícone popular maleável

Steven Fielding, professor de História Política da Universidade de Nottingham, Inglaterra, procura explicar como, mais de quatro séculos depois, Guy Fawkes se transformou no rosto dos anarquistas políticos. "É o poder de David Lloyd, que ilustrou o romance gráfico original dos anos 80. Mas foi por obra do filme de 2006 que a máscara ganhou popularidade."

Segundo Fielding, a adoção da imagem de Fawkes por manifestantes anti-establishment demonstra como a cultura e as tradições populares são maleáveis.

"Essas velhas tradições podem também ser muito modernas. As pessoas as usam dos jeitos mais diferentes, adequando-as ao que quer que queiram dizer no momento. É parte de sua reinvenção. E a Noite das Fogueiras, em particular, se transformou numa tradição cuja forma de manifestação as pessoas podem controlar."

Como a conotação anticatólica do 5 de novembro se dissolveu no passado, a figura de Fawkes ficou aberta à reinterpretação por ativistas contemporâneos. Fielding, contudo, ressalta a grande ironia dessa apropriação por quem defende a liberdade do indivíduo: a Conspiração da Pólvora de 1605 na verdade aspirava a ver a Igreja Católica – e, portanto, Roma – de volta ao trono inglês.

Aberto às próximas gerações de ativistas

Até hoje, as crianças inglesas aprendem uma macabra rima relacionada ao golpe terrorista frustrado de 1605, que começa com os seguintes versos:

Remember, remember the Fifth of November,
The Gunpowder Treason and Plot,
I know of no reason
Why the Gunpowder Treason
Should ever be forgot.

(Em tradução livre: "Lembrem, lembrem, o 5 de novembro, / A Traição e Complô da Pólvora, / Não conheço nenhuma razão / Para que a Traição da Pólvora / Um dia seja esquecida.")

Depois de 410 anos comemorando o Dia de Guy Fawkes ou Noite da Fogueira, as intenções originais do conspirador se perderam na memória cultural, e ele se tornou um ícone da dissidência e da resistência: por trás das máscaras, os ativistas estão unidos.

Nos últimos anos, o rosto de Guy Fawkes não tem sido visto apenas na Marcha dos Milhões de Máscaras, mas também nos protestos do movimento Occupy e até mesmo durante a Primavera Árabe. "O fator comum que une todos esses grupos é a oposição à autoridade", esclarece Fielding.

O legado de Guy Fawkes é um exemplo perfeito do significante vazio (ou flutuante) da semiótica, sempre pronto a ser preenchido com sentidos novos: realmente, parece não haver motivo para "pólvora, traição e complô" um dia serem esquecidos. A imagem continua aberta a reinterpretações pelos movimentos políticos de muitas gerações por vir.

 

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