Ben Bland, Tom Hancock e Bryan Harris
Jeju ficava tomada por turistas chineses que acorriam à ilha sul-coreana para usufruir de seus resorts à beira mar e de sua paisagem acidentada. Mas em março a estrutura montada para atender consumidores chineses murchou quase da noite para o dia, após Pequim ter impedido as agências de viagem chinesas de enviar grupos de turistas à Coreia do Sul, em retaliação à decisão de Seul de instalar um sistema americano de defesa antimíssil para se proteger contra a imprevisível Coreia do Norte.
O número diário de visitantes procedentes da China caiu para mil, de 7,5 mil registrados dias antes, de acordo com dados oficiais. A situação é semelhante em Seul, onde as áreas de compras até há pouco muito procuradas por turistas chineses estão desertas.
"Desde 15 de março, não vi um único chinês vir à nossa loja", diz uma pessoa da equipe de vendas. "A empresa está nos obrigando a tirar licença não remunerada simplesmente por causa da queda do número de turistas chineses", acrescenta outra.
O impacto não foi sentido apenas por varejistas e hotéis. Montadoras coreanas também foram duramente atingidas. A Hyundai informou que suas vendas na China, o maior mercado de automóveis do mundo, caíram 14% no primeiro trimestre, em relação ao mesmo período do ano passado, enquanto a comercialização de veículos da Kia recuou 36%, apesar do crescimento de 4% registrado pelo mercado chinês como um todo no mesmo período.
A China realiza boicotes como esse contra seus inimigos há mais de 100 anos, e sabe como lhes impor grandes agruras econômicas e políticas. Controlar o acesso ao amplo mercado da China concede ao presidente Xi Jinping e ao Partido Comunista uma alavancagem poderosa sobre os parceiros comerciais, e lhes permite mostrar suas credenciais nacionalistas ao público interno.
Mas Pequim precisa executar um delicado número de equilibrismo para garantir que seus embargos não prejudiquem a economia nem desencadeiem forças de nacionalismo exacerbado e de protesto capazes de ameaçar o sistema de partido único.
As montadoras japonesas, os bananicultores das Filipinas e os trabalhadores de Taiwan do setor de turismo já foram alvos, anteriormente, de campanhas hostis, instigadas, em vários graus, por Pequim e pela mídia controlada pelo Partido Comunista.
Diplomatas e executivos estrangeiros têm pavor da acusação de terem "ferido os sentimentos do povo chinês", a retórica comunista muitas vezes usada para instituir um embargo. Seus temores são intensificados pelo crescente poder econômico da China, pelo estridente tom nacionalista adotado por Xi e pelo fato de os consumidores serem facilmente influenciados por redes sociais como o Weibo e o WeChat.
Os resultados podem ser devastadores, com carros depredados, fábricas atacadas e anos de esforços para penetrar em um dos maiores mercados do mundo perdidos da noite para o dia. "Para as empresas estrangeiras, há muito pouco a fazer para se defender desse tipo de ação politizada, a não ser fazer lobby interno para manter sólidas relações com a China", diz Duncan Innes-Ker, analista para a China da Economist Intelligence Unit.
A história do boicote chinês antecede a cunhagem da própria palavra, originária da Irlanda na década de 1880, e que abarca patriotismo, anticolonialismo, rivalidade econômica e surtos esporádicos de violência.
Em 1905, o presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt defendeu a reforma de uma legislação discriminatória que restringia a imigração chinesa após um boicote "especialmente prejudicial" ao algodão americano.
"É uma postura verdadeiramente míope permitirmos que concorrentes estrangeiros nos expulsem dos grandes mercados da China", advertiu ele. O papel da China na economia mundial como centro industrial e mercado final é atualmente muito mais significativo.
E o controle de Pequim sobre a economia, por meio de empresas estatais e da pressão sobre empresas do setor privado, é poderoso. Diante disso, para muitos países e companhias, a advertência de Roosevelt sobre o risco de contrariar a China encontra eco mais do que nunca.
Mas a integração econômica da China também é um fator inibidor. A Coreia do Sul é o maior fornecedor de produtos importados pela China e é seu quarto maior mercado de exportações. A exemplo do Japão, que sofreu muitas vezes com os embargos impostos por Pequim, a Coreia do Sul fornece muitos dos componentes e máquinas de alta tecnologia que impulsionam a indústria de transformação chinesa.
"Essa retaliação econômica também vai prejudicar os interesses de Pequim, uma vez que a China importa bens intermediários coreanos para dar acabamento a produtos industriais e revende-los a outros mercados", adverte Kim Taehwan, um dos dirigentes da Federação Coreana de Pequenas e Médias Empresas.
"As empresas coreanas, além disso, empregam muitos trabalhadores chineses." Embora nos últimos anos o Japão tenha incitado a ira chinesa por se opor a Pequim na disputa pela soberania de ilhas no Mar da China Oriental, a Coreia do Sul parece ter realizado uma delicada manobra de equilibrismo ao aprofundar seus investimentos na China apesar de abrigar um grande contingente de soldados americanos.
Mas tudo isso mudou com a decisão, no ano passado, de instalar o escudo antimísseis Defesa de Área a Grande Altitude (THAAD, nas iniciais em inglês), um sistema americano destinado a abater mísseis da Coreia do Norte.
O governo chinês ficou profundamente irritado com a iniciativa, que, segundo teme, poderá expandir a estrutura de segurança americana na região e permitir uma vigilância maior de suas próprias atividades.
As forças americanas informaram na semana passada que o THAAD havia entrado em operação. A reação da China ao THAAD evoluiu gradualmente. A princípio Pequim voltou as baterias contra determinadas companhias sul-coreanas em torno de questões sanitárias e de segurança.
Mas sua posição endureceu na medida em que foi ficando claro que Seul levaria adiante a instalação do sistema antimíssil. Produtos foram retidos nas alfândegas. Funcionários de empresas coreanas sofreram assédio.
O grupo varejista sul-coreano Lotte foi especialmente prejudicado, ao ter 87 de suas 99 lojas na China fechadas por ter cedido um campo de golfe a Seul para auxiliar na instalação do THAAD.
A retaliação se tornou explícita apenas quando os EUA começaram a instalar as primeiras partes da bateria antimíssil, em março. O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, advertiu que os sul-coreanos "vão apenas acabar se prejudicando".
A Coreia do Sul reclamou à Organização Mundial de Comércio (OMC) que a China "pode estar infringindo alguns acordos comerciais". Mas Seul está presa entre sua aliança ideológica com os EUA e seus laços comerciais e econômicos com a China, sua maior parceira comercial.
A situação ficou ainda mais complicada com o afastamento, em março, da presidente sul-coreana Park Geun-hye. Moon Jae-in, o principal candidato na eleição presidencial desta semana, é mais simpático à China e há muito manifesta reservas com relação ao escudo antimíssil. Num debate, ele conclamou Pequim a "suspender imediatamente" seu boicote, mas acrescentou que Seul deveria "fazer esforços diplomáticos para convencer a China".
A campanha contra a Coreia do Sul foi implementada por Pequim com a ajuda da mídia estatal, que divulgou uma bateria de artigos condenando o sistema antimíssil e sugerindo que ele faria parte de um complô dos EUA para deter a ascensão da China.
Mas, a exemplo do que ocorreu em boicotes anteriores, as autoridades provinciais chinesas temem que os protestos possam sair do controle. Após manifestações à porta de uma loja da Lotte, na província de Hunan, no sul do país, terem resultado na depredação de um carro sul-coreano em março, a polícia provincial disse aos moradores que o vandalismo é ilegal e defendeu um "patriotismo racional".
"As tensões entre o governo e o nacionalismo popular remontam, no mínimo, a 100 anos atrás", diz Robert Bickers, autor de um livro sobre o nacionalismo chinês. "Às vezes o governo tenta agitar, às vezes tenta conter a população e outras vezes é totalmente tomado de surpresa." Kaiser Kuo, um comentarista cultural sino-americano e ex-executivo do grupo de tecnologia Baidu, sugeriu que os dirigentes do país ficam "ao pé da fogueira do nacionalismo com um abano em uma mão e uma mangueira na outra".
"Eles podem atiçar as chamas para intimidar, ou apontar para elas durante uma negociação para que suas alternativas pareçam limitadas pelo clamor da opinião pública doméstica", escreveu ele em recente ensaio.
"Mas, com a mangueira, podem também impedir que o fogo extravase e incendeie a valiosa área rural circundante." Economistas e investidores discutem há muito tempo a eficácia de boicotes. Em seu Estudo dos Boicotes Chineses, de 1933, o professor de economia C.F. Remer, da Universidade de Michigan, argumentou que eles têm um forte impacto "psicológico" sobre o país-alvo, apesar de a China também sofrer alguma reação negativa econômica.
"O boicote promovido por um único país é como uma greve de trabalhadores", escreveu. "A ameaça de greve é poderosa? mas a greve em si tende a ser onerosa e ineficiente." Pesquisas mais recentes apontam para um impacto inicial significativo, seguido por uma recuperação posterior do comércio exterior, o que sugere que as encomendas são adiadas, mas não canceladas definitivamente.
Em alguns casos, os embargos arrefecem com o surgimento de fatos novos. Em outros, são necessárias negociações prolongadas para reconstituir os laços. Andreas Fuchs, economista da Universidade de Heidelberg, descobriu que os países tendem a sofrer uma queda temporária nas exportações à China quando seus governos se reúnem com o Dalai Lama, o líder do budismo tibetano visto por Pequim como perigoso separatista.
O comportamento foi semelhante no boicote de 2012 aos produtos japoneses. Kilian Heilmann, pesquisador da Universidade da Califórnia em San Diego, detectou que as exportações japonesas de automóveis para a China despencaram 32%, ou cerca de US$ 1,9 bilhão, nos doze meses após o boicote, desencadeado em setembro de 2012, como reação à compra, por Tóquio, das ilhas com soberania contestada conhecidas como Diaoyu na China e como Senkaku no Japão. Mas o comércio voltou aos níveis normais no ano seguinte.
Essas recuperações questionam se esses boicotes são ou não bem-sucedidos em mudar a política de governos estrangeiros. Houve, certamente, algumas grandes vitórias para a China nos últimos anos. Os investidores britânicos colheram bons frutos ao fazer lobby sobre o governo britânico para não voltar a receber o Dalai Lama após serem esnobados pelas autoridades chinesas quando David Cameron, o premiê na época, se reuniu com o líder espiritual, em 2012.
Pequim cancelou vários encontros com ministros britânicos e acordos de investimento foram postos em suspenso enquanto não ficou claro que o encontro não se repetiria. No ano passado, a Noruega teve de passar por anos de negociações e prometer ter "na mais alta conta os interesses centrais e grandes preocupações da China" para conseguir restabelecer os laços comerciais, após Pequim punir Oslo devido à decisão, em 2010, de um grupo independente – nomeado por políticos noruegueses – de laurear com o Prêmio Nobel da Paz o dissidente Liu Xiaobo.
Em estudo destinado a um instituto de análise e pesquisa norueguês, o economista Ivar Kolstad diz que as sanções podem dissuadir críticas ao histórico da China em direitos humanos. Ele calculou que a disputa custou à Noruega entre US$ 780 milhões e US$ 1,3 bilhão em exportações, e concluiu que a China tinha ficado "grande demais para criticar".
O presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, assumiu posição semelhante, ao reverter a atitude contestatória de seu predecessor sobre os conflitos em torno do Mar do Sul da China, na esperança de conquistar concessões econômicas da parte de Pequim. Rory Medcalf, diretor da Faculdade de Segurança Nacional da Universidade Nacional da Austrália, está conclamando os países a revidar as tentativas de Pequim de brandir o discurso do poder econômico chinês com uma análise mais matizada de sua verdadeira influência. "A China se saiu extremamente bem ao explorar a sombra de seu crescimento", diz ele.
"Há um mito na Austrália de que a nossa economia é totalmente dependente da demanda chinesa devido a nossas exportações de minérios." A China é o maior mercado dos produtos australianos, ao responder por 27,5% das exportações do país.
Mas, ao contrário de outras economias desenvolvidas, como a Coreia do Sul e Cingapura, o comércio exterior é menos importante para a Austrália, por representar pouco mais de 5% de seu Produto Interno Bruto (PIB). O Japão, o alvo mais frequente dos boicotes chineses, está se acostumando a neutralizar os efeitos negativos potenciais.
"Após os protestos de 2012, muitas empresas japonesas perceberam que nossa posição na China continuará precária, e isso acelerou nosso ingresso em outros mercados, mais amigáveis, como o do Sudeste Asiático", diz um executivo de uma empresa industrial japonesa atuante na Indonésia.
Embora diferentes países tenham graus variados de exposição à pressão econômica chinesa, o professor Bickers diz que a ameaça a todos continuará a crescer em consonância com a crescente projeção, por Pequim, de seu poderio político e militar e com os temores do Partido Comunista de perder o poder.
"Estamos ingressando em uma nova fase, com a assertividade bem-sucedida da China no Mar do Sul da China", acrescenta. "Quando o plano de ação de Xi de rejuvenescimento da China se alia à insegurança da China, fico muito preocupado."