Massas eufóricas festejando a guerra, trens abarrotados de soldados radiantes a caminho do front. E, então, imagens de morte numa paisagem lunar chamada Verdun, palco da mais sangrenta batalha da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). No centenário de sua declaração, o conflito está por toda parte, e exposições pela Europa afora relembram a "Grande Guerra" e suas consequências.
Somente na Alemanha deverão sair 150 novos livros a respeito, e os meios de comunicação do país lembram a irrupção da guerra em grandes especiais e comentários – o que é uma novidade.
Até então, na cultura da memória alemã, a "catástrofe primordial do século 20", com cerca de 20 milhões de mortos, representava um papel apenas secundário: os horrores da Segunda Guerra e a culpa dos alemães obscureceram durante décadas a memória da Primeira Guerra Mundial.
Mas agora o destaque está por conta da "Grande Guerra", como costumava ser denominada. E os comentaristas voltam a levantar velhas questões: quem foi o culpado pelo conflito? Como a catástrofe poderia ter sido evitada? E que lição se tira disso, hoje em dia?
Culpa controversa
Na Alemanha, o debate está sendo impulsionado especialmente por dois lançamentos literários monumentais: Der Grosse Krieg: Die Welt 1914-1918 (A Grande Guerra – O mundo em 1914-1918), de Herfried Münkler, e a tradução para o alemão de The sleepwalkers: How Europe went to war in 1914 (Os sonâmbulos: Como a Europa foi à guerra em 1914), do australiano Christopher Clark.
Este último questiona o que desde a década de 60 é tido como consenso entre os historiadores alemães: que a culpa pelo início da Primeira Guerra Mundial foi da Alemanha. Na contramão dessa certeza, Clark descreve os eventos até a eclosão, em agosto de 1914, como "resultado de uma densa sequência de acontecimentos e decisões, num mundo entremeado de relações e conflitos múltiplos".
O jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (NZZ) comenta: "Em seu livro recentemente lançado em alemão The sleepwalkers, que descreve com virtuosismo e minúcia as causas e constelações da Primeira Guerra Mundial, até Sarajevo, o historiador Christopher Clark traça um quadro impressionante – também da Sérvia – dos antecedentes do grande conflito."
A intenção do autor "não é minimizar a responsabilidade das Potências Centrais [Impérios Austro-Húngaro, Germânico e Otomano e Bulgária] nas causas e desdobramentos" da Primeira Guerra, ressalta o NZZ. Mas o debate sobre a culpa se reflete também em outros veículos de comunicação.
Numa entrevista de duas páginas ao Frankfurter Rundschau, em dezembro último, o historiador social Hans-Ulrich Wehler rebate a tese de Clark. Ele reitera a culpa central alemã, embora também registrando a parcela de responsabilidade que coube ao nacionalismo de todos os lados.
"Atualidade assustadora"
Ao resenhar o recém-lançado estudo de Herfried Münkler, o Berliner Zeitung introduz um outro aspecto: "Sub-repticiamente, [o livro] também explica de onde vem o interesse crescente na Primeira Guerra Mundial: nele, pode-se estudar a confluência fatal de conflitos que eram distantes entre si, tanto no que diz respeito à motivação quanto ao espaço."
O semanário Der Spiegel enfoca em seu primeiro número de 2014 a "assustadora atualidade" da guerra, refletindo sobre se o conflito tem mais a ver com confrontos atuais do que se pensa.
"Em tempos de Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), com forças de combate integradas, é quase impossível imaginar-se uma guerra entre europeus. Mas no século 21 também há outros meios de semear discórdia. O que antes era a mobilização das forças de combate, pode ser hoje a ameaça de precipitar na falência um Estado como a Grécia, caso seus cidadãos não acatem as exigências dos ministros das Finanças de outros países europeus", diz o texto da publicação.
Outros veículos também apontam uma conexão centenária. O diário Kölner Stadt-Anzeiger traça paralelos entre a crise de julho de 1914, que acabou na irrupção da Primeira Guerra Mundial, e a crise da moeda europeia, que já dura anos. "Nas reuniões de crise sobre o euro todos sabem que o fracasso das negociações poderia ter efeitos catastróficos. Porém, seguem prevalecendo os interesses nacionais. Com um certo exagero, os protagonistas de julho de 1914 poderiam até ser nossos contemporâneos."
"Abominável eco"
Ao discutir a obra "A Grande Guerra", de Münkler, o jornal Die Tageszeitung (TAZ) observa: "Estará a Alemanha novamente na precária situação de ser pequena demais para o papel de poder hegemônico na Europa, e grande demais para ser um entre tantos outros países – só que não se luta mais com linhas de equipamento armamentista de frotas, e sim com linhas de crédito?" O diário responde em seguida que a chave é a relação franco-alemã. "Enquanto esse eixo funcionar, a Europa permanecerá pacifista."
Veículos internacionais também tentam tirar lições da Primeira Guerra Mundial. O jornal britânico Financial Times escreve: "Embora não haja motivo para temer que o mundo de 2014 se encontre à beira de uma catástrofe tão epocal, há algumas semelhanças inquietantes entre hoje e aquele tempo."
Por exemplo: "Cem anos atrás, era a Alemanha que procurava um lugar ao sol às custas do Império Britânico. Hoje, são cada vez mais a China e os Estados Unidos", diz o FT.
O The Economist, também do Reino Unido, compara os EUA com o Império Britânico então em decadência, conferindo à China o papel do Império Alemão da época, "uma nova potência econômica que, transbordando indignação nacional, se equipa militarmente". E o International New York Times fala do "abominável eco da Grande Guerra".
Porém, com todas as grandes comparações e amplos pareceres de especialistas políticos, econômicos e históricos, a lembrança da Primeira Guerra Mundial também é honrada em toda a Europa "de baixo para cima".
Um exemplo é o portal www.europeana1914-1918.eu, onde os usuários podem carregar fotos e cartas de seus ancestrais. Também há documentários televisivos que apresentam o sofrimento dos soldados, ou abrangentes séries online e impressas sobre a "Grande Guerra" e seus efeitos.