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Brasil reduz tropas no Haiti e muda foco de missão

João Fellet

A bordo de um veículo fortificado, um militar brasileiro percorre lentamente uma rua de Croix-des-Bouquets, bairro na periferia da capital haitiana, Porto Príncipe. Ao chegar ao fim da via, engata a marcha a ré e regressa com igual cuidado ao ponto de onde partiu, até erguer o polegar para um colega, sinalizando o cumprimento da missão.

A despeito de qualquer semelhança, a cena não retrata uma patrulha da Minustah (Missão da ONU para a Estabilização no Haiti, cujo braço militar é chefiado pelo Brasil) em alguma região perigosa de Porto Príncipe, mas sim o asfaltamento das ruas que darão acesso ao primeiro hospital permanente de Croix-des-Bouquets, uma das várias obras em curso tocadas pela missão.

À medida que a remoção dos escombros do terremoto de 2010 deixa para trás a fase emergencial e que os níveis de violência se estabilizam no Haiti, a Minustah – estabelecida em 2004 – começa a reduzir seu contingente e a mudar o foco da missão.

Nos próximos meses, conforme determinação do Conselho de Segurança da ONU, a Minustah concluirá a repatriação de 2.750 (20%) de seus 13.331 integrantes, fazendo com que a força volte a patamar próximo do que tinha antes do terremoto de 2010.

O contingente do Brasil, o maior entre os 56 países que integram a missão, perderá 288 de seus 2.189 membros até abril. Nos contingentes de outras nacionalidades, a redução já foi praticamente concluída, segundo a missão.

As mudanças ocorrem após uma série de denúncias contra a Minustah, como a de que a recente epidemia de cólera que matou cerca de 7 mil haitianos e contaminou pelo menos 400 mil começou num acampamento de militares nepaleses. A acusação ganhou força em maio de 2011, quando um relatório patrocinado pela ONU apontou o acampamento nepalês como a provável origem do surto.

Outro acontecimento que gerou críticas à missão foi a divulgação, em setembro, de um vídeo em que cinco soldados uruguaios abusavam de um jovem haitiano. Os militares foram repatriados e estão presos.

Novos procedimentos

Comandante da vertente militar da Minustah, o general brasileiro Luiz Eduardo Ramos diz à BBC Brasil que a realização pacífica da última eleição presidencial haitiana, no ano passado, mostrou que o Haiti estava mais estável e que a missão poderia alterar alguns procedimentos.

"Naquela época, as tropas estavam usando blindados, coletes, capacetes, armamento muito forte – uma postura que não se justificava mais", afirma Ramos, para quem o Haiti hoje, em termos de segurança, "está em boas condições para um país da América Central".

Em agosto, o general determinou que os blindados só fossem usados à noite e que os militares atuassem de maneira menos ostensiva, com armas mais leves. Paralelamente, em coordenação com o comando civil da Minustah, ampliou os investimentos da missão em obras.

"Hoje a nossa menina dos olhos é a engenharia. Na sua essência (a missão) não mudou, mas agora ela é uma missão mais voltada ao viés humanitário", diz.

Além de asfaltar vias, os militares estão instalando postes elétricos (abastecidos por energia solar), drenando canais, construindo escolas, hospitais e prédios para o governo haitiano, removendo entulho, limpando vias e perfurando poços artesianos, entre outras ações.

Segundo o general, a redução no contingente não afetará essas atividades, pois só serão repatriados soldados de infantaria, e não engenheiros militares. Hoje, os engenheiros representam 15% do total de integrantes da Minustah, porcentagem que deve aumentar nos próximos meses.

Contrastes em Cité Soleil

Os resultados da maior ênfase em engenharia são visíveis em partes de Cité Soleil, bairro pobre de Porto Príncipe outrora dominado por gangues. Hoje, muitas das vias do bairro estão pavimentadas e limpas, e as melhores condições de segurança permitem que ONGs estrangeiras atuem em escolas locais.

Em compensação, em áreas do bairro que ainda não foram beneficiadas pelas ações, o lixo mistura-se com as casas, não há iluminação pública à noite e o esgoto corre a céu aberto.

A BBC Brasil acompanhou uma patrulha rotineira de militares brasileiros pelo bairro. Embora a maioria dos moradores reagisse com indiferença aos soldados (à exceção das crianças, que pediam dinheiro e esticavam as mãos para cumprimentá-los), um jovem adulto interpelou o grupo para dizer que líderes de gangues expulsas estavam regressando ao local.

No comando da equipe, o major Reginaldo Rosa dos Santos respondeu, por intermédio do tradutor, que o novo delegado da Polícia Nacional do Haiti (PNH) responsável pela região, cuidaria do caso.

Isso porque, ainda que militares da Minustah façam patrulhas e, eventualmente, participem de operações para combater grupos criminosos, cabe à PNH apurar denúncias e efetuar prisões. Conforme o mandato que a instaurou, a Minustah – por intermédio da UNPOL, a polícia da ONU – deve prover "apoio operacional à PNH", além de supervisionar a ampliação e reforma da instituição.

No entanto, para o senador haitiano Youri Latortue, além de não apoiar a PNH como deveria, a Minustah é incapaz de evitar abusos de seus integrantes. Latortue, que culpa a missão pela epidemia de cólera, diz ter recebido na Comissão de Justiça do Senado doze denúncias de estupro e abuso de menores por militares estrangeiros.

Embora avalie a redução no contingente da Minustah como "um passo importante", ele defende que as tropas estrangeiras sejam substituídas em dois anos por uma nova força haitiana, intenção já anunciada pelo presidente Michel Martelly – que, no entanto, não estipulou um prazo para a implantação da nova unidade.

O senador diz que a instauração da Minustah tinha um propósito justo: estabilizar o país durante a turbulência social que sucedeu a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide.

Aristide, que desmantelara o Exército em 1994 após ter sido deposto num golpe, voltou a deixar o país em 2004, em meio a graves distúrbios após a morte do líder de um grupo criminoso.

Porém, oito anos depois, Latortue afirma que o cenário mudou e que a manutenção das tropas estrangeiras assusta investidores. "Não temos uma situação de guerra no Haiti, temos um presidente eleito e temos congressistas eleitos."

Segundo ele, com mais 3 mil policiais e 5 mil homens na nova força, o Haiti poderia assumir integralmente sua segurança.

Recursos internacionais

Um motorista de Porto Príncipe que se identifica como Will Smith acrescenta outra crítica à missão: para ele, a Minustah fere a soberania do país ao decidir como é investida grande parte dos recursos internacionais destinados ao Haiti. Ele acredita que o governo haitiano deveria se encarregar dessas decisões.

Já o general Ramos diz que a missão trata com rigor todas as denúncias de abusos e que uma pesquisa conduzida pela missão nos bairros de Cité Soleil e Belair mostrou que 80% dos moradores querem que a força permaneça no país por enquanto.

"Logicamente há interesses contrariados na presença da ONU, alguns dos quais têm poder de influenciar na mídia." Ele atribui parte das críticas a "alguns focos de pessoas ligadas a gangues que foram neutralizadas pela tropa brasileira".

Segundo ele, ainda não é o momento de montar um Exército haitiano que substitua a Minustah. "Exército é caro, não sei se o país teria recursos necessários, porque precisa de hospitais, escolas."

Para o embaixador do Brasil no Haiti, Igor Kipman, "ninguém tem o objetivo de se perenizar no Haiti". No entanto, ele diz que a Minustah sucede cinco missões da ONU que se retiraram prematuramente do país.

"O haitiano quer que nós vamos embora? Quer. Mas todos os níveis, do presidente aos moradores de Cité Soleil, entendem que não pode ser uma retirada precipitada e imediata, com o risco de haver retrocesso às condições de 2004", afirma.

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