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Brasil e Iraque negociam dívida

Nota do Editor,

Recomendamos a leitura do sumário do artigo de Andrew Patrick Traumann, para o leitor compreender a importância da matéria de O Estadão.

Também a matéria O reposicionamento da Arábia Saudita de Roberto Lopes
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O Editor

Lourival Sant'Anna
 O Estado de S. Paulo

Apesar das tensões políticas e sectárias, o Iraque voltou a ser o atraente mercado importador de matéria-prima e de bens industrializados – talvez não de serviços, em razão do risco causado pelo terrorismo – que era nos anos 70 e 80. A produção de petróleo, grande fonte de receita do país, saltou de 1,3 milhão de barris por dia em 2003, quando foi invadido pelos EUA, para 3,1 milhões em 2012 – um incremento de 138%.

À medida que o país sai do isolamento herdado do regime de Saddam Hussein, o Ministério das Relações Exteriores torna-se a pasta com um dos maiores orçamentos do governo. Mais de 100 embaixadas já foram abertas ou reabertas na última década. O Brasil, que foi um forte parceiro comercial antes de o Iraque se tornar um pária internacional, é um dos alvos da ofensiva diplomática iraquiana.

Antes de intensificar as relações comerciais, no entanto, os dois países precisam chegar a um acordo sobre quanto o Iraque deve ao Brasil. Nos anos 70 e 80, o Brasil, em contínua escassez de moeda forte, pagava pelo petróleo iraquiano com frango, Passats e armamentos. Cabia à Petrobrás pagar em moeda local às empresas brasileiras, em um sistema de triangulação.

O Iraque sempre vendeu a preço de mercado e nunca teve prejuízo, mas foi um grande parceiro nas horas difíceis, chegando a fornecer 70% do petróleo importado pelo Brasil. Ele foi tão importante que a refinaria de Paulínia, no interior de São Paulo, a maior da Petrobrás, foi construída em 1972 para processar o petróleo iraquiano. Ela quase parou quando o Iraque deixou de exportar, sob embargo, nos anos 90. Foi readaptada para receber o petróleo de outros países – mesmo o da Arábia Saudita, vizinha do Iraque, é de outra composição –, mas ainda hoje funciona melhor se tiver em seu mix o óleo iraquiano.

Muitas empresas brasileiras, principalmente as construtoras, viveram no mercado iraquiano sua primeira experiência de internacionalização. A falência da indústria armamentista brasileira foi desencadeada, em grande medida, pelo colapso da economia iraquiana. O Brasil vendeu, nos anos 80, tantos Passats para o Iraque, que duas décadas depois eles ainda eram comuns nas ruas de Bagdá, com adesivos em que se lia "Brasili" ("Brasileiro"), seu nome local.

A partir do fim dos anos 80, com a exaustão econômica causada pela guerra contra o Irã (1980-88) e depois as sanções internacionais provocadas pela invasão do Kuwait (1990), foi o Iraque que começou a ter problemas de caixa. No fim das contas, deixou uma dívida para o Brasil. Os iraquianos a calculam em US$ 450 milhões.

O Ministério da Fazenda ainda está localizando papéis, recuperando arquivos e atualizando valores, mas deve chegar a um montante mais alto que esse. O governo brasileiro prevê que o cálculo esteja pronto em três meses. O Clube de Paris, que reúne os grandes credores, propôs o abatimento de 80% das dívidas bilaterais. O Brasil se colocou contra: já foi altamente endividado e, a duras penas, pagou todos os seus compromissos, com juros de mercado. Não acha justo perdoar outro país, potencialmente rico, dessa forma. Pela lei brasileira, o Executivo tem autonomia para abater até 50% das dívidas de outros países. Mais que isso, tem de passar pelo Congresso.

Os tempos são outros e as construtoras brasileiras não terão ânimo de voltar ao Iraque, diante dos riscos e custos com segurança. A Petrobrás, que em 1975 descobriu o maior campo de petróleo do Iraque, Majnoon, está agora exaurida na sua capacidade de investimentos pelo pré-sal. Mas o Iraque ainda pode ser um grande mercado para os produtos brasileiros.
 

Extraido e adaptado do artigo :
 
"NO MEIO DO FOGO CRUZADO: A PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NO CONFLITO IRÃ- IRAQUE", de Andrew Patrick Traumann (UFPR/Centro Universitário de Curitiba)
 
Original em pdf link
 
Foi então que o empresário Wolfgang Sauer, presidente da Volkswagen no Brasil teve uma idéia inusitada: vender automóveis ao Iraque. Como o país direcionava grande parte de suas verbas ao esforço de guerra, Sauer decidiu realizar barter trade com o Iraque. Trocaria seus veículos por petróleo e depois revenderia este à Petrobrás. Foi uma operação complicada, pois, em um país em guerra, a idéia era atravessar o país com caminhões carregados de petróleo até a Jordânia, onde o produto seria embarcado para o Brasil. Depois de muita negociação por intermédio da INTERBRAS (Petrobrás Comercio Internacional S/A), finalmente o negócio foi fechado, e a Volkswagen vendeu ao Iraque 175.000 veículos modelo Passat quatro portas, a maior venda de automóveis de um único modelo já realizada.
 
Com esta venda e o aumento da exportação de mais armas, frangos congelados e açúcar, as vendas do Brasil ao Iraque chegaram próximas ao patamar de um bilhão de dólares. Em 1984, o ministro do petróleo do Iraque Qassem Ahmed Taqi, visitou o Brasil e voltou satisfeito com a garantia do governo brasileiro de que o país continuaria comprando 160.000 barris diários com grandes possibilidades de que este número chegasse a duzentos mil.
 
Em relação à indústria brasileira de armamentos, manteve-se a mesma postura pragmática, ou seja, o interesse econômico sempre sobrepujou eventuais objeções políticas. A idéia era apenas vender e se omitir de qualquer responsabilidade sobre como seriam (ou contra quem seriam) utilizadas aquelas armas.
 
A indústria bélica brasileira passou por um crescimento acentuado desde seu surgimento, concorrendo e chegando a vender aeronaves para gigantes da área como França, Inglaterra e EUA. Para o governo brasileiro não importava a coloração do regime cliente desde que a moeda fosse o dólar. Contudo, até o puro comercialismo brasileiro tinha limites, pois o Itamaraty vetou a venda de aeronaves modelo EMBRAER Tucano para o regime racista sul-africano, alegando que tal atitude poderia prejudicar a imagem do Brasil no mercado.
 
Durante a década de 1980, o Iraque foi o principal cliente da indústria de armas brasileira. Seria simplista afirmar que se tratou apenas de uma troca de mercadorias por petróleo. Na verdade, ainda no programa de “Pragmatismo Responsável” de Geisel, as relações com o Iraque tinham o objetivo declarado de fazer com que o Brasil passasse incólume pela segunda grande alta do petróleo de 1979. O Oriente Médio, por se tratar de uma área sempre instável politicamente constitui um mercado em potencial para a compra de armamentos. Segundo dados divulgados em 1990, o Brasil teria vendido ao Iraque pelo menos 776 blindados tipo CASCAVEL; 380 veículos anfíbios modelo URUTU, ambos da ENGESA; e uma centena de lançadores de foguetes Astros II, da AVIBRAS. Em apenas sete anos o Iraque adquiriu do Brasil mais de um bilhão de dólares em armas, aviões leves e blindados.
 
O conflito foi uma vitrine para os produtos brasileiros que logo foram encomendados também por países como Líbia, Catar e Arábia Saudita. Para outros tipos de armamentos o grande parceiro do Iraque foi a AVIBRAS, que vendeu a Bagdá: foguetes,  explosivos e munição, além do principal item da ABIBRAS, o sistema Astros II, que eram lançadores móveis de foguetes com alcance de até sessenta quilômetros. No entanto, o sistema só tomou impulso de fato a partir de 1984, após a assinatura de um tratado de cooperação industrial e militar entre Brasil e Arábia Saudita, que financiou indiretamente a fabricação do sistema Astros por meio de um empréstimo ao Iraque. Esta operação deu autonomia à AVIBRAS, que não estava mais dependente das Forças Armadas brasileiras, além de projetar o nome da empresa no mercado internacional. O governo brasileiro decidiu investir para aproveitar melhor este nicho de mercado.
 
Para a promoção externa da indústria bélica o governo votou as “Políticas Nacionais de Material de Emprego Militar”, (PNEMEM), que se tratava de um conjunto de medidas destinadas a agilizar a burocracia e todos os recursos disponíveis para que as relações comerciais fluíssem de forma mais rápida. O sistema estabeleceu créditos e subsídios para a exportação de armas e isentou de impostos diversos produtos necessários á fabricação de armamentos. Esta política foi reforçada pelo rompimento do acordo militar com os EUA, que fez com que o Brasil buscasse seu próprio caminho na indústria armamentista
 
A exportação do Brasil para a região durante a década de 1980 situa-se na faixa de setecentos a oitocentos milhões de dólares anuais. Apenas para o Iraque as vendas alcançaram o montante de 280 milhões de dólares, em média. A inserção da indústria de armas na relação com o Oriente Médio em geral e o Iraque em particular deve ser entendida como uma estratégia do governo muito bem planejada. Esta cooperação incluiu até projetos na área nuclear.
 
No início da década de 1980 o Iraque possuía um dos principais exércitos do mundo, mas aspirava dominar a tecnologia nuclear. Para isso o governo iraquiano assinou com a França um Acordo de Cooperação Nuclear. Tal acordo, porém logo foi abortado devido a um ataque surpresa do exército de Israel, que destruiu completamente as instalações de Osirak.
 
Em 1981, numa negociação que gera polêmica até hoje, o governo brasileiro vendeu ao Iraque grandes quantidades de urânio, em diferentes graus de enriquecimento. A edição da revista Veja de 24/06/1981, realizou uma reportagem de capa sobre o tema. Segundo a publicação, todo o imbróglio a respeito da venda urânio enriquecido ao Iraque começou com uma nota no jornal inglês The Guardian, onde foi publicado que um avião comercial do Iraque decolara do aeroporto de São José dos Campos transportando uma carga de urânio com destino á Bagdá. Esta notícia, a princípio não repercutiu na mídia brasileira.
 
 A polêmica toda só surgiu depois que o Ministério das Relações Exteriores de Israel divulgou uma nota em que inclui o Brasil num rol de cinco países que poderiam estar fornecendo urânio ao governo de Saddam Hussein. Esta menção causou um ligeiro incidente diplomático entre os dois países, pois o Brasil argumentou firmemente que o urânio vendido não era enriquecido e não podia ser responsabilizado por eventual uso do material para fins bélicos. A reportagem informava que o urânio em sua forma natural, ou apenas superficialmente beneficiado, é material abundante e disponível no mercado, dispensando operações clandestinas para ser obtido.
 
A  guerra Irã-Iraque causou um grande prejuízo para a construtora Mendes Júnior. Em pleno esforço de guerra, o governo iraquiano começou a atrasar seus pagamentos para a empreiteira brasileira. Quando as dívidas já chegavam a quase meio bilhão de dólares, em 1987, a direção da empresa decidiu suspender as obras. Apenas dois anos depois a questão foi pelo menos, parcialmente solucionada, quando o Banco do Brasil assumiu as obrigações da Mendes decorrentes da obras no Iraque. Com a instabilidade da situação, a construtora ameaçou por diversas vezes deixar o país, mas logo o Banco do Brasil agia, emprestando dinheiro ao governo iraquiano. Como o Brasil precisava do petróleo do parceiro árabe, a Mendes Júnior foi usada como uma espécie de garantia do fornecimento do produto. Uma vez assinado o contrato, a Mendes Júnior reiniciou as obras, e o Banco do Brasil comunicou á Câmara de Comércio Internacional de Paris, que ele passaria a ser o credor do governo de Bagdá. Tudo estava pronto para que se retomasse o ritmo normal dos trabalhos quando a invasão do Kuwait por tropas iraquianas iniciaria uma nova guerra e assinalaria o fim das relações Brasil-Iraque por um longo período.

Durante os anos 1990 e 2000, algumas empresas brasileiras que participaram do Programa “Oil for Food”, que gerou muitas controvérsias. Curiosamente a invasão do Kuwait pelo Iraque foi um grande alento para a AVIBRAS. As munições estocadas para serem embarcadas ao Iraque e retidas por falta de pagamento foram despachadas rapidamente para a Arábia Saudita e serem usadas contra o Iraque.

A empresa AVIBRAS tinha em créditos com o Iraque, segundo  fontes algo em torno de U$ 42 milhões, em valores de 1990. Porém dívidas de armas não conseguem ser renegociadas por proibição da ONU.

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