Nota DefesaNet
Estamos publicando série de matéria sobre a situação iinterna na Argentina. Os leitores podem acompanhar via a tag Argentina_debacle.
O Editor
Guilherme Russo,
Enviado especial / Córdoba, Argentina
Os saques na via – uma das mais prejudicadas da cidade – começaram pouco depois das 23 horas do dia 3, de acordo com o relato de vários comerciantes da região que tiveram suas mercadorias roubadas durante a onda de ataques que atingiu quase 2 mil estabelecimentos comerciais de 17 das 24 províncias argentinas, além de centenas de residências, e deixou ao menos 16 mortos em todo o país.
Em meio à tensão da semana passada, durante a qual os grupos de saqueadores ameaçaram reeditar as cenas de terror do começo do mês, a loja de materiais de construção e ferramentas elétricas de López continuava a cheirar queimado. Ela foi incendiada pelos assaltantes depois de toda a mercadoria ter sido roubada.
Como muitos lojistas da região, o argentino tirou suas armas de casa para se proteger de seus próprios vizinhos, que se aproveitaram da ausência das autoridades – causada por uma greve de policiais por melhores salários – para levar o que podiam durante as quase 24 horas em que durou o quebra-quebra.
López relatou que, antes de invadirem sua loja, viu os saques "em todos os estabelecimentos" próximos ao seu, perto da esquina com a Rua Piedra Labrada, por cerca de três horas. O comerciante, que mora a 100 metros da sua loja, disse que testemunhou os saqueadores carregando o que podiam, como podiam, das lojas da região, até que foi avisado pela central de alarmes antirroubo que monitorava a seu estabelecimento que o local também tinha sido invadido.
"Optei por proteger minha casa, minha mulher e meus filhos (dois meninos, de 14 e 12 anos, e duas meninas, de 9 e 6). Eles sabem quem eu sou. Se eu chegasse à loja armado, matariam a minha família. Como não havia polícia, eu me contive. Via passar clientes e vizinhos com as minhas mercadorias. Conheço todos. Estávamos 100% desprotegidos."
O comerciante disse que, meia hora depois, um amigo foi à casa dele avisar que sua loja estava em chamas. "Deixei parte das minhas armas com a minha mulher e vim para cá com algumas pistolas. O fogo já havia tomado conta de quase todo o estabelecimento. Quis apagar o incêndio, mas tinham roubado os oito extintores que havia. Sufoquei-me com a fumaça e tive de sair. Daí chamei os bombeiros", disse. Segundo López, porém, quando o socorro chegou, os agentes, voluntários civis que atuam nos municípios vizinhos, foram apedrejados, e deixaram o local. Somente quando os bombeiros da capital, "que têm poder de polícia", chegaram, o combate às chamas começou. "Minha loja ardeu por três dias. Tinha muito material inflamável. Vieram 16 carros de bombeiros."
"Agora as pessoas comuns estão preparadas", disse, contando que "todos" os donos de pequenos estabelecimentos na região se armaram. "Não permitiremos que isso ocorra de novo", disse. Segundo o comerciante, os vizinhos saqueadores "agora abaixam a cabeça" quando o encontram na rua. "Continuo armado. Carrego sempre uma pistola."
López afirmou que não demitiu seus cinco funcionários, que na quarta-feira o ajudavam a limpar os destroços, ao lado de seus dois filhos e cinco amigos. Parte da loja desabou.
"Vou ressurgir", garantiu, estimando que levará seis meses para reformar seu estabelecimento. "Minha mulher ainda está sob cuidados médicos, com crise de pânico, mas vamos seguir adiante."
A comerciante Jésica Radlec, de 27 anos, dona de uma pequena loja de guloseimas, na mesma avenida, disse que, após os saques, passou a manter uma espingarda calibre 22 "e outras armas" em seu estabelecimento, que teve os vidros quebrados, mas não chegou a ser invadido – pois ela e o marido foram avisados, por volta da 1 hora do dia 4, que a avenida estava tomada pela turba – e ambos tiveram tempo de proteger o local ao lado de parentes que se prontificaram a ajudá-los.
"Decidimos vir diretamente. Tinha muito movimento. Já haviam entrado numa loja de roupas e em outra de peças de motos. Viemos com paus e pedaços de ferro. Não sei onde conseguimos armas, mas tínhamos. O dono de uma loja atirava para o alto. Em apenas uma hora já havia umas 700 pessoas aqui. Muitos estavam de moto. Depois (os saqueadores) vieram com caminhonetes. Entraram em uma loja de brinquedos, levaram tudo e puseram fogo. Fui com meu marido tentar apagar. Invadiram a Ribeiro (loja de eletrodomésticos que tem unidades espalhadas por quase toda a Argentina). Vi um rapaz com uma geladeira nas costas – não sei como ele aguentou, devia ser a adrenalina", resumiu Jésica.
A comerciante afirmou ter visto um saqueador levando a máquina de fazer café de uma padaria e pessoas saindo com sacos cheios de remédios de uma farmácia.
"Eles (os criminosos) estavam bastante lúcidos. Pareciam formigas, indo de um lugar ao outro, derrubando tudo como se fosse pedras de dominó. Os seguranças do supermercado (Cordiez) disparavam balas de borracha. Pusemos nossos carros em cima da calçada para nos proteger. Todos aqui ficaram literalmente entrincheirados. Isso virou uma terra de ninguém."
"Agora, a maioria dos comerciantes está ficando nas lojas a noite toda. Quase todos passaram a fechar na hora da sesta. Muitos (dos saqueadores) me cumprimentaram no dia seguinte. Diziam ‘que absurdo o que aconteceu’."
O comerciante Gustavo, de 43 anos, que preferiu não dar o sobrenome e pediu à reportagem que não dissesse que tipo de mercadorias vende, para não ser identificado, afirmou que, ao ser avisado dos saques, por volta das 23h30, correu para seu estabelecimento empunhando sua pistola 9 milímetros e chegou ao local atirando.
"Disparei mais de 15 vezes contra os filhos da p… Apontei para a cara de um deles, mas minha arma travou. Tinha umas 40 pessoas aqui. Remontei a pistola e comecei a atirar para cima. Só assim eles saíram daqui. Já tinham levado a metade das minhas mercadorias", disse, afirmando que agora passou a manter "várias armas" atrás do balcão.