Ex-secretário geral da Unctad (Conferência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda no governo Itamar Franco (1992-1994), Ricupero avalia que a recusa do Brasil e de outros países latino-americanos em reconhecer a vitória de Maduro na eleição do último domingo não deve causar grandes impactos para Caracas.
O Conselho Nacional Eleitoral venezuelano declarou a vitória de Maduro – que preside a Venezuela desde 2013 – com 67,7% dos votos, ante 21,1% do oposicionista Henri Falcón.
O órgão diz que 54% dos eleitores se abstiveram.
O Grupo de Lima – conjunto de 14 países caribenhos e latino-americanos criado em 2017 para buscar uma saída para a crise venezuelana – divulgou um comunicado em que contesta a legitimidade da vitória.
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, país que integra o Grupo de Lima, afirmou em nota que "nas condições em que ocorreu — com numerosos presos políticos, partidos e lideranças políticas inabilitados, sem observação internacional independente e em contexto de absoluta falta de separação entre os poderes —, o pleito do dia 20 de maio careceu de legitimidade e credibilidade".
Confira os princiais trechos da entrevista com Ricupero, concedida por telefone nesta segunda-feira.
BBC Brasil – Qual sua avaliação dos resultados eleitorais na Venezuela?
Rubens Ricupero – Já eram esperados. Seria surpreendente se tivesse havido grande participação na eleição, uma vez que a oposição fez campanha para que as pessoas não votassem.
O que houve era previsto: uma eleição com baixa participação e com consagração do presidente Maduro, que preparou tudo ao longo de muitos meses.
A eleição foi precedida pela exclusão sistemática de todas as candidaturas competitivas. As decisões foram concentradas na mão dos partidários do Maduro no sentido de excluir líderes da oposição – alguns dos quais estão presos ou asilados fora da Venezuela.
BBC Brasil – Quais as consequências da vitória de Maduro para os venezuelanos?
Ricupero – Não acredito que sejam muitas. A Venezuela já está há muito tempo com características de uma ditadura. É um país em que todos os poderes estão concentrados no presidente, inclusive o Judiciário. Quando aparece qualquer tentativa de contestação, como a Assembleia que tinha eleito uma maioria de oposição, ela foi contornada pela Constituinte que Maduro criou.
Não acredito que haja chance de qualquer desfecho como ocorria no passado, com uma reação militar, porque durante muito tempo os militares que apresentavam divergências ao regime sofreram um expurgo, e muitos dos que ficaram foram cooptados com posições importantes no governo. Tudo indica que o governo Maduro vai continuar no poder por algum tempo.
Não vejo perspectiva de mudanças a curto prazo, a não ser que haja uma deterioração maior da situação.
BBC Brasil – Quais os impactos do não reconhecimento do resultado pelo Grupo de Lima?
Ricupero – O impacto é sem dúvida tornar mais grave a rejeição internacional e o isolamento da Venezuela. Mas é preciso dizer que não chega a ser novidade – há algum tempo o Grupo de Lima vinha condenando o regime.
Países em situação como a da Venezuela podem resistir muito tempo. Houve um momento em Cuba, entre os anos 1960 e 1970, em que o país esteve praticamente sem relações diplomáticas com quase todos os países das Américas. Nem por isso o regime desapareceu.
Quem está bancando a Venezuela até hoje são China e Rússia, ajudando com empréstimos. Esses países sustentam a continuação desse experimento do Maduro. Do lado da segurança, Cuba tem um número muito grande de funcionários que dão toda orientação e fornecem um aparato repressivo muito poderoso.
BBC Brasil – Quais os interesses de China e Rússia em apoiar Maduro? Elas manterão a posição?
Ricupero – Sim, talvez com menos entusiasmo que no passado. Os dois países deram empréstimos grandes à Venezuela.
Os dois países têm interesse em manter a Venezuela como um regime que causa problemas aos EUA. Faz parte da relação de tensão, quase de uma nova Guerra Fria, como se convencionou chamar a relação entre os EUA e a China e entre os EUA e a Rússia.
BBC Brasil – O que muda para o Brasil? Quais os impactos do não reconhecimento do pleito por Brasília?
Ricupero – Não muda nada em essência. A relação já estava muito distante, muito conflitiva.
O que acontece agora apenas acentua isso. E vai continuar provavelmente a produzir resultados negativos.
A Venezuela tem deixado de pagar créditos dados a empresas brasileiras que realizaram obras ou exportaram para a Venezuela. É previsível que esse tipo de calote continue no futuro.
Da mesma forma não se pode esperar que a Venezuela tenha condições de desempenhar um papel de mercado para produtos brasileiros, ou que volte a ter posição ativa no Mercosul.
Outro aspecto é que se pode prever que o fluxo de refugiados aumente, a não ser que a Venezuela faça como Cuba e tente impedir a saída de cidadãos.
A única coisa que aconteceu até hoje que pode ter impacto favorável para a Venezuela é que os preços do petróleo têm subido muito. Para um país que depende totalmente do petróleo, isso dá certo alívio.
BBC Brasil – A reeleição de Maduro mostra que Brasil errou ao apostar no isolamento da Venezuela?
Ricupero – Não. Ao optar por caminho tão claramente de violação das regras democráticas e dos direitos humanos, a Venezuela deve realmente receber a sanção dos países vizinhos. Era inevitável. O Brasil não está sozinho. O único país de certa expressão fora desse movimento é o Uruguai.
BBC Brasil – Há alguma possibilidade de que os EUA escalem o conflito com Venezuela? No governo Trump já se falou em possibilidade de uma intervenção armada.
Ricupero – Aquilo era uma bravata. Não vejo que americanos tenham razões para isso, porque hoje os problemas que ocorrem na Venezuela afetam muito mais a população local que os EUA. A Venezuela não representa um perigo para os EUA. Representa um incômodo, uma irritação.
BBC Brasil – Por não reconhecer a vitória de Maduro, Brasil terá de passar a tratar venezuelanos como refugiados em vez de imigrantes?
Ricupero – Claro que, se a situação se agravar mais ainda na Venezuela em termos alimentos, remédios, a tendência é que mais gente queira sair, e o Brasil vai receber sua cota.
Mas a fronteira do Brasil com a Venezuela é remota, é um lugar de selva, com pouca gente do lado venezuelano. A população venezuelana está concentrada na região de Caracas ou nas terras altas na fronteira com a Colômbia, no Estado de Táchira.
Tanto assim que, se no Brasil se estima em 30 ou 40 mil o total de venezuelanos, na Colômbia são mais de 600 mil.
Quanto à questão do asilo, se a situação se perpetuar e houver pouca perspectiva de as pessoas voltarem, as autoridades brasileiras serão obrigadas a tomar decisão de dar um status mais permanente para elas no Brasil.
Não necessariamente como exilados políticos, pois a maioria dos que vêm não têm atuação política nenhuma, apenas procuram fugir da calamidade.
Mas no caso deles será necessário que se dê um visto de permanência com status de migrante e condições para trabalhar e viver aqui. Essa é uma obrigação dos países membros da ONU e que assinaram os acordos e convenções sobre refugiados.