A RÚSSIA, A UCRÂNIA E O OCIDENTE
Reflexões sobre a guerra e suas consequências
SERGIO DUARTE
Ex-Alto Representante das Nações
Unidas para Assuntos de Desarmamento.
Presidente das Conferências Pugwash sobre
Ciência e Assuntos Mundiais.
A guerra da Rússia contra a Ucrânia já dura há dois meses e meio e tudo indica que se prolongará por um período difícil de prever. A batalha de narrativas nos meios de comunicação dificulta o entendimento dos observadores externos. É possível, porém, identificar algumas das possíveis consequências e oportunidades.
Nesta altura das hostilidades não há clareza sobre qual seja o objetivo militar final da Rússia, cujo interesse político é retardar, e se possível impedir, a expansão da OTAN para o leste e recuperar até onde for possível a posição dominante de que desfrutava em seu entorno até poucas décadas atrás. As tropas russas atualmente se empenham em assegurar comunicação terrestre permanente com a península da Crimeia, anexada por Moscou em 2014. Mais do que isso, provavelmente a Rússia almeja dominar todo o litoral ucraniano do Mar Negro e parte do leste da Ucrânia, inclusive as regiões do Donbass, onde Moscou declarou a independência de áreas cuja população é majoritariamente de cultura russa e se identifica como étnica e tradicionalmente pertencente ao poderoso vizinho.
Por sua vez, o governo ucraniano tem conseguido manter o fluxo do auxílio militar vindo do Ocidente e impedir o avanço de tropas russas para o interior do país, mantendo controle da capital Kiev e das regiões central e ocidental. Graças ao maciço aporte de armamentos dos países da OTAN as forças ucranianas até o momento tiveram êxito em deter a ofensiva russa ao longo da fronteira com Belarus e aparentemente obrigaram os invasores a mudar os planos iniciais e concentrar sua ofensiva no oriente do país.
Os contatos diplomáticos entre os dois litigantes não cessaram mas têm-se dirigido prioritariamente a acordos de humanitários de evacuação de civis das áreas mais afetadas pelas hostilidades. Calcula-se em cerca de dez milhões o total de pessoas desalojadas em consequência da guerra, cerca de metade das quais se refugiou em países vizinhos, especialmente a Polônia.
O perigo da escalada nuclear
A Europa ocidental e sem dúvida o mundo inteiro se preocupam com a possibilidade de uma escalada do conflito que leve à utilização de armas nucleares em combate, pela primeira vez desde o ataque contra Hiroshima e Nagasaki. Após o colapso da antiga União Soviética a Rússia necessitou alguns anos para estar novamente em condições de produzir armamentos de alta tecnologia e recuperar a situação de paridade estratégica com os Estados Unidos.
Nos últimos anos Moscou adicionou a seu arsenal nuclear os mísseis Kinzhal e Avangard, de elevada precisão, além de mísseis Iskander de alcance intermediário dispostos no enclave de Kaliningrad e submarinos a propulsão nuclear baseados no Pacífico e no Ártico, dotados de tecnologia avançada. Está prevista para o outono próximo a colocação, em silos já existentes no leste da Sibéria, dos novíssimos mísseis supersônicos Sarmat, de difícil interceptação pelos sistemas defensivos adversários. Esse novo míssil tem alcance de 35.000 quilômetros e pode transportar até 15 ogivas nucleares.
Após o último teste Putin declarou-o capaz de vencer qualquer sistema defensivo e de fazer quem pretender ameaçar a Rússia “pensar duas vezes”.
Nas semanas recentes, declarações de altas autoridades russas, inclusive o próprio presidente Putin, contêm veladas ameaças ao uso de armamento nuclear, junto com acusações não comprovadas de que a OTAN estaria se preparando para uma guerra atômica. Não faltam, igualmente, menções à alegada presença de outras armas de destruição em massa – químicas e biológicas – em território ucraniano.
A OTAN possui armas nucleares nos territórios de alguns países europeus e os Estados Unidos mantêm mísseis nucleares baseados em terra e a bordo de bombardeiros e submarinos em constante prontidão. A reação ocidental às ameaças russas, porém, foi bastante comedida.
O Tratado Novo START, de 2009, limitou a quantidade de ogivas nucleares de que Rússia e Estados Unidos podem colocar em posição de tiro, além do número de mísseis, bombardeiros e lançadores terrestres. O poderio explosivo dos dois países é muitas vezes mais do que o suficiente para reduzir ambos os adversários a escombros, aniquilar a imensa maioria de suas populações e causar graves danos ambientais irreversíveis em todo o planeta, inclusive um prolongado inverno que abarcaria o mundo inteiro durante anos, comprometendo a produção agrícola e provocando fome e penúria generalizadas.
Apesar da deterioração do clima entre ambas, as duas potências continuam a realizar inspeções permitidas pelo tratado e não tem havido acusações de fraude. Ao mesmo tempo, porém, não cessam de aperfeiçoar o armamento de que dispõem.
Moscou e Washington reconhecem o perigo de uma escalada mas não parece provável, ao menos por enquanto, o uso de armamento nuclear na guerra. No ano passado, os presidentes Putin e Biden subscreveram uma declaração conjunta afirmando que “uma guerra nuclear não terá vencedores e não deve jamais ser travada”. Tanto a OTAN quanto a Rússia dispõem também de armas nucleares denominadas “táticas“, isto é, de poder explosivo relativamente baixo, para uso limitado em combate. Mesmo assim, essas armas são dezenas de vezes mais potentes do que as usadas para arrasar as duas cidades japonesas em 1945. Um erro de cálculo, acidente ou simplesmente incompetência poderia ser o estopim de uma escalada capaz de levar a uma guerra nuclear entre as duas superpotências. Nesse caso, o resultado seria a completa destruição mútua.
Potências menores podem ver na guerra entre Rússia e Ucrânia justificação para conservarem seu poderio nuclear como forma de dissuadir possíveis agressores, apontando para o fato de que a Ucrânia desfez-se das armas que possuía em troca de garantias que acabaram por não ser respeitadas. Além disso, países que pareciam haver desistido de desenvolver arsenais atômicos poderão sentir-se frustrados por haver aceito compromissos juridicamente vinculantes e verificáveis de jamais vir a desenvolver armamento nuclear, enquanto um pequeno número parece sentir-se autorizado a possuir indefinidamente essas armas .
A continuada relutância dos nove países nuclearmente armados em adotar medidas destinadas à eliminação de seus arsenais nuclear acentua a crise do arcabouço de segurança erigido desde a criação das Nações Unidas e durante as décadas da Guerra Fria. A já abalada credibilidade dos instrumentos multilaterais existentes, inclusive o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, poderá ser fortemente afetada por essa situação.
Repercussão mundial
A ação militar da Rússia contra a Ucrânia não encontra respaldo no direito internacional. A Carta das Nações Unidas, organização da qual a Rússia é membro fundador, estabelece especificamente a obrigação de resolver as disputas internacionais por meios pacíficos. Cabe ao Conselho de Segurança determinar a existência de uma situação de rompimento da paz ou ato de agressão, e o Conselho pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da paz e da segurança, inclusive mediante o emprego de força armada. A Rússia é membro permanente do Conselho e como tal possui o poder de veto. Por isso não tem sido possível a esse órgão tomar decisões sobre o assunto.
A Assembleia Geral, cujas decisões têm apenas caráter de recomendação, adotou uma resolução exigindo a imediata cessação das hostilidades e retirada das tropas. 141 estados votaram a favor, inclusive o Brasil; cinco se manifestaram contra [1] e 35 se abstiveram. O resultado da votação mostra a indecisão de uma parte da comunidade internacional, a qual, embora minoritária, inclui países importantes – inclusive China e Índia entre os BRICS – que preferiram preservar seus laços comerciais e políticos com a Rússia. Uma ampla maioria, porém, apoiou a proposta do Ocidente, o que equivale a uma condenação da invasão.
A Rússia tem-se voltado preferencialmente para a China com o intuito de contrabalançar o esforço da diplomacia norte-americana e europeia ocidental para ampliar o isolamento diplomático e econômico de Moscou. Por sua vez, Pequim demonstra certa simpatia pelas motivações russas mas tem evitado concretizar, na prática, o que foi recentemente caracterizado como uma aliança “sem limites” entre ambos. Um dos focos da atuação diplomática chinesa tem sido evitar comparações entre a situação da Ucrânia e a de Taiwan.
A intenção declarada das fortes sanções aplicadas pelo Ocidente contra a Rússia é debilitá-la econômica, comercial e politicamente a ponto de inviabilizar futuras ações, inclusive contra a OTAN. No entanto, os efeitos dessas sanções necessariamente levarão algum tempo para fazer-se sentir e a Rússia dispõe de tempo para reagir e de alguns trunfos para reduzir seu impacto.
Consequências políticas e econômicas
O principal efeito da agressão russa contra a Ucrânia foi o fortalecimento da aliança atlântica com a rápida união dos 27 países que compõem a OTAN e a União Europeia em torno de decisões que visam enfraquecer o poderio militar e econômico russo e aumentar a solidariedade europeia diante dos desafios à segurança comum. A Finlândia, que se manteve neutra durante a Guerra Fria, parece pronta a pleitear formalmente seu ingresso na OTAN.
Por sua vez a Suécia, que também adotou a neutralidade desde o fim da Segunda Guerra Mundial mas não esconde sua preferência pelo Ocidente, debate ativamente a proposta de também vir a fazer parte da aliança atlântica. Moscou já advertiu os dois países que reverá sua postura militar em relação a ambos, porém suas objeções e ameaças não evitarão a ampliação da OTAN, que tem o apoio da opinião pública.
A preocupação russa com novas possíveis adesões à OTAN poderá voltar-se para os Cárpatos, onde se encontra a possível candidata Moldova (com a região separatista pró-Rússia da Transdnistria) e para o Cáucaso. Nessa última área a Geórgia já se encontra sob controle russo mas outras ex-repúblicas soviéticas poderão sentir-se tentadas a aproximar-se dos países do Ocidente. Isso seria intolerável para a Rússia e causaria preocupação à China, com potencial para deflagrar nova crise em um futuro não muito distante.
A outra consequência imediata, assinalada acima, foi a aproximação entre Moscou e Pequim, que já vinha se desenhando antes mesmo da agressão contra a Ucrânia. As duas potências consideram que o aumento da influência e hegemonia norte-americana é contrário a seus interesses de longo prazo. Apesar de algumas pequenas controvérsias em pontos da extensa fronteira comum, ambos têm explorado alguns campos de convergência de interesses, inclusive no aspecto militar.
Suas forças armadas realizam exercícios conjuntos e trocam informações sobre sistemas bélicos. A China se preocupa com o retorno dos Estados Unidos a uma posição de liderança global após a retração durante a presidência Trump e com a capacidade demonstrada pelas democracias europeias ocidentais de reagir rápida e unanimemente a situações graves que afetam a segurança comum, assim como com o impacto de possíveis futuras sanções.
Apesar de algumas hesitações, notadamente da Hungria e Eslováquia, os países da União Europeia se mostram dispostos a prescindir do fornecimento de petróleo russo a partir do final do ano corrente. Os combustíveis fósseis, especialmente o petróleo e o gás, são essenciais para suas economias e até agora constituíam o principal item das exportações russas e a mais importante fonte de divisas para Moscou. Alternativas sustentáveis para substituir o gás russo vêm sendo estimuladas em diversos países.
A Índia e a China têm aumentado suas importações de gás da Rússia e poderão absorver parte da oferta de petróleo, principalmente por concordar em fazer pagamentos em rublos a fim de evitar o bloqueio imposto pelo Ocidente por meio do sistema internacional Swift. Já existe um gasoduto da Rússia para a China e um segundo está em construção, o que dobrará a capacidade de transporte. O crescimento da interdependência entre a Rússia e a China certamente se constituirá em um entrave para os interesses norte-americanos e europeus na Ásia.
Outra consequência da redução do fornecimento de gás e petróleo russos à Europa é a aceleração da busca de energias renováveis em todo o mundo. No curto e mesmo no médio prazo prevê-se escassez de combustíveis fósseis e elevação dos preços, com reflexos nos índices de inflação. Num primeiro momento, a guerra provocou aumento no preço mundial do petróleo, o que beneficia a Rússia, mas o Ocidente confia em que essa vantagem não perdurará por muito tempo.
A Rússia, e também a Ucrânia são grande produtores mundiais de fertilizantes, dos quais depende a agricultura em países como a Índia e o Brasil. A produção mundial de grãos básicos será fortemente afetada pela atual situação. O Brasil tem capacidade para suprir boa parte da demanda adicional de soja, milho e trigo, mas para isso terá que fazer novos investimentos em modernização e infraestrutura, assim como no uso racional de seus recursos naturais.
A Ucrânia é responsável por 50% da produção mundial de óleo de girassol, 10% da oferta de trigo e 23% da de milho. Estima-se que enquanto durarem as hostilidades pelo menos um terço de suas terras produtivas não serão semeadas ou suas colheitas serão fortemente prejudicadas devido à guerra e ao deslocamento forçado da população rural. O resultado poderá ser uma grave crise alimentar mundial, com aumento dos preços devido à redução da oferta.
Consequências de longo prazo
Embora seja impossível a esta altura prever as consequências geopolíticas em um prazo mais longo, tem-se especulado sobre o que ocorrerá caso seja possível alcançar em breve a cessação das hostilidades. Diversos cenários de um acordo de paz têm sido aventados, inclusive o reconhecimento da independência das regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia em troca de um compromisso de que Kiev jamais pleiteará ingresso na OTAN.
Será necessário, nesse caso, fornecer sólidas garantias de segurança e inviolabilidade à Ucrânia. O precedente da falta de cumprimento dos acordos de Minsk certamente será lembrado. O presidente Zelensky já declarou que não buscará fazer parte da aliança atlântica, mas não admite a renúncia à soberania sobre qualquer parte do território do país. Caso a Rússia não prevaleça militarmente será difícil, mas não impossível para Moscou contentar-se com o statu quo ante, o que muito possivelmente produziria uma situação instável. Nessa eventualidade, autoridades ocidentais advertem para a necessidade de oferecer uma “saída honrosa” para a Rússia a fim de evitar ressentimentos mais graves.
Na hipótese contrária, de uma vitória militar russa significativa, o resultado poderia ser um acordo que permita a Moscou conservar ao menos parte dos territórios conquistados. Alguns analistas chegam a sugerir a divisão da Ucrânia em dois países: a leste as regiões nas quais o líder depois Viktor Yanukovich obteve a maioria dos votos nas eleições de 2010 e a oeste aquelas em que o eleitorado preferiu a oposição e que representam 17 do total de 27 distritos eleitorais do país. No entanto, essas são apenas hipóteses, pois as circunstâncias atuais não permitem previsões confiáveis.
A parte ocidental da Ucrânia é primordialmente agrícola e possui um importante setor de serviços em torno de Kiev, enquanto o leste é mais industrializado, inclusive nos setores aeroespacial e de armamentos. A partição acima aventada produziria um estado-tampão oriental pró-russo, enquanto a porção ocidental provavelmente gravitaria para a OTAN e a União Europeia. Isso, porém, dificilmente seria suficiente para eliminar a hostilidade e desconfiança entre o Ocidente e a Rússia.
Um dos motivos profundos da atual situação é a sensação russa de estar cercada por todos os lados. A oeste e sudoeste, a OTAN; ao norte, os mares gelados do ártico e a oeste a vastidão inóspita da Sibéria e do oceano Pacífico setentrional. Ao sul, a fronteira com a terceira potência mundial, que almeja uma participação preponderante nas relações globais. O sentimento de frustração decorrente da realidade geopolítica e uma arraigada convicção da originalidade e destino manifesto da Rússia explicam em grande parte sua atuação no cenário mundial desde os tempos imperiais. Putin tem procurado explorar esses elementos subjetivos na tentativa de justificar a invasão.
Alguns analistas têm argumentado que o rompimento do equilíbrio entre Oriente e Ocidente e a eventual emergência no mundo de dois campos fundamentalmente antagônicos – democracias ao estilo ocidental versus governos autoritários – significará o fim da tendência à globalização que se intensificou após a Guerra Fria. Outros porém, acreditam que assim como ocorreu após o período inicial da pandemia de Covid 19, quando os fluxos internacionais rapidamente recuperaram a vitalidade, a guerra não prejudicará de maneira significativa a tendência ao aumento da interação geral entre os países.
A China, que nas décadas recentes vem buscando com sucesso sua inserção como ator global, não estaria interessada em compartilhar com a Rússia de Putin o papel de pária internacional. Para esses comentaristas, a China precisa do Ocidente mais do que da Rússia. É importante assinalar que apesar da “aliança sem limites” a China não esteve entre os cinco países que votaram contra a resolução da Assembleia Geral da ONU que pedia a retirada das tropas russas.
Conclusão
Seja como for, o cenário é altamente dinâmico e não permite análises definitivas e previsões confiáveis. No entanto, parece cada vez mais claro que a ordem mundial tensa, porém funcional, que reinou entre o Ocidente e o Oriente nas primeiras décadas do século 21 terá que ser revista. Admitindo que o mundo escapará de um holocausto nuclear, as bases da segurança e da economia mundiais terão que sofrer profundas mudanças a fim de assegurar paz e estabilidade no futuro. A alternativa é simplesmente inaceitável.
As grandes convulsões internacionais costumam produzir novos padrões de comportamento e formas mais avançadas de governança global. Assim ocorreu em várias fases anteriores da história e não há motivo para duvidar de que assim continuará a ser. Na grave e imprevisível situação atual, o mundo pode estar à beira da catástrofe mas pode também encontrar-se no limiar de uma nova e mais saudável configuração com maior segurança para todos melhor distribuição dos frutos do progresso material.
No momento, o mais importante é evitar o perigo da conflagração nuclear e buscar um cessar-fogo que leve à negociação de um acordo de paz, tomando em consideração as legítimas preocupações de segurança das partes interessadas.
[1] Rússia, Belarus, Siria, Coreia do Norte e Eritreia.
Nota DefesaNet
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