Publicado Jornal Valor 17 Dezembro 2010
Matias Spektor
coordena o Centro de Relações Internacionais da FGV e é autor de “Kissinger e o Brasil” (2009) e “Azeredo da Silveira: um Depoimento” (2010). Escreve um livro sobre as relações Brasil-EUA na transição de 2002 com base em dezenas de entrevistas e centenas de documentos inéditos. É doutor pela Universidade de Oxford
Há oito anos, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva entrou pela primeira vez na Casa Branca. George W. Bush e sua equipe o esperavam de pé. “Senhor presidente”, disparou Bush, “algumas pessoas dizem que uma pessoa como o senhor não pode fazer negócios com uma pessoa como eu. Estamos reunidos hoje para mostrar que estão equivocados”. A mensagem espalhou-se como fogo. Naquela manhã de 10 de dezembro de 2002, ninguém esperava o gesto.Havia resistências a Lula na capital americana. O “New York Times” o chamava de “esquerdista”, enquanto o “Washington Times” alertava que “se o candidato pró-[Fidel] Castro for eleito presidente do Brasil, poderemos ter um regime radical”. Quatro dias antes do primeiro turno, 12 deputados republicanos manifestavam preocupação a Bush numa carta pública.
O mesmo ocorria no mercado financeiro. Para o “Financial Times” “todos sabem que a solvência brasileira está por um fio”. Goldman Sachs via uma crise no horizonte. Para piorar a situação, em meses recentes a Argentina dera o maior calote da história e a Venezuela assistira a uma tentativa de golpe contra Chávez. Não havia linha direta entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca: Fernando Henrique Cardoso tinha dificuldade em dialogar com Bush e durante 14 meses a embaixada americana em Brasília ficara sem embaixador.
Mas quando as pesquisas de opinião começaram a apontar Lula como ganhador da corrida presidencial de 2002, um trio improvável iniciou uma manobra diplomática para tranquilizar a Casa Branca: Donna Hrinak, a recém-chegada embaixadora americana em Brasília, José Dirceu, presidente do PT e mão direita de Lula, e o próprio presidente Fernando Henrique.
A embaixadora
Donna Hrinak desembarcou em Brasília em abril de 2002 com um português impecável. Como vice-cônsul dos Estados Unidos em São Paulo na década de 1980, acompanhou de perto as greves do ABC paulista. Expoente da geração que protestou contra a guerra do Vietnã, ficou encantada com a mobilização social que viu. Daquela experiência ficou a paixão pelo país: “Não sou brasileira nesta vida, mas poderia ter sido numa vida passada…” Não era sua primeira transição presidencial: acompanhou morte de Tancredo Neves e os primeiros anos do governo Sarney.
Quando pousou em Brasília em 2002 e um jornalista lhe perguntou o que achava de Lula, ela respondeu autoconfiante. “Não temos medo de Lula”, disse, “ele encarna o sonho americano”. Filha de um pai metalúrgico de Pittsburgh e de uma mãe que não completou o segundo grau, Donna Hrinak entendia bem a respeito da ascensão social. Ela mesma era a primeira mulher embaixadora de carreira dos EUA.
Desde que assumiu a embaixada em Brasília, Donna Hrinak trabalhou para tornar palatável, em Washington, a ideia de Lula presidente. Lula entendeu logo. Quando a encontrou pessoalmente durante a campanha, abriu a conversa assim: “Eu quero falar com você porque sei que você não tem medo da gente”.
O operador
Lula escolheu José Dirceu para comandar a campanha em Washington. Em julho de 2002 Dirceu visitou os Estados Unidos com uma cópia da “Carta ao Povo Brasileiro” traduzida para o inglês. Visitou todas as instituições que importavam: Casa Branca, Tesouro, Congresso americano e mercado financeiro. Tirou fotos onde um ano antes se erguiam as Torres Gêmeas, num gesto de solidariedade. Mandou cartas a Bush pai e ao vice-presidente Dick Cheney e pediu ajuda a influentes empresários para assegurar aos americanos que a “Carta ao Povo Brasileiro” era para valer.
A embaixada americana reforçava a mensagem em seus telegramas para Washington: “Todos os nossos interlocutores têm fé em Dirceu para tomar as decisões difíceis, mas responsáveis… Ninguém espera um calote do governo”. Donna Hrinak conhecera Dirceu na década de 1980 e durante muitos anos guardara como recordação um chaveiro com as inscrições “Vote em José Dirceu”.
Dirceu também buscou o apoio das centrais sindicais americanas. Para isso mobilizou Stanley Gacek, um embaixador informal do PT nos EUA. Gacek estava informado, visitava o país havia 20 anos, tinha ligações e conhecia todo o meio sindical. Quando Lula foi preso em 1981, fazia parte da comitiva internacional que veio acompanhar o caso. Durante a década de 1990, Gacek articulara as viagens de Lula e Marco Aurélio Garcia aos Estados Unidos. Agora, trabalhando no Departamento de Relações Internacionais da poderosa central AFL-CIO, a maior e mais influente central sindical americana, ele atuava nos bastidores para assegurar que as garantias de Lula ao setor financeiro não alienassem a base de apoio sindical.
O magistrado
No afã de tranquilizar os EUA, o PT também contou com um aliado inesperado: Fernando Henrique Cardoso. Foi para ele que José Dirceu ligou ao sair de um encontro no influente Institute for International Economics em Washington, onde ouvira economistas renomados dizer que o Brasil provavelmente seria forçado a entrar em moratória.
Fernando Henrique havia inventado um novo ritual de transição presidencial. Designou uma equipe formal para gerenciá-la, criou escritórios para a equipe do presidente eleito e instruiu seus ministros a produzirem milhares de páginas de informação para seus respectivos sucessores. Assinou um acordo-ponte com o FMI para evitar possível corrida dos mercados contra o real e colocou todos os candidatos presidenciais para assinar junto. Também concedeu à nova equipe acesso a informações secretas e abriu um canal de comunicação direta com Lula.
A decisão de arquitetar uma transição nesses moldes não se tratava de benevolência nem simpatia pessoal, mas de cálculo preciso. A turbulência dos mercados, temia o presidente, poderia ferir o real de morte. Seu maior legado, a estabilidade financeira, poderia acabar com seu governo.
Além disso, o significado da transição de 2002 era enorme. Se Lula ganhasse, o Brasil poderia assistir pela primeira vez na sua história à passagem do poder de um presidente eleito pelo povo para outro mandatário igualmente eleito pelo povo que, por sua vez, conseguiria completar seu mandato sem morrer, renunciar ou ser deposto por um golpe. Fernando Henrique estava determinado a deixar esse legado.
Às vésperas do segundo turno, Donna Hrinak e Rubens Barbosa começaram a operar para que Bush telefonasse a Lula no caso de uma vitória
Ainda durante a campanha, o presidente enviou seu chefe da Casa Civil, Pedro Parente, para os Estados Unidos. Parente visitou a Casa Branca, o Departamento de Estado e o Tesouro americano com uma cópia do projeto de transição debaixo do braço. Em cada reunião Parente repetiu palavras de confiança no PT e na mensagem da “Carta ao Povo Brasileiro”. Assegurou que não haveria rupturas.
Lula entendia bem o poder simbólico da atitude de Fernando Henrique e era grato por ela. Menos de 24 horas depois de sua vitória, em conversa telefônica com o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, o presidente eleito enfatizava: “Eu gostaria de dizer para o primeiro-ministro que o presidente Fernando Henrique Cardoso jogou um papel importante nessa eleição. Primeiro funcionando como magistrado, segundo criando uma comissão de transição jamais vista no nosso continente”.
Mas Fernando Henrique sabia que isso não bastava. Uma transição estável dependeria em boa parte da reação da Casa Branca, uma vez que ela tinha a capacidade de orientar as expectativas do mercado. E sabia que a repetição da “Carta ao Povo Brasileiro” à exaustão não bastaria para desarmar as arraigadas desconfianças de Washington em relação a Lula. Por isso, instruiu seu embaixador em Washington a dar todo o apoio que a equipe do PT solicitasse.
Rubens Barbosa era diplomata de carreira, mas chegara a Washington por sua amizade com Fernando Henrique. Como embaixador na capital americana ele tinha construído um perfil pouco comum. Hiperativo, trabalhou para construir uma rede de relacionamentos no Executivo, Legislativo, na academia e nos Estados americanos que era pouco usual. Ao receber as instruções do presidente, trabalhou de modo sistemático para assegurar uma boa recepção para Lula. Ao lembrar aqueles acontecimentos hoje, os americanos envolvidos ressaltam que as palavras de Rubens Barbosa foram cruciais para moldar a percepção de Washington em relação a Lula.
O convite
Foi ainda às vésperas do segundo turno de outubro de 2002 que Donna Hrinak e Rubens Barbosa começaram a operar para que Bush desse um telefonema pessoal a Lula no caso de uma vitória. A importância do telefonema ia muito além das manchetes para a mídia brasileira. A notícia daria direção política a Washington, calando as vozes anti-Lula no próprio governo americano.
Um telefonema do presidente dos EUA pode levar meses de negociação. A embaixadora ainda lembra: “Havia muita preocupação a respeito de se Bush ligaria para Lula… Ninguém duvidava que Bush ligaria para Serra se ele ganhasse… Mas ele ligaria para Lula? E o sentimento em Washington era que Bush não ligaria imediatamente, que ele esperaria. Bush ligou para [o aliado e presidente colombiano, Álvaro] Uribe três dias depois da vitória… Então nós na embaixada começamos a alertar o PT de que se Bush não ligasse na hora isso não devia ser visto como um sinal negativo, eles não deviam se preocupar. E ao mesmo tempo a gente sinalizava para Washington e dizia: ‘Vocês precisam ligar, liguem assim que possível, isso vai significar muito aqui’”.
Foi por isso que todos se surpreenderam quando, poucas horas depois da apuração, Bush fez a ligação para Lula do Air Force One. “Parabéns pela grande vitória… O senhor conduziu uma campanha fantástica. Nós acompanhamos tudo de perto. Ficamos muito impressionados com sua capacidade para gerar essa grande maioria…” O presidente americano não parou aí: “Se for de seu interesse que eu o receba em Washington a qualquer momento, eu terei todo prazer em conhecê-lo”.
Lula aceitou a proposta de imediato: “Presidente, espero que nos vejamos até o fim do ano. Teremos muitas coisas para tratar”.
Em Washington, ouve-se que o Brasil deve ser ignorado ou punido. Em Brasília, diz-se que não vale apostar na relação com Washington
A proposta não estava no script da conversa nem tinha sido discutida previamente no Departamento de Estado ou no Conselho de Segurança Nacional. Bush aceitou a sugestão brasileira de improviso, no calor da conversa telefônica. Donna Hrinak pensou: “Graças a Deus… Vai facilitar muito a nossa vida”.
Não era comum para Bush encontrar presidentes eleitos. Mas a situação era especial. Condoleezza Rice, assessora de Segurança Nacional, repetia que “o Brasil é importante demais para ser ignorado”. De quebra, a assessora de Segurança e Bush tinham respeito pelo Brasil. Diferentemente de muitos países que prometeram a eles apoiar uma invasão do Iraque, o Brasil sempre dissera que não o faria. Condoleeza Rice lembra até hoje: “Uma coisa que contava a favor do Brasil é sempre ter sido honesto conosco a respeito de sua posição”.
Acertando o tom
Dois dias depois de conversar com Bush ao telefone, Lula encontrou Donna Hrinak para uma conversa pessoal. “Estou preparado para isso”, afirmou. A embaixadora deu-lhe uma dica. O encontro no Salão Oval, disse, será igual a uma dança delicada. Cada lado vai esperar o outro antes de dar um passo. Ela continuou: o casal nem sempre concordará, daí a importância de manter a comunicação sempre fluida. Por isso, ela explicou, Lula devia prestar atenção apenas aos anúncios oficiais do governo americano, sem se preocupar com aquilo que circulasse na imprensa.
Ela sabia que os níveis de confiança mutua entre as equipes de Bush e Lula eram baixos. A prioridade absoluta era controlar danos. “É importante evitar surpresas negativas.” Lula a tranquilizou: “Não haverá surpresas… Meu governo não será ideológico”.
Lula havia entendido a mensagem perfeitamente. Precisava construir a confiança dos americanos. Disse a Donna Hrinak que sua relação com Fernando Henrique era ótima. Manifestou admiração por Franklin D. Roosevelt, Lyndon B. Johnson e John F. Kennedy. Confidenciou ter lido tradução de um discurso do presidente Johnson sobre a “Guerra contra a Pobreza” para um grupo de ativistas do PT sem revelar a eles a autoria.
Lula foi além: “As pessoas não deviam confundir nossa admiração juvenil pela revolução cubana com nossa posição com o regime cubano atual”. Caracterizou a si mesmo como um defensor da liberdade política e econômica para todos os povos e observou que não havia liberdade em Cuba.
Lula tomou cuidado máximo com as palavras. Criticou a postura crescentemente belicista de Bush e disse à embaixadora que uma intervenção no Iraque somente seria legítima se ocorresse com a anuência das Nações Unidas. Ao fazê-lo, porém, disse a ela que os Estados Unidos eram a peça central da ordem global, daí a importância de manter tudo no âmbito da ONU.
O legado
O encontro de Bush e Lula no dia 10 de dezembro de 2002 deixou todos boquiabertos. Revelou que a direita americana poderia fazer negócios com a esquerda latino-americana. Inaugurou o perfil de um Lula estadista. E, apesar de Bush não ser querido no Brasil, criou uma inédita reserva de boa vontade mútua.
Ao fim do encontro, Bush e Lula decidiram encontrar-se novamente em 2003. Quando o fizeram, foi o maior encontro história entre os dois países. A lua de mel acabou poucos anos mais tarde, sufocada por desavenças profundas a respeito de Cuba, Honduras, Irã, Iraque e comércio internacional.
Hoje, durante uma nova transição presidencial, a relação atravessa um momento difícil. Nos corredores do poder em Washington ouve-se que o Brasil é um obstáculo a ser ignorado ou punido. Em Brasília, o cochicho em alguns gabinetes diz que não vale a pena apostar na relação com Washington devido à fraqueza política de Obama, à suposta hostilidade de Hillary Clinton em relação ao Brasil ou ao suposto declínio do poder americano.
Ambas as visões estão profundamente equivocadas. Um pouco de memória talvez possa ajudar.