Ricardo Westin
Para os paraguaios, não existe herói maior do que Francisco Solano López, o ditador que há exatos 150 anos invadiu o Brasil e deflagrou a Guerra do Paraguai (1864–1870).
As deferências se espalham pelo país. Solano López dá nome a cidade, rodovia, ruas, praças, hospitais, colégios. A principal via de Assunção é a Avenida Mariscal López (mariscal é o termo em espanhol para marechal). As homenagens vão de academia de tae-kwon-do a parque de diversões, de shopping center a time de futebol.
O rosto do ditador aparece na moeda de mil guaranis. Faz sucesso entre os adolescentes uma camiseta que, numa licença histórica, retrata o mariscal e Che Guevara lado a lado.
— Solano López se transformou numa religião cívica — resume Herib Caballero Campos, historiador da Universidade Nacional de Assunção e autor do livro El País Ocupado (sem edição em português).
É um culto contraditório. A herança de Solano López foram a derrota e a humilhação. O país ficou em ruínas, e pedaços do território foram perdidos para os países vencedores. Estima-se que 75% da população paraguaia tenha morrido nos cinco anos do conflito, seja no front, seja por fome e doenças. A Guerra do Paraguai é o mais sangrento conflito já visto na América Latina.
Crianças e anciãos
A guerra derivou das tensões diplomáticas na região do Rio da Prata. O Paraguai cultivava estreitas relações com o Uruguai, pois o comércio exterior dependia do porto de Montevidéu, mas mantinha um pé atrás em relação ao Brasil e à Argentina, vistos como expansionistas.
O frágil equilíbrio se rompe em outubro de 1864, quando o Brasil invade o Uruguai para intervir numa guerra civil local. O Paraguai protesta, temendo perder o aliado. Como dom Pedro II ignora as reclamações, o mariscal toma duas medidas radicais. Em novembro, confisca o navio brasileiro Marquês de Olinda, que navegava pelo Rio Paraguai, na altura de Assunção, rumo a Cuiabá. Em dezembro, manda suas tropas atacarem a província de Mato Grosso. A guerra está declarada.
No Uruguai, a guerra civil termina com a queda do governo pró-Paraguai. A Argentina se vê envolvida no jogo em abril de 1865, após tropas paraguaias invadirem a província de Corrientes. Em maio, o Brasil, a Argentina e o Uruguai formam a Tríplice Aliança, com o intuito de derrubar Solano López. No Paraguai, o conflito é chamado de Guerra da Tríplice Aliança.
O mariscal chega a obter vitórias no início, mas logo passa a colecionar derrotas. No final, ele se vê obrigado a convocar até crianças e anciãos às armas.
Documentos guardados no Arquivo do Senado mostram que os senadores do Império descreviam Solano López como “tirano” e o comparavam a Napoleão, o imperador francês que tentou dominar a Europa.
Numa sessão em 1868, um senador leu um documento em que o paraguaio aparecia como “marechal López”. Houve risos. Os senadores sabiam que ele fora alçado por decreto ao degrau mais alto da hierarquia militar. Preferiam chamá-lo de general.
Em janeiro de 1869, as tropas brasileiras ocupam Assunção. Em março de 1870, Solano López é descoberto nas montanhas do norte do país e morto na Batalha de Cerro Corá.
Terminado o conflito, a lembrança que os paraguaios, traumatizados, guardaram de Solano López foi a do déspota que arrastou o país para uma guerra catastrófica. A imagem oposta seria idealizada mais tarde, pelos ditadores que se sucederam em Assunção ao longo do século 20. O mariscal passou a ser incensado como um bravo líder que lutou por anos para defender os compatriotas e no final deu a vida em sacrifício.
— Era a ditadura moderna buscando se legitimar por meio da ditadura do passado. O ditador do momento se apresentava como a continuidade da luta de Solano López pela soberania do Paraguai — explica Thomas Whigham, historiador da Universidade da Geórgia (EUA) e autor de La Guerra de la Triple Alianza (sem edição em português).
Em 1936, a ditadura do coronel Rafael Franco inaugurou o Panteão Nacional dos Heróis e nele abrigou os restos mortais do mariscal. Em 1978, o general Alfredo Stroessner patrocinou as filmagens do épico Cerro Corá, que cristaliza a imagem de mártir. O cartaz promocional anuncia “uma história de amor, coragem e sacrifício”. O filme é exibido até hoje na TV.
A mesma visão romantizada chegou ao Brasil e à Argentina nos anos 1960. Argumentava-se que a guerra fora tramada por Londres, que supostamente não estava gostando de ver o Paraguai se industrializar sem depender das manufaturas inglesas. A Tríplice Aliança teria sido usada como marionete da Inglaterra.
A versão foi ensinada nas salas de aula brasileiras e argentinas até os anos 1990, quando os historiadores enfim se deram conta da ficção. Primeiro, o Paraguai não tinha indústria relevante. Depois, se a Inglaterra queria transformar o país em mercado consumidor, não fazia sentido incitar uma guerra que dizimaria a população. Por fim, as relações diplomáticas entre o Brasil e a Inglaterra estavam rompidas quando a guerra estourou, por causa da Questão Christie.
Hoje se entende que essa interpretação era uma forma sutil de atacar as ditaduras que, apoiadas pelos EUA, governaram o Brasil e a Argentina nos anos 1960 e 1970. Por um lado, atingia-se o imperialismo — o inglês e o americano. Por outro, criticavam-se os militares — tanto os que destroçaram o Paraguai quanto os que haviam tomado o poder em Brasília e Buenos Aires.
O Paraguai se tornou um país democrático em 1989, com a queda de Stroessner. No entanto, o culto a Solano López permanece. Uma explicação é o fato de os horrores do conflito estarem até hoje presentes na memória coletiva, como uma ferida não cicatrizada. A existência de um herói, ainda que irreal, serve de alento. Outra explicação é o fato de não ter havido liberdade acadêmica durante os 35 anos da ditadura Stroessner.
Professores e pesquisadores que questionaram a versão oficial da história chegaram a ser presos e exilados.
Dia de Luto Nacional
Os alunos paraguaios sabem de cor o nome das batalhas. É provável que conheçam mais que os brasileiros o conde d’Eu — o marido da princesa Isabel foi comandante das tropas do Império. Entre as datas oficiais, estão o Dia dos Heróis Nacionais, 1º de março, quando Solano López foi morto, e o Dia das Crianças, 16 de agosto, quando centenas de meninos soldados morreram na Batalha de Acosta Ñu.
Em julho, um grupo de deputados apresentou um projeto de lei que, sendo aprovado, agregará mais uma data cívica ao calendário: o Dia de Luto Nacional pelo Genocídio do Povo Paraguaio, em 12 de agosto, quando se travou a Batalha de Piribebuy.
O ponto mais conhecido da batalha é o incêndio de um hospital que resultou na morte dos que estavam internados. Na versão paraguaia, o conde d’Eu ordenou o atentado. Para historiadores brasileiros, as chamas foram provocadas pelas faíscas das armas e se espalharam pelas paredes de madeira do hospital.
— Os paraguaios gostam de refletir sobre o passado. O mariscal López e a Guerra da Tríplice Aliança são temas onipresentes — afirma o deputado Ricardo González, um dos autores.
Na avaliação do historiador Ricardo Salles, autor de Guerra do Paraguai — escravidão e cidadania na formação do Exército (Paz e Terra), a população paraguaia foi, sim, aniquilada, mas não se pode falar em genocídio:
— Ainda que tenham ocorrido degolas, fuzilamentos e outras barbaridades, o Brasil não atacou o Paraguai com o objetivo de exterminar a população. Foi uma guerra. E as mortes não podem ser creditadas integralmente ao Brasil. No final, Solano López recrutava qualquer um que tivesse entre 12 e 60 anos. Pessoas morreram de fome porque soldados dos dois lados confiscaram o gado e a colheita.
O historiador Francisco Doratioto, autor de Maldita Guerra — nova história da Guerra do Paraguai (Companhia das Letras), diz que é absurdo ver Solano López como herói:
— Ele sacrificou um país inteiro inutilmente. O herói foi o povo paraguaio, que acreditou na história de que a independência do país era ameaçada pelo Brasil e pela Argentina. O paraguaio atendeu a convocação para pegar em armas e lutou bravamente, mas pagou um preço alto demais.
“Conflito foi feito às apalpadelas”, afirmou Caxias no Senado
Em julho de 1870, o duque de Caxias, senador vitalício pelo Partido Conservador desde 1845, subiu à tribuna do Senado para fazer uma prestação de contas de seu trabalho como comandante das tropas aliadas na recém-concluída Guerra do Paraguai. Na prática, tratou-se mais de uma resposta às inúmeras acusações feitas pelos senadores do Partido Liberal enquanto ele esteve na guerra. Os adversários criticaram, por exemplo, a lentidão com que os soldados tomaram a Fortaleza de Humaitá e ocuparam Assunção.
— Senhores, não há nada mais fácil do que criticar operações e indicar planos mais vantajosos depois de os fatos estarem consumados, de longe e com sangue frio. Mas o mesmo não acontece a quem se acha no teatro das operações, caminhando nas trevas, em um país inteiramente desconhecido e inçado de dificuldades naturais — disse.
No pronunciamento, Caxias lembrou que não existiam mapas do Paraguai nem pessoas de confiança que conhecessem os acidentes geográficos do país:
— É preciso que os nobres senadores se convençam de que a Guerra do Paraguai, desde o seu começo, foi feita às apalpadelas. Só se conhecia o terreno que se pisava. Era preciso ir fazendo reconhecimentos e explorações para poder dar um passo.
Caxias era um militar brilhante, célebre por sufocar movimentos revoltosos como a Balaiada, no Maranhão, e a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Quando foi convocado para comandar as tropas na Guerra do Paraguai, em 1866, era marquês. O título de duque seria dado por dom Pedro II em 1869.
O senador foi chamado para os campos de batalha porque o comando anterior dava mostras de que não conseguiria vencer Solano López. No discurso no Senado, Caxias disse que encontrou as tropas num estado lamentável. Elas estavam divididas em dois corpos completamente diferentes, inclusive com soldos, critérios de promoção e uniformes próprios. Segundo ele, “pareciam pertencer a nações diferentes”.
O comandante resolveu o problema da falta de cavalos para os soldados e providenciou lugares seguros para se trancafiarem os prisioneiros de guerra. Antes, contou ele no Senado, os detidos eram simplesmente mantidos “no meio do campo, cercados de sentinelas”. Com a guerra em curso, Caxias fez uma reforma no Exército.
Após a tomada de Assunção, na virada de 1868 para 1869, Caxias, com a saúde debilitada, retirou-se da guerra. Naquele momento, os militares cotados para a missão ocupavam postos políticos. Se Pedro II escolhesse um liberal, provocaria a ira dos conservadores — e vice-versa. Acabou optando pelo conde d’Eu, marido da princesa Isabel, por ser uma figura politicamente neutra. Nascido na França, ele havia adquirido experiência militar em campos de batalha no Marrocos, antes de se mudar para o Brasil.
Bisneto de Solano López pede ao Brasil que devolva canhão paraguaio
Miguel Solano López é um dos bisnetos de Francisco Solano López, o presidente paraguaio na época da guerra.
De acordo com ele, “para que as feridas se cicatrizem no Paraguai”, o Brasil precisa devolver um canhão que foi levado como troféu de guerra e atualmente está exposto no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. A arma é conhecida como canhão cristão, por ter sido feita com o metal dos sinos das igrejas de Assunção.
O Itamaraty, porém, afirma que não há “negociação em curso sobre o assunto ou pedido oficial por parte do governo do Paraguai”.
Miguel Solano López tem 69 anos e é o embaixador do Paraguai em Londres. Na entrevista ao Jornal do Senado, ele fez questão de frisar que falava não como diplomata, mas como “descendente do personagem mais famoso da história do Paraguai”. A seguir, trechos da entrevista:
“Considero a expressão Guerra do Paraguai ofensiva, porque dá a entender que foi o Paraguai que provocou o conflito. Prefiro chamar o conflito de Guerra da Tríplice Aliança. O paraguaio se sente ofendido até o fundo da alma quando se insiste em dizer que ele foi o culpado e que os aliados foram inocentes. O conflito foi provocado pelo Brasil.
Francisco Solano López era um homem de paz, tanto que sempre buscou assegurar a independência do Uruguai. O Paraguai enfrentava problemas para usar o porto de Buenos Aires. Por isso, o acesso ao porto de Montevidéu era questão de vida ou morte. O Paraguai tinha um acordo com o Brasil pelo qual ambos se tornaram garantidores da independência do Uruguai.
Em 1864, com a revolução, subiu ao poder em Montevidéu um governo apoiado pela Argentina. O Brasil, porém, negou-se a garantir a independência uruguaia. É então que surge a situação de guerra entre Brasil e Paraguai.
A guerra não foi favorável ao Paraguai, mas os paraguaios veem o duque de Caxias com profundo respeito, porque ele era um homem integramente militar. Quando as tropas aliadas tomam Assunção, Caxias considera a guerra terminada. Para dom Pedro II, porém, a guerra só acabaria com a morte de Francisco Solano López. É então que chega o conde d’Eu, que comandou as tropas no último ano da guerra. Foi nesse ano que o Paraguai foi completamente destroçado.
Quando me perguntam por que os paraguaios conhecem mais a guerra que brasileiros, argentinos e uruguaios, a resposta é simples: o Paraguai nunca conseguiu se recuperar completamente de toda aquela destruição. Compare com a 2ª Guerra Mundial. Os aliados, logo depois, fizeram um esforço para recuperar os países derrotados. A Alemanha e o Japão ressurgiram em poucos anos. No caso do Paraguai, mesmo passados 150 anos, isso nunca aconteceu.
O Uruguai e a Argentina já deram passos importantes em direção à reconciliação. Em Montevidéu, existe uma estátua de Francisco Solano López a cavalo. O presidente argentino Juan Domingo Perón devolveu relíquias ao Paraguai. Recentemente, Cristina Kirchner batizou um regimento do Exército argentino com o nome de Francisco Solano López.
O Brasil, no governo de João Figueiredo, restituiu a espada que Solano López tinha na mão no momento de sua morte. Mas falta entregar o canhão cristão, que, dos troféus de guerra, é o mais caro aos paraguaios. Quando isso ocorrer, não tenho dúvidas de que as cicatrizes no Paraguai se cicatrizarão. A iniciativa da reconciliação deve partir do Brasil, que foi o vencedor, não do Paraguai.”