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O que uma demanda boliviana esconde


Heraldo Muñoz
Ministro das Relações Exteriores do Chile.
Foi embaixador do Chile no Brasil (1994-1998)
e nas Nações Unidas (2003-2010)

 

A Bolívia entrou com uma ação contra o Chile, recentemente, na Corte Internacional de Justiça, em Haia, pedindo ao tribunal que obrigue o Estado chileno a negociar e conceder ao boliviano uma saída soberana para o mar.
 

A saída soberana pelo território chileno que a Bolívia pede implica uma modificação não concordada do Tratado de Paz e Amizade de 1904, que estabeleceu a fronteira entre Chile e Bolívia e determinou um generoso sistema de acesso não soberano da Bolívia ao mar.
 

A demanda representa, portanto, uma ameaça à estabilidade das fronteiras, assim como o princípio básico do direito internacional da observância dos tratados.
 

O governo de La Paz sustenta sua demanda no Pacto de Bogotá. O artigo 6º desse pacto, porém, exclui da jurisdição da corte as questões resolvidas ou governadas por tratados prévios à sua subscrição, realizada em 1948.
 

A Bolívia sustenta que sua demanda não toca o Tratado de 1904, mas a verdade é que mesmo quando evita mencioná-lo, suas petições afetam o que o mencionado tratado resolveu e governa até hoje. Note-se que a Bolívia levou 60 anos para ratificar o Pacto de Bogotá. Fez isso com uma ressalva ao artigo 6º do pacto, que levantou apenas para acionar o Chile no tribunal.
 

A Bolívia argumenta que o Chile seria obrigado a outorgar-lhe acesso soberano ao mar, produto dos diálogos sobre o assunto que ambos os países têm mantido ao longo da história. Assim, o governo de La Paz confunde uma aspiração com um direito. Esse direito, que afeta nada menos que a integridade territorial de um país e os tratados vigentes, não se pode inferir a partir de negociações e diálogos que não frutificaram.
 

O proeminente diplomata boliviano Walter Montenegro argumenta no livro "Oportunidades perdidas: Bolívia e o Mar" que é necessário reconhecer que os próprios bolivianos contribuíram para essa série de negociações frustradas. O ex-ministro das Relações Exteriores da Bolívia Armando Loayza argumentou que, no fracasso das negociações bilaterais, La Paz teve "uma responsabilidade muito grande".


A Bolívia quer convencer a comunidade internacional de que vive em clausura. A realidade é diferente. A Bolívia goza de acesso irrestrito ao mar, mas não de forma soberana.


Em virtude do já mencionado Tratado de 1904, o Chile reconheceu em favor da Bolívia "o mais amplo e livre direito de trânsito comercial pelo seu território e portos do Pacífico". Esse regime foi ampliado pela Convenção do Trânsito de 1937 a "todo tipo de carga e em tempo integral sem exceção alguma".
 

A Bolívia exerce autoridade alfandegária sobre as cargas provenientes ou manifestadas ao seu país e até dispõe de suas próprias instalações e pessoal de alfândega nos portos chilenos.
 

Nosso país também isenta do Imposto ao Valor Agregado aos serviços e às cargas bolivianas em trânsito, com o qual se outorga à Bolívia uma vantagem superior às concedidas pela comunidade internacional aos países sem litoral.

Além disso, a Bolívia goza de armazenamento gratuito por até um ano para a carga de importação e 60 dias para a carga de exportação. Esse benefício não se aplica nem para as cargas chilenas nem para as cargas de outros países.
 

Com recursos próprios, o Chile construiu uma via férrea para ligar o porto de Arica com La Paz. A ferrovia tem prestado serviços de transporte de carga e, em diversas épocas, também de passageiros.
 

O governo do Chile está convencido de que o desenvolvimento da América Latina passa pela erradicação dos fantasmas do passado e olhar para a frente.

O pedido da Bolívia não faz nada para avançar com esse objetivo. Tampouco uma campanha verbal desproporcionalmente agressiva por parte do governo boliviano contra o Chile.
 

Chile e Bolívia estão enfrentando o desafio comum de construir relações para o futuro, além de deixar para trás o século 19 e entrar, corajosamente, no século 21.

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