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SP – O Drama de ser PM

Nota Matéria publicada no encarte especial VEJA SP, em  09 NOV 2012 e atualizada no dia 12 NOV 2012.

Uma das poucas reportagens da imprensa paulista que tratou com respeito e dignidade os PMs, quando estes foram inclusive abandonados pelo Comandante em Chefe o Governador do Estado de SP.

O editor


João Batista Jr, Cristiane Bomfim
e Daniel Bergamasco

 
“Dois acidentes de trânsito, três brigas de família, um carro com som alto que perturbava os vizinhos, um princípio de baile funk e um roubo a loja. Era noite de sábado (3) e o meu trabalho como primeiro-tenente fazendo a ronda na Zona Norte podia ser considerado tranquilo. Até que, perto das 21h30, ouvi pelo rádio da viatura a informação de que uma mulher havia sido baleada dentro da própria casa e que, possivelmente,era mais uma vítima dessa onda de violência contra policiais militares. Fiquei aflito, agoniado, e em poucos minutos cheguei ao local, na Vila Brasilândia. A área estava isolada, mas sem a vítima, levada com vida para o hospital. Logo veio a confirmação: era a PM Marta Umbelina da Silva, de 44 anos. Que desespero. Eu a conhecia. Havíamos trabalhado juntos anos antes. Segui para o centro médico, mas ela não resistiu. No caminho, ouvi alguém dizer, enquanto eu passava com a minha viatura: ‘Se é policial, tem de morrer mesmo’. Depois de ver o corpo no IML, tive de voltar para a rua e terminar o meu plantão, já com o dia claro. Fui para casa à paisana, após trocar de roupa, e tomando todos os cuidados para afastar o risco de ser o próximo alvo.”

A fala do tenente Getúlio (nome fictício, como o de vários outros policiais que dão depoimento à reportagem) ilustra bem o início demais uma semana tensa para a corporação em meio a uma preocupante onda de violência. Até a tarde de quinta (8), 72 policiais haviam sido assassinados no estado neste ano (ou noventa, se contados os aposentados), quase todos na Grande São Paulo. O caso de Umbelina se tornou emblemático. Além de ser a única mulher nessa soma, ela foi alvejada de forma peculiarmente covarde, na frente da filha de 11 anos. A PM exercia funções administrativas, um sinal deque mesmo quem não enfrenta os bandidos na rua está na mira. Seu drama veio precedido de outros episódios chocantes ocorridos nos últimos meses. Em junho, o soldado Vaner Dias foi atingido com ao menos quatro tiros em uma academia onde dava aulas de jiu-jítsu. Em setembro, Joel Juvêncio da Silva morreu com sete tiros na frente da família, ao voltar de um culto evangélico, na região do Jardim Ângela. “É um momento de crise”, reconhece o secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto. “Mas vamos superá-lo, como fizemos outras vezes.”

Desde que assumiu a pasta, em março de 2009, ele priorizou duas frentes de trabalho — a de punição de policiais civis ou militares corruptos e a de maior enfrentamento da criminalidade, missão para a qual colocou como ponta de lança a Rota, tropa de elite da PM conhecida pela atuação linha-dura. Os ataques recentes, acredita Ferreira Pinto, podem ser uma retaliação ao cerco, especialmente ao estrangulamento do tráfico de drogas. Em 2011, ocorreu a apreensão de 6,2 toneladas de cocaína só na cidade de São Paulo, quase o dobro do número registrado em 2010. A morte de suspeitos por policiais ajudou a aumentar essa temperatura— foram 437 em todo o ano passado e 369 de janeiro a setembro deste ano, incluindo a de um suposto integrante da facção criminosa PCC. O caso aconteceu em maio, nas proximidades da Rodovia Ayrton Senna. O suspeito havia sido preso durante ação em uma favela da Zona Leste e executado por três soldados, que estão presos. “Nossa filosofia é agir sempre com firmeza, mas não toleramos abusos”, afirma Ferreira Pinto. “Quem faz algo errado é punido.”

O estado de São Paulo teve anos ainda mais sangrentos para os agentes da lei. Em 2006, por exemplo, morreram 105 policiais. Desde então, o número nunca mais superou a casa de 100 assassinatos e chegou a 56 casos no ano passado. Um dos indícios deque a reversão da tendência de queda da estatística está ligada à ação dos bandidos é um bilhete encontrado no mês passado na favela de Paraisópolis. Segundo a mensagem, atribuída a um delinquente, a ordem é matar dois policiais a cada um dos seus que seja alvejado. “Bandidos que devem dinheiro ao PCC têm de executar alguém para pagar a dívida e aí escolhem algum alvo mais fácil”, explica o promotor Marcelo Alexandre de Oliveira,que apura casos em Guarulhos. Além de preocupar as autoridades,a situação mudou bastante a rotina dos PMs responsáveis pelo patrulhamento das ruas. Vários soldados ouvidos por VEJASÃO PAULO nos últimos dias contaram que estão trabalhando sob forte tensão e que tomaram cuidados adicionais para proteger sua vida e a das pessoas mais próximas. Apesar disso, fazem questão de dizer que jamais se sentirão intimidados pelos ataques e ameaças dos criminosos.

 “Estamos em guerra. Há dois meses, não tenho mais vida social. Acabou aquela coisa de caminhar até a padaria para comprar pãozinho francês ou ir ao samba no fim de semana.Jamais piso fora de casa nos dias de folga e, quando vou trabalhar, levo na cintura duas pistolas: uma .380 e outra .40.Minha mulher só dorme depois de tomar Lexotan e esconder três facas debaixo do colchão. Há uma quarta sob o microondas, que fica ao lado da porta da cozinha. Se alguém entrar,ela vai lá e ‘pá’. Pensando no pior, já expliquei a ela tim-tim por tim-tim o que fazer caso eu morra em um ataque. Avisei a quem recorrer e para qual colega ligar para requerer o seguro de vida. Segundo amigos investigadores, meu nome já foi citado em telefonemas grampeados de bandidos. Eles consideram a minha cabeça um troféu, até porque eu sou um cabo com experiência de muitos anos na Rota. E a Rota, todos sabem, é o que a bandidagem mais quer atingir. Eu e meus companheiros criamos um esquema de proteção mútua. Antes de sair para o trabalho, cada um informa três amigos pelo rádio que está indo a campo. Outro aviso aos mesmos colegas é feito dez minutos depois, quando já deu tempo de chegar ao batalhão.Caso isso não seja feito, é porque no meio do caminho alguém foi abatido. O PCC é um mal que precisa ser combatido. Se eu morrer, que seja atirando. Eu não tenho medo. Estou para me aposentar em três anos. Aí, sim, vou descansar. Quero comprar um sítio para criar galinhas e tocar meu cavaquinho em paz. Até lá, é preciso ter força.” (cabo Dalvo)

Na última terça (6), o governador Geraldo Alckmin se reuniu com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e anunciou uma série de medidas para resolver a atual crise. Uma das principais é a criação de uma agência para integrar as investigações da PM paulista e da Polícia Federal, entre outros órgãos. Antes disso, a Secretaria de Segurança do estado já havia iniciado a Operação Saturação, como foram chamados os cercos às regiões mais perigosas e suspeitas de abrigar integrantes do crime organizado. “Há indícios de que o PCC teve envolvimento nos episódios recentes, mas é um erro imaginar que todos os casos de execução tenham participação de seus membros. Estamos investigando também outros grupos”, diz Ferreira Pinto. A Operação Saturação começou no mês passado em Paraisópolis e se estendeu depois a outros bairros da Zona Sul, como Capão Redondo e Campo Limpo. Na semana passada, incluiu favelas como Santa Inês (Zona Leste) e São Rafael (Guarulhos). Nelas, a polícia busca atualmente ao menos dezessete criminosos que, segundo as investigações, estão envolvidos nas mortes. Eles podem se somar a 130 suspeitos presos desde o início do ano, todos com evidências de envolvimento nos ataques contra policiais. Um deles é Francisco Antonio Cesário da Silva, o Piauí, um dos chefões do PCC. Em agosto, dentro das dependências da penitenciária de Avaré, a 260 quilômetros da capital, ele teria ordenado a morte de seis policiais. Isso fez com que seu nome fosse o primeiro a ser anunciado na lista de transferidos para presídios federais localizados em outros estados. No caso dele, para uma unidade em Porto Velho, em Rondônia, criando barreiras geográficas para separá-lo de seus comparsas de facção criminosa.
 
Piauí atuava na favela de Paraisópolis, justamente onde a polícia encontrou uma lista com informações do dia a dia de oito policiais militares e dois civis. Segundo a Secretaria de Segurança, esse papel não continha nomes, apenas descrições como “sargento, frequenta um boteco às quartas e mora em tal lugar”. A sensação de estar sendo observado se torna ainda mais aflitiva quando os policiais pensam nos parentes. Na última segunda (5), Tiago de Souza, de 27 anos, filho de um ex-policial da Rota, foi morto a tiros quando estava dentro de um carro na companhia de um amigo e do irmão, também baleado, na Vila Nova Cachoeirinha.

“A tensão familiar é sufocante. Minha mulher me liga mais de seis vezes durante o expediente para saber se estou vivo. Meus pais e os parentes mais próximos ficam nesse mesmo estado de paranoia. Isso é vida? Proibi minha companheira e meus filhos de assistir a jornais como o do Datena. Ver que um policial foi abatido perto do meu batalhão, aqui na Zona Sul, só piora.Muitas vezes, chegava em casa e me perguntavam se eu já sabia que fulano tinha morrido. Então, de duas semanas para cá, não falamos mais do assunto dentro da minha residência e também não quero que vejam o noticiário sensacionalista. Quem nasce para ser polícia sabe o risco que corre, mas morrer sem estar em combate não está nos planos de ninguém.” (soldado Ricardo)
 
Na quinta (8), o governador Alckmin anunciou a ampliação do seguro de vida dos policiais do estado de 100.000 para 200.000 reais. O benefício passará a ser pago também a policiais de folga, mas que morrerem em decorrência da profissão.Os riscos se somam às dificuldades de uma rotina de trabalho em que o desgaste é muito maior do que pressupõe o adicional de insalubridade — 500 reais no caso de um soldado iniciante, que ganha 2.800 reais brutos por mês. A situação salarial melhorou. Em 2010, houve um reajuste de 28% nos soldos.Hoje em dia, o praça, que ingressa por meio de concurso público,pode chegar a subtenente, com salário de 5 100 reais. Para assumir patentes mais altas, é preciso entrar no curso universitário da Academia de Polícia Militar do Barro Branco, cuja seleção, pela Vunesp, teve 86 candidatos por vaga em 2011, em um processo que incluiu investigação do comportamento do calouro até em seu perfil no Facebook. Mesmo sabendo dos riscos que a aguardam, a aluna Ysabelle de Souza, de 24 anos, reafirma a confiança na carreira que escolheu. “Os atentados são coisa de momento e serão superados”, diz ela. Após a morte de dezoito policiais aposentados, a Associação dos Subtenentes e Sargentos da PM criou um curso específico de reciclagem para inativos. “Eles reaprenderão a manusear suas armas, já que estão entre as vítimas e atirar não é como andar de bicicleta”, diz Írio Trindade de Jesus, diretor de ensino da entidade.

“A população sabe que não trabalhamos com as melhores condições. Desde o início de outubro, por exemplo, só saio de casa com o colete à prova de balas emprestado por um amigo por causa dos ataques. O batalhão em que eu trabalho,na região do Capão Redondo, não tem equipamento suficiente para todos os policiais. O último estava com a validade vencida e foi tirado de circulação, mas não foi reposto. Por isso está havendo um rodízio entre os policiais que trabalham na rua. Mas quem atua na parte administrativa, como é meu caso, não tem direito. Durmo com a arma embaixo do travesseiro. Não prego os olhos direito porque fico achando que qualquer barulhinho lá na rua pode ser o assassino.” (soldado Otávio)
 
Embora o momento seja crítico, o estado está longe de passar por uma epidemia de violência. Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados na semana passada, São Paulo tem 10,1 homicídios dolosos por 100.000 habitantes, a segunda menor taxa do país (Alagoas, o estado campeão, registra um índice de 74,5). As autoridades da segurança pública acreditam que os criminosos não terão fôlego para sustentar por muito tempo os confrontos, sobretudo porque a situação atual prejudica seus negócios. Com cercos a favelas onde funcionam pontos de venda de drogas, o movimento do tráfico fica comprometido. Outro fator que dá margem a otimismo em relação a uma vitória breve contra os bandidos é o empenho da tropa.

“Recentemente, um comandante pediu a mim e a meus companheiros que não andássemos mais fardados por aí, sem necessidade. Ficamos indignados. Somos honestos e estamos do lado certo da batalha. Não tenho dúvida de que ser polícia é a minha vocação de vida.” (soldado Antonio)
 

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