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O autogolpe do chavismo

O regime chavista acaba de contemplar a Vene­zuela com a duvidosa distinção de ser o único país do mundo onde a posse do presidente da República é considerada "formalidade dispensável". Foi o que afirmou o vice do caudilho, Nicolás Maduro, para desdenhar da provisão constitucional de que o mandatário eleito – no caso de Chávez, reeleito – deve assumir o cargo no dia 10 de janeiro do primeiro ano de seu pe­ríodo de governo.

Diante da certeza de que só por milagre Chávez terá condições de comparecer depois de amanhã à Assembleia Nacional em Caracas para assumir o cargo, como estabelece a Constituição, o vice, com a anuência do presidente da Casa, Diosdado Cabello, decidiu para todos os efeitos prorrogar por tempo indeterminado o mandato, em vias de conclusão, do chefe gravemente enfermo.

Como se sabe, em 8 de dezembro ele se licenciou do Palácio Miraflores para se submeter, três dias depois e sempre em Cuba, à quarta cirurgia para extirpar o câncer do qual se sabe apenas que o acometeu, há um ano e meio, na região pélvica.

Ao se despedir, na cena provavelmente mais encharcada de emoção de seus 14 anos de poder, Chávez exortou os venezuelanos a votar em Maduro para suceder-lhe nu­ma eventual eleição sem a sua presença. Segundo a Constituição, impossibilitado o presidente eleito de prestar juramento na data prevista perante a Assembleia, o seu titular teria de convocar um novo pleito para se realizar em até 30 dias. Tentando justificar o autogolpe em marcha, a cúpula chavista invoca o trecho da Carta segundo o qual "se, por qualquer motivo, o presidente da República não puder tomar posse na Assembleia Nacional, o fará ante o Tribunal Supremo de Justiça", supostamente em qualquer época ou lugar.

Trata-se de evidente sofisma, como se apressou a denunciar a oposição e conforme a avaliação dos juristas venezuelanos ainda não cooptados pelo siste­ma. (É de lembrar que a primeira medida de amplo alcance do caudilho foi promover uma "reforma" do Judiciário, para aparelhá-lo com gente de confiança).

A lei prevê a posse perante a Justiça não quando o eleito deixa de comparecer ao Parlamento, mas quando este, por qualquer circunstância, não pode se reunir no dia aprazado. O chavismo distorce a Constituição, em parte porque é de sua natureza autoritária – ainda que se trate de uma Constituição feita sob medida pelo regime, em 1999, para a perpetuação da chamada Revolução Bolivariana -, e em parte pelo imperativo de ganhar tempo em face do "delicado" estado de saúde do Jefe. Conforme a versão oficial, que antes sonega do que di­vulga informações a respeito, depois da operação Chávez te­ve uma hemorragia e padece de uma infecção pulmonar grave. Especialistas estrangeiros não descartam que ele esteja respi­rando por aparelhos.

Politicamente, o aparato chavista está numa situação análoga à do observador imaginado pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, em 1935, no seu célebre "experimento mental" destinado a assinalar a diferença entre o comportamento da matéria, de acordo com a física quântica, e aquela percebida no dia a dia. Um observador, sustentava ele, poderia considerar tanto vivo como morto um hipotético gato posto numa caixa fechada, sob o risco de aspirar uma substância venenosa.

Ou seja, os chavistas não podem agir na expectativa nem do falecimento iminente do seu líder nem da sua sobrevivência por um tempo razoável. Na dúvida, submetem a Constituição à sina de suas congêneres sob o império do populismo. Numa de­mocracia efetiva, acontecesse o que viesse a acontecer com o chefe do governo, não podendo ele assumir no dia devido, seria substituído pelo interino legítimo, uma nova eleição ocorreria no prazo previsto – sem agressão às leis ou às instituições, por entranhada que fosse a po­pularidade do já então ex-presidente.

Na Venezuela bolivariana, porém, parece inconcebível um Chávez vivo, mesmo incapacitado, e outro nome, mes­mo chavista, no poder. O resultado, como diria Schrõdinger a propósito de suas elucubrações, é o "emaranhamento" do chavismo.

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