Nos dias finais da campanha presidencial dos Estados Unidos, o presidente Barack Obama e seu adversário, o republicano Mitt Romney, foram obrigados a mudar de assunto. A destruição causada pelo Furacão Sandy na cidade de Nova York e no Estado de Nova Jersey tomou conta do noticiário, e os dois candidatos tiveram de declarar trégua – algo impensável numa disputa que está apertadíssima e ainda não permite nenhuma previsão confiável sobre o resultado nesta terça-feira, dia 6. O que não mudou, entretanto, foi a posição de Obama e Romney sobre o Brasil – ou melhor, a falta de posição. O país foi ignorado nos planos de governo, nos pronunciamentos e nos debates. Numa das campanhas mais acirradas da memória recente, os candidatos se concentraram em três itens: a recuperação da economia, o Oriente Médio e a China.
É claro que isso diz mais sobre o que se passa nos Estados Unidos hoje do que sobre a importância do Brasil para a diplomacia americana. As relações comerciais entre os dois países continuam intensas. Os chineses hoje ocupam o primeiro lugar na lista de países com mais volume de negócios com o Brasil, mas os americanos seguem confortavelmente no segundo lugar – o intercâmbio comercial foi de US$ 59,7 bilhões, com superávit de US$ 8,15 bilhões para os EUA. Apesar da ligeira desvalorização do real em relação ao dólar, as lojas de Nova York e Miami seguem cheias de turistas brasileiros. Mais de 1 milhão de vistos serão emitidos nos consulados americanos e na embaixada em Brasília até o fim deste ano.
Por que, então, esse aparente desinteresse de Obama e Romney? Para Peter Hakim, presidente emérito do centro de estudos Inter-American Dialogue, a resposta é simples: entre as muitas preocupações dos eleitores americanos, o Brasil certamente não está. "Mas a índia também não está, assim como a União Européia, a Turquia…", diz Hakim. "O Canadá é o maior parceiro comercial dos Estados Unidos. Mas você não ouve nenhum dos candidatos falando do assunto." O fato de os eleitores americanos estarem mais preocupados – justamente, diga-se – com a geração de empregos e a reforma do sistema de saúde, porém, não quer dizer que a escolha do novo presidente americano não terá impacto sobre o Brasil. Época descreve nas próximas páginas alguns dos temas mais importantes nas relações entre os dois países para tentar determinar qual dos candidatos seria melhor para nossos interesses. Embora republicanos, menos protecionistas, sejam em geral melhores para nós, o democrata Obama leva ligeira vantagem desta vez. Caso chegue ao segundo mandato, porém, ele precisa dar uma resposta mais vigorosa à tarefa de levantar a economia americana – e, se o fizer, será talvez a maior ajuda que poderá dar ao Brasil.
Vistos
Os turistas brasileiros não deixarão de comprar se Obama continuar sentado na cadeira de presidente ou se Romney tomar seu lugar na Casa Branca. Os gastos dos brasileiros continuam crescendo, como qualquer passeio pela Times Square pode comprovar. No ano passado, o governo americano concedeu 801 mil vistos a brasileiros, atrás apenas do México e da China. Até setembro, os vistos emitidos no Brasil cresceram 16% em relação ao ano passado, e o tempo médio de espera caiu dramaticamente (hoje é de cerca de dez dias entre a entrevista e a devolução do passaporte). Mas o objetivo, claro, é que a necessidade de visto seja simplesmente abolida. Nenhuma das duas campanhas tem uma posição firme sobre o assunto, mas é certo que as conversas avançaram durante a gestão Obama e continuarão a andar nessa direção, caso ele consiga a reeleição.
"Guerra cambial"
Numa entrevista recente, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que o regime cambial brasileiro é de "flutuação suja", um eufemismo bem pouco convincente para definir uma política que, na prática, vem mantendo o dólar num patamar estável desde março para facilitar a vida dos exportadores brasileiros. Sobre a tal "flutuação suja" brasileira, nenhuma das duas campanhas se manifestou oficialmente. Quando o mesmo tema é levantado sobre a China, o palavreado é duro. Romney prometeu classificar a China como um país "manipulador do câmbio". Na prática, isso permitiria que os Estados Unidos impusessem sobretaxas nas importações chinesas. Arvind Subramanian, do Peterson Institute, um centro de estudos econômicos de Washington, acredita que as palavras de Romney não se converterão em ação. "É retórica de campanha", diz Subramanian. "Se ela fosse adotada de fato, traria mais problemas que soluções, pois abriria uma nova frente de atrito com os chineses." O governo Obama tem sido mais cauteloso ao tratar dessa questão. O secretário do Tesouro, Timothy Geithner, já deu declarações favoráveis à recente valorização do renminbi, a moeda chinesa. "E não custa lembrar que o Fed, o banco central americano, é independente", diz o analista Chris-topher Sabatini. "Não há muito que o presidente possa fazer a respeito."
Comércio Exterior
Se, no campo da política, a expectativa é que haja pouca mudança, nos negócios a expectativa é diferente. Um dos planos do republicano Romney para fazer a economia pegar no tranco é ampliar os acordos de livre-comércio dos Estados Unidos. Num dos debates, Romney afirmou que a economia da América Latina é quase do tamanho da China e que os americanos ainda não "se aproveitaram dessa oportunidade". A matemática está certa, mas essa conta é muito mais complicada do que parece. A ideia de uma área de livre-comércio no continente existe desde os tempos de Bill Clinton, mas nunca saiu do papel (em boa parte por causa da oposição do presidente venezuelano, Hugo Chávez). Uma das ideias, diz o plano de governo de Romney, é tentar costurar os vários acertos bilaterais existentes – mas o Brasil não faz parte da lista de dez países da América Latina com parcerias formalizadas com os Estados Unidos.
"A verdade é que já temos acordos bilaterais com os países que desejam esse tipo de acordo", diz um assessor da campanha de Obama. Em outras palavras: do lado dos democratas, não existe muita razão para otimismo nesse departamento. É compreensível. São duas as disputas entre os países na Organização Mundial do Comércio, a OMC. Uma delas, referente aos subsídios do governo americano aos produtores de algodão, completou dez anos no mês de setembro. Nesse período, houve entendimentos e medidas compensatórias em favor do Brasil, mas leis em estudo no Congresso americano podem levar ao pedido de novas retaliações por parte do governo brasileiro. Sem que os agricultores brasileiros tenham portas abertas para competir nos Estados Unidos, e com a recente elevação dos impostos de importação anunciada em Brasília, o clima definitivamente não parece o mais propício para um acordo comercial.
Etanol
Desde a campanha passada, Obama vem colocando ênfase em fontes energéticas renováveis, e o etanol brasileiro tem um papel importante a cumprir nessa mudança. Existe hoje uma meta de que, nos próximos dez anos, cerca de 15 bilhões de litros de combustíveis limpos sejam misturados à gasolina vendida nos Estados Unidos. Isso significa um mercado praticamente garantido para os produtores brasileiros, que, desde o começo deste ano, já não enfrentam uma sobretarifa criada há três décadas para proteger a indústria americana que produz etanol de milho. O Partido Republicano, de Romney, é historicamente ligado à indústria do petróleo. Mesmo que ele não faça nenhuma mudança radical na regulamentação que obriga a mistura de etanol com a gasolina, o consenso é que Obama continuaria favorecendo as fontes limpas de energia, como a cana plantada no Brasil. Se a produção brasileira conseguiria aproveitar essa demanda, é uma incógnita. Em 2008, as exportações brasileiras foram de 1,5 bilhão de litros. No ano passado, o volume foi bem menor: 655 milhões de litros. A explicação tem duas partes, segundo Leticia Phillips, representante da União da Indústria de Cana-de-Açúcar, que congrega produtores brasileiros, nos Estados Unidos. A primeira é o aumento do consumo do combustível no Brasil. A segunda, a renovação e a expansão insuficientes das áreas de plantio. Antes da eleição de um novo presidente, há uma questão mais urgente. A atual exigência de mistura de etanol combustível (de cana ou de milho) pode cair por terra graças a um lobby que reúne produtores de alimentos e pelo menos seis governadores. Por quê? Por causa da mistura obrigatória de etanol com gasolina, o milho destinado à alimentação de bois, porcos e galinhas está ficando caro demais. A decisão deve sair neste mês. "Essa é hoje nossa principal batalha", diz Leticia Phillips.
Caças americanos
A novela da compra dos 36 caças para a Força Aérea Brasileira começou em 2007 e não há sinais no horizonte de que vá acabar tão cedo. Em julho foi assinada mais uma prorrogação no prazo-limite da licitação, que agora vai até o final do ano. Tanto a campanha de Romney quanto a de Obama devem continuar pressionando o governo brasileiro para que a Boeing seja escolhida, em vez da francesa Dassault ou da sueca Saab. Em jogo estão empregos, talvez o termo mais mencionado na campanha presidencial deste ano.
China
No ranking das palavras que mais saíram da boca de Obama e Romney, "China" seguiu de perto "emprego". No caso do republicano, as palavras foram sempre duras, mas por um motivo mais eleitoral do que geopolítico: Romney quer caracterizar a China como um ladrão de empregos – e de perspectivas – para os americanos. Obama preferiu manter a cautela e, em nenhum momento, falou em escancarar a guerra cambial com os chineses – o que não o impediu de entrar com uma ação na Organização Mundial do Comércio acusando os fabricantes chineses de autopeças de receber subsídios ilegais do governo. Talvez a questão mais importante, para americanos, chineses e também brasileiros, será o tom do diálogo entre o próximo ocupante da Casa Branca e a nova liderança chinesa. O presidente Hu Jintao deixará o cargo neste ano. A seu sucessor, Xi Jinping, caberá a tarefa de manter o ímpeto do milagre econômico chinês das últimas duas décadas. Se a retórica das campanhas for mantida e os Estados Unidos decidirem entrar em conflito com os chineses por causa de questões comerciais – o que todos consideram uma possibilidade muito remota -, mais uma brecha pode ser aberta para o governo brasileiro.