RENATA MARIZ
Com fardas imponentes e armas na cintura, eles são treinados para combater o crime, lutar em guerras, salvar gente em perigo. A missão nobre, o regime rigoroso de disciplina e uma legislação penal própria extremamente dura, porém, não têm livrado os militares do flagelo das drogas. É crescente o uso de bebida, maconha, pó e pedra na caserna e nos quartéis. No ano passado, 161 denúncias contra integrantes das Forças Armadas chegaram à Justiça Militar — uma média de 14 por mês. De janeiro a primeira quinzena de junho passado, foram 56.
O serviço de saúde do Exército encaminhou, de 2010 para cá, 42 usuários graves de crack para internação prolongada. Na Marinha, seis receberam tratamento. A Aeronáutica se recusou a passar informações sobre o assunto. Na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros do DF, o tema também é tratado com sigilo. Mas Paulo*, que é PM, e José*, bombeiro, aceitaram conversar com o Correio. Eles relataram o drama das drogas no mundo militar, as dificuldades e facilidades que a carteira diferenciada traz para um usuário e como estão tentando abandonar o vício.
Prestes a completar 20 anos de Justiça Militar, o ministro Olympio Pereira da Silva Junior, vice-presidente do Superior Tribunal Militar, é taxativo: "Os casos estão aumentando, principalmente com o crack. O que aparece no meio civil, aparece aqui dentro também, não tem jeito". Ele lembra que, embora praticamente todos os processos sejam de militares com pequenas quantidades de drogas, no Código Penal Militar não existe a figura do usuário. "0,01 grama ou 30 quilos é tudo crime, com reclusão de até cinco anos, podendo haver desligamento da instituição", explica.
A rigidez da legislação é criticada por Caroline Piloni, defensora pública da União que advoga em favor dos réus nos processos. "Enquanto o civil pego pela primeira vez com pequena quantidade de drogas recebe uma advertência, em virtude da nossa lei que traz uma dimensão de saúde pública, a legislação penal militar, de 1969, portanto da época da ditadura, não entende isso", lamenta. "Esses meninos, que estão cumprindo o serviço militar, carentes, de famílias desestruturadas, são tratados como criminosos, punidos e ainda expulsos em muitos casos."
Segundo a defensora, os casos de crack ganham contornos ainda mais graves. "Muitas vezes o militar simplesmente não tem condição física de trabalhar ou leva a droga para o quartel porque não dá conta de ficar sem ela", diz. Caroline não discorda, entretanto, de expulsão quando o usuário desempenha atividades que envolvam manuseio de armas ou segurança coletiva. "Mas sou contra a punição criminal. Até porque esses jovens processados, em geral, são os que lavam banheiro, cuidam de cavalos, fazem comida. A punição administrativa já seria suficiente."
*Nomes fictícios a pedido dos entrevistados
"Já deixei minha arma por droga na boca"
Da cerveja socialmente aos porres com bebida destilada, ainda nos primeiros tempos de bombeiro, passaram-se não mais que cinco anos. "Quando vi tinha me tornado um alcoólatra. Levava vodca para o quartel. Faltava serviço, os colegas iam me buscar em casa bêbado porque senão era deserção", conta José. A vontade de parar levou o brasiliense, hoje com 40 anos, a procurar ajuda. Mas, entre uma e outra recaída, ele conheceu a cocaína. Com ela, vieram as piores sensações. "Mania de perseguição, ciúme em excesso, alucinação, paranoia mesmo", conta.
O medo que ainda havia de perder o emprego foi se dissipando. "Eu usava cocaína dentro do quartel. Chegou uma hora em que eu pensei: "Se quiserem me reformar, dane-se. Vou usar droga até morrer"", lembra. Enquanto as perdas de José aumentavam — sem mulher, longe do filho, quebrado financeiramente —, sua noção de limite diminuía. "Já deixei minha arma por droga na boca. Vendi uma TV também. Guardava cocaína no carro, fui parado em blitz bêbado. Era só mostrar minha identificação militar que estava liberado", lembra.
A condição de militar, especialmente de uma instituição admirada por 87,7% dos brasileiros, segundo pesquisa recente da Universidade de São Paulo, também trazia dificuldades. "As pessoas veem a gente como um herói, como o que salva. Então, para os vizinhos, para os conhecidos, eu nunca fui o José, eu sempre era o bombeiro. Passei a ser o bombeiro que chegava doidão, o bombeiro drogado, bêbado. É difícil pedir ajuda", diz. Desde março sóbrio, o militar de músculos bem torneados e rosto bonito se mantém firme no tratamento. "Sou um bom profissional, sei que posso chegar a major", aposta José, com 23 anos na corporação.
"Passei cinco, oito dias usando crack direto"
Aos 18 anos, quando vestiu a farda da Polícia Militar do DF pela primeira vez, Paulo combatia a droga por convicção. Somente aos 30, para acompanhar a então mulher, passou para o outro lado. "Foram 10 anos usando cocaína, sem grandes prejuízos. Quando experimentei o crack, vi o fundo do poço. Em cinco meses, estava acabado", conta Paulo. Com faltas excessivas e sem condições de trabalhar, ele pediu ajuda ao comandante do quartel, que o encaminhou para o Centro de Assistência Social da PM do DF, chamado pela sigla Caso.
Hoje existem cerca de 70 policiais militares sendo tratados no Caso. A PM, por meio da assessoria de imprensa, afirmou que 12% da corporação são dependentes de álcool, segundo estudo feito em 2008. "Entretanto, novos levantamentos, ainda não concluídos, apontam para um percentual maior. Quanto ao uso de drogas ilícitas, tem sido cada vez mais diagnosticado, porém não há levantamento de sua prevalência na PMDF", completa a nota. Paulo não arrisca levantamentos, mas a experiência o leva uma conclusão grave: "A PM e o (Corpo de) Bombeiros estão doentes".
Pai de cinco filhos, o maranhense de 45 anos lembra com tristeza a época em que fumava a pedra. "Passei cinco, oito dias usando crack direto, sem querer saber de nada. É uma droga miserável. Foi preciso um baque grande, uma traição conjugal, para eu acordar", afirma. Mais de cinco meses sem consumir, participando de terapia individual e em grupo, além de sessões de musculação para combater a ansiedade, Paulo não se importa com os cochichos e olhares atravessados dos colegas. "Comentam: esse aí foi internado por causa de crack. Eu não ligo, o que importa é que estou limpo."
Três perguntas para Olympio Pereira da Silva Junior, vice-presidente do Superior Tribunal Militar
Por que no ambiente militar a punição para envolvimento com drogas é mais rigorosa?
São 11 verbos no imperativo, todos no mesmo artigo do Código Penal Militar. Então, não importa se o militar estava usando, vendendo ou dando gratuitamente a droga, o crime é o mesmo. Porque estamos falando de um crime de perigo iminente. Imagine um camarada com uma pistola .9mm ou um fuzil .762 e um bocado de droga na cabeça. Para o civil que for pego fumando ou vendendo em ambiente militar, aplica-se também o Código Militar, mas claro que isso é mais difícil de acontecer.
Colocar o militar na atividade de segurança pública, como os soldados que estão há mais de um ano e meio no Complexo do Alemão, pode piorar a situação?
A situação do soldado, em contato forte ali no ambiente, pode acabar favorecendo esse envolvimento com as drogas. Tanto é verdade que os militares que atuam naquela área são mandados de Juiz de Fora e de outros batalhões, porque, se você pega um militar do Rio, o risco é muito grande, tem droga de montão por lá. O problema é que esses soldados estão há muito tempo nessa atividade, não deveria ser assim.
Qual é o perfil dos militares que fazem uso de drogas?
Geralmente, é o militar de baixa patente. Costuma ser a meninada que muitas vezes já chega às Forças Armadas com os vícios de fora. Veja bem, não estou dizendo que não há oficiais, coronéis, gente de alta patente usuária de substâncias ilícitas. Provavelmente há. A diferença é que esses não são pegos, não são processados. São os mais jovens que levam a droga para dentro do quartel. E aí, nas revistas rotineiras em armários, nas roupas deles, sempre acontece de encontrarem. E cada vez com mais frequência.