Merval Pereira
O fenômeno da globalização continua sendo o centro das discussões, agora no seminário da Academia da Latinidade aqui em Pequim, realizado na Universidade Tsinghua — uma das melhores do mundo —, e um contraste interessante surgiu logo no primeiro dia de debates, com os analistas chineses tendo uma visão mais favorável do que a maioria dos ocidentais.
O professor Walter Mignolo, diretor do Centro de Estudos Globais e Humanidades da Universidade Duke e professor visitante na City University de Hong-Kong, tem uma visão negativa do fenômeno da globalização, que analisa em seu novo livro, “The darker side of Western modernity” (“O lado mais escuro da modernidade ocidental” em versão livre).
Ele vê no fenômeno a continuidade de uma tendência à lógica da colonização, que submete países periféricos aos critérios dominantes. Para Mignolo, ao contrário de países da África ou do Novo Mundo que foram colonizados diretamente, China e Japão mesmo assim não escaparam da “lógica da colonização”, tendo sido envolvidos pelo conceito de “modernidade”.
Mignolo vê na globalização só um instrumento dos neoliberais para tentar quebrar barreiras que atrapalham o livre-comércio, assim como conceitos como “mundo sem barreiras” e o fim do Estado-Nação seriam maneiras de continuar exercendo a “lógica da colonização”.
Os estudiosos chineses que falaram ontem no seminário “Humanidade e diferença na era global” têm uma visão mais otimista dos efeitos da globalização.
Wang Ning, professor de Literatura Comparada na Universidade Tsinghua, fez um interessante ensaio sobre a transposição cultural na construção de modernidades multicêntricas, afirmando que a China foi dos países na última década que tiveram mais benefícios concretos com a globalização, não apenas no aspecto econômico.
A cultura chinesa, disse Ning, passou da periferia para o centro obtendo cada vez mais aceitação. A maneira chinesa de desenvolvimento e modernização chamou a atenção do mundo.
Walter Mignolo havia descrito em sua palestra o mecanismo de dominação posto em prática pelo colonialismo, que transforma os colonizados em “menos humanos” para que possam ser explorados.
O professor Wang Ning admitiu que no passado, aos olhos ocidentais, a China e os chineses eram inferiores, mas, para isso, e diz que contribuíram descrições distorcidas e traduções, tanto quanto o preconceito cultural.
Hoje, graças ao crescimento econômico, a China aparece com outra dimensão no imaginário ocidental. No entanto, o professor Wang Ning denunciou na palestra o desequilíbrio existente na divulgação cultural, com um maior número de traduções de obras ocidentais na China do que ao contrário.
O professor defende que haja um movimento para traduzir a essência da cultura chinesa, seu pensamento e suas teorias, no maior número possível de idiomas ocidentais, para “desconstruir” o que classificou de eurocentrismo ou “ocidentecentrismo” cultural.
No entanto, ele não considera necessária uma campanha para “descolonizar” a cultura chinesa, mesmo que o inglês tenha se transformado no idioma preponderante, utilizado para a publicação de todos os estudos científicos.
Walter Mignolo havia falado antes que o mundo vivia o momento da “descolonização” e da “desconstrução” de um paradigma ocidental para dar lugar à emergência de novas culturas, especialmente a dos Brics — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Uma campanha como essa, de “descolonização”, traria o perigo de isolar a China da comunidade internacional, disse Wang Ning, que, no entanto, defende que a tradução seja usada como ferramenta de divulgação do espírito da cultura chinesa pelo mundo.
Ele destacou que, apesar da mudança, a cultura chinesa continua numa posição inferior ao que merece — uma cultura “profunda no conteúdo e esplêndida e rica na tradição” —, não tendo seu valor reconhecido pela maioria dos ocidentais.
Mesmo os que têm conhecimento dela não chegam a compreender seus aspectos mais profundos. Caberia às traduções levar esse espírito às outras culturas, da mesma maneira que as traduções do passado, feitas de maneira superficial, contribuíram para distorcer a imagem da cultura chinesa.
Também He Xirong, a vice-presidente do Instituto de Filosofia da Academia de Ciências de Xangai, abordou a questão da cultura chinesa dentro do quadro da modernidade.
Partindo do conceito de Foucault de que modernidade “é uma atitude” relacionada a uma maneira de agir e pensar, ela disse que com a globalização toda nação está tendo que encarar o desafio de transformar sua maneira de pensar.
Mudanças radicais foram feitas na maneira de viver das pessoas com o desenvolvimento das ciências e da tecnologia, em especial da tecnologia da informação.
Como ao mesmo tempo também ocorreu a mudança de maneira de pensar, com a introdução da interação multidimensional, isso significa, diz Xirong, que as pessoas terão que encontrar equilíbrio entre integração e análise; lógica e intuição.
Para ela, a discussão da cultura asiática ganha outra dimensão diante da nova realidade, com muitos no Ocidente refletindo sobre sua própria cultura e buscando novas fontes no Oriente. O papel dos cidadãos asiáticos seria o de valorizar suas culturas, pois somente assim, diz ela, uma verdadeira harmonia, com intercâmbio cultural, poderia ser alcançada.
Como se vê, os chineses estão preocupados, neste estágio de seu desenvolvimento, com a disseminação de sua cultura pelo mundo, como parte imprescindível do projeto de se transformar em nação que possa se colocar como protagonista na estrutura geopolítica de poder que está sendo redesenhada.
Ao contrário do pensamento ocidental de esquerda, e de setores de nossa diplomacia, os pensadores chineses de academias relevantes como a Universidade de Tsinghua ou a Academia de Ciências Sociais de Xangai não querem se confrontar com o Ocidente, muito menos com os Estados Unidos. Querem é aproveitar a globalização para ocupar seu espaço no mundo.