Nas últimas duas décadas, a Defesa Nacional não recebeu do governo federal a devida atenção nem recursos públicos adequados ao fortalecimento da soberania nacional, embora o País tenha conquistado nesse mesmo período relevante importância estratégica no contexto mundial. Com muito atraso, portanto, a Defesa volta a fazer parte da pauta da agenda da política brasileira. A Lei 12.598 de 2012, recentemente aprovada, é um instrumento de grande alcance para resgatar a competitividade do País nesse campo e revitalizar a Base industrial de Defesa, um recomeço que ainda carece da adoção de importantes medidas adicionais.
A busca por autonomia tecnológica em Defesa não é de hoje no Brasil. Data dos anos 1960, período em que foram adotadas importantes medidas para consolidar a Base Industrial de Defesa (BID) que, impulsionada por essas ações, conheceu a sua melhor época durante os anos seguintes, até o início da década de 1990. O País ocupou então a 8ª posição no ranking do mercado internacional nesse setor e contava com uma indústria de grande porte que abastecia o mercado interno, liderada pela ENGESA, a EMBRAER e a AVIBRAS.
Com o fim do governo de exceção e o restabelecimento do sistema democrático brasileiro, a sociedade continuou conhecendo novos avanços socioeconômicos. No campo da Defesa Nacional, entretanto, o País passou a caminhar para trás. Inexplicavelmente, a União diminuiu as compras de equipamentos fundamentais ao fortalecimento da missão constitucional das Forças Armadas. Com menos investimentos, ocorreu a grave perda de competitividade do parque nacional de defesa.
O desmantelamento do setor produtivo originou a falência da Engesa em 1993, a dramática situação vivida pela AVIBRAS e EMBRAER e o consequente desaparecimento do mercado de inúmeras empresas que orbitavam ao redor das líderes industriais, praticamente soterrando a capacidade produtiva do País nessa área, refletindo negativamente no atendimento até mesmo das necessidades mais básicas das Forças Armadas – fragilizando assim a própria soberania nacional, num momento em que o mundo começava a ser assaltado por uma série de perturbações geopolíticas de motivação ideológica radical que culminaram em atentados terroristas.
A falta de atenção à Defesa Nacional debilitou a BID e o contingenciamento orçamentário acabou de sucatear o pouco que restara na estrutura material das Forças Armadas (FFAA), ocasionando o caos na indústria, com as sucessivas massas de desempregados originadas desse processo. Os equipamentos de Defesa produzidos pela indústria estrangeira e necessários às FFAA brasileiras passaram a ser priorizados, em razão de seu menor custo (em função da baixa tributação [1] que sofrem comparativamente ao similar brasileiro).
Para ligeira ideia da dramática situação que prevaleceu no País, em razão de todo o processo de desagregação da indústria setorial, atualmente apenas uma das 100 maiores empresas de Defesa do mundo é brasileira, um número baixo quando comparado ao mesmo segmento da Índia ou da Coréia do Sul, por exemplo [2]; 70% do faturamento da Indústria de Defesa do Brasil têm como origem as compras feitas pelo Ministério da Defesa (MD) [ 3 ], exibindo visível perda de competitividade do setor no mercado mundial. Mesmo assim, apenas 10% das Indústrias de Defesa contratadas pelo MD entre 2008 e 2010 forneceram por três anos consecutivos [ 4 ], expondo a inconstância das vendas mesmo para seu principal cliente – o Estado.
Dentre as dificuldades que a BID enfrentou neste período na busca para retomar seu nível anterior de atividade estão altas cargas tributárias, altos juros, custo elevado de mão de- obra, logística custosa, infraestrutura deficiente, energia a preço desproporcional [5], burocracia lenta [ 6 ], Real sobrevalorizado, descontinuidade das compras públicas, falta de planejamento em longo prazo e contingenciamentos orçamentários [7].
Foi apenas com as publicações da Política de Defesa Nacional (PDN) e da Política Nacional da Indústria de Defesa (PNID) em 2005, da Estratégia Nacional de Defesa (END) em 2008 e da MP 544 em 2011 que o tema voltou a ocupar seu espaço na agenda política nacional, expresso principalmente nos planos de reaparelhamento das Forças Armadas e de reestruturação da BID – processo acompanhado e incentivado desde o começo pelo COMDEFESA
Em todas estas publicações mostra-se presente o desejo de desenvolver a Segurança Nacional através da obtenção de autonomia e da independência em matéria de Defesa, sendo a capacidade de fornecimento da BID ao governo um dos pontos centrais dessa meta.
A Estratégia Nacional de Defesa (END), um documento dos mais significativos do Estado no assunto, foi concebida com base em três eixos estruturantes:
(I) orientação, organização e capacitação material das Forças Armadas;
(II) reorganização da Base Industrial de Defesa com ênfase em desenvolvimento tecnológico; e
(III) composição do efetivo das FFAA.
Consciente de que o Estado é, em quase todos os países, o principal comprador das demandas produzidas pela Indústria de Defesa [8], o Executivo, por fim, identificou as principais barreiras da BID e buscou possíveis soluções de superação de tais entraves. Na identificação dos obstáculos, o governo demonstra estar alinhado com a Indústria de Defesa ao reconhecer que a “dualidade de tratamento tributário entre o produto de defesa (PRODE) fabricado no país e o adquirido no exterior, com excessiva carga tributária sobre o nacional (…) ocasiona aquisições no exterior, com a geração de indesejável dependência externa”(9)
Para resolver os diversos óbices de sua indústria, os documentos anteriormente citados defendem a isonomia tributária da BID frente aos produtos importados, a expansão da participação desta nos mercados interno e externo, o fortalecimento da cadeia produtiva no Brasil, a ampliação das compras estatais, a expansão e adequação de financiamentos e a promoção internacional da produção da BID.
Os principais mecanismos propostos para solucionar estas questões foram: (I) o Regime Especial Tributário para a Indústria de Defesa (RETID), cuja principal finalidade é eliminar a distorção de impostos entre o PRODE nacional e o importado, criando a isonomia para a indústria nacional concorrer em pé de igualdade com as estrangeiras; (II) o estabelecimento de regras claras de prioridade à BID nos editais realizados pelo MD; e (III) um aporte orçamentário para o reaparelhamento das FFAA, que naturalmente resulta em maior demanda para a BID.
Ao analisar o RETID durante seminário em Outubro de 2011, o presidente do BNDES Luciano Coutinho mostrou estimativas que indicam que o Regime Especial pode até duplicar os empregos diretos e indiretos da BID, passando dos atuais 25 mil diretos e 100 mil indiretos para 50 e 200 mil – com criação substancial de 125 mil novas vagas. Isto ocorreria através da combinação das medidas do RETID com o contexto de das Forças Armadas, da ordem de R$60 bilhões apenas na corrente década [10].
Publicada em Setembro de 2009, a MP544 criou o RETID e dispôs sobre algumas medidas de incentivo à BID, tendo sido transformada com poucas alterações na Lei 12.598, de 22 de Março de 2012, e trazendo diversos pontos positivos à indústria, como:
a) Organizar e tipificar o mercado de defesa ao estabelecer os termos técnicos Produto de Defesa (PRODE), Produto Estratégico de Defesa (PED), Empresa Estratégica de Defesa (EED) e Sistema de Defesa (SD);
b) Iniciar processo de criação de base de dados das empresas envolvidas na BID;
c) Possibilitar editais exclusivos para compra de PRODE e SD de produção nacional [11];
d) Possibilitar editais direcionados exclusivamente para as EED quando da licitação para compra de PED [12];
e) Criar regras de continuidade produtiva e estabilidade orçamentária, diminuindo as instabilidades que prejudicam o setor;
f) Os editais deverão passar a esclarecer planos de compensação tecnológica / industrial / comercial que gerem ganhos para a BID quando das importações [13];
g) O RETID beneficia parte da BID ao desonerar aquisições internas e importações das EED e de seus fornecedores;
h) Desonerar também as exportações das EED, aumentando a competitividade internacional;
i) Permitir o estabelecimento de uma parcela mínima de agregação nacional aos produtos importados pelo MD.
É importante ressaltar que as beneficiárias da desoneração [ 14 ] do RETID são as EED, empresas que participem do desenvolvimento, produção e/ou manutenção dos PED – produtos de defesa que por seu conteúdo tecnológico, dificuldade de obtenção ou sua imprescindibilidade são estratégicos para a nação -, como recursos bélicos, navais, aeroespaciais, serviços técnicos especializados e equipamentos para a área de inteligência. As empresas preponderantemente fornecedoras de EED também serão desoneradas.
Contudo, do modo como foi redigido, o RETID desonera apenas as aquisições nacionais entre empresas, excluindo a venda final e mais vultosa, último e principal elo da cadeia de produção: a das empresas para o MD. Sendo o Estado o principal cliente da BID, esta oneração é a mais significativa possível em todo o setor.
A permanência desta tributação contrasta com o que está expresso nos diversos decretos citados (e na Lei 8.666 [15]), já que com ela os produtos nacionais continuam mais onerados. Em outras palavras, o RETID mantém a vantagem competitiva aos importados isentos de Imposto de Importação e não fornece a isonomia devida à indústria nacional, essencial para o seu desenvolvimento.
O motivo que pode ter levado a Lei 12.958 a ser constituída deste modo é a ideia de que, caso o RETID desonerasse as vendas finais para o MD, a BID seria melhor beneficiada à custa de massiva renúncia fiscal por parte da União. Porém, esta formulação se apoia em duas premissas ilusórias; a primeira é a de que o RETID é um benefício especial à BID, ideia equivocada visto que o estabelecimento de tratamento tributário isonômico para remover uma desvantagem competitiva instaurada anteriormente por políticas de governo não constitui benefício no sentido usual da palavra.
A segunda se refere à suposta renúncia fiscal por parte da União, infundada por diversos motivos: como a única venda tributada será a feita ao MD, este pagará sozinho os impostos, em valor exatamente igual ao que recolherá – e, assim sendo, a tributação constitui mero passeio desnecessário de recursos que tem idêntica origem e destino, não gerando receitas ao governo e apenas perpetuando as condições desfavoráveis à indústria nacional.
Na verdade, a resultante manutenção da vantagem competitiva das importações acaba por gerar menor receita ao governo, visto que estas não são tributadas e não influem na criação de empregos no País, no aquecimento da economia, na soma das riquezas ou no desenvolvimento da nação.
Existe ainda o argumento de que os produtos nacionais não serão prejudicados nas licitações pois o orçamento das Forças Armadas contempla recursos para o pagamento dos tributos. Sabendo, porém, que não há destinação pré-fixada no orçamento, tal assertiva se mostra contrária às políticas de governo, à END e à racionalidade políticoeconômica que busca desenvolver o País.
Há que lembrar ainda que, devido à nãoobrigatoriedade de preferência aos produtos brasileiros nos editais, a continuidade da oneração nas vendas ao MD desencoraja o uso desse mecanismo, de modo que a importação de produtos continua parecendo boa opção para que as Forças Armadas aproveitem seu orçamento com maior eficácia.
O que se pode esperar da combinação destas questões é uma evolução da BID aquém das expectativas, o que resulta numa situação especialmente delicada quando a relacionamos à exigência dos 70% [16] para as fornecedoras preponderantes das EED: com uma atividade menor do setor de Defesa, as indústrias vão precisar encontrar outras opções para se manterem competitivas e terão maior dificuldade para atingir este pré-requisito.
Quando analisada através de uma perspectiva de longo prazo, esta disposição do RETID sobre os 70% revela outra dissonância em relação aos decretos anteriores do governo: ao se exigir que ¾ do faturamento das fornecedoras venham exclusivamente do setor de Defesa, inibe-se parcialmente o desenvolvimento de tecnologia dual [ 17 ], algo explicitamente descrito como positivo no PDN: “O desenvolvimento da ID, incluindo o domínio de tecnologias de uso dual, é fundamental para o abastecimento seguro e previsível de materiais e serviços de defesa” [18].
Tal tecnologia é, além disso, uma necessidade do setor para aumentar sua competitividade e criar defesas naturais aos contingenciamentos de gastos e às imprevisibilidades, além de possibilitar maior spin-off para a área civil.
Como se pode notar, a combinação de diversos detalhes do RETID resulta na inocuidade do Regime Especial como um todo, que perde as suas funções essenciais: catalisar a reestruturação e a revitalização da BID, promover a isonomia entre a indústria nacional e a estrangeira, impulsionar o reaparelhamento das Forças Armadas e gerar ganhos à nação e à sociedade.
Considerando ainda o fato de que a tributação nas vendas ao MD não gera recurso algum para o País, estas disposições específicas do RETID não parecem se justificar ou gerar quaisquer benefícios.
Por todos os fatores expostos e por sua interrelação, o COMDEFESA acredita que é apenas com a isenção de impostos na venda para o MD que o RETID atingirá plenamente seus objetivos, pois além de promover a isonomia da BID frente às importações, proporcionaria à mesma o início de um ciclo virtuoso:
Com a esperada queda nos preços [ 19 ], o orçamento do MD ganharia maior poder de compra e aumentaria a demanda, aquecendo a indústria e gerando empregos. O aumento da escala de produção leva o custo médio a cair e permite o investimento em P&D, que aprimora a tecnologia e assim reforça novamente o ciclo.
Apenas assim é possível atingir as metas de aumentar a soberania via redução das dependências externas, de revitalizar e reestruturar a Indústria Nacional de Defesa, baratear e otimizar o reaparelhamento das Forças Armadas, gerar avanços tecnológicos que se refletirão na sociedade, empregar e aquecer produtivamente a economia.
Notas
1 Embora isentos de Imposto de Importação e similares, em parte dos casos há a cobrança de impostos por parte dos países de origem.
2 De acordo com The SIPRI Top 100 arms-producing companies, 2009 – publicado no SIPRI Yearbook 2011.
3 De acordo com dados do IPEA.
4 Idem
5 O preço da energia no Brasil é o segundo maior do mundo. Para mais informações sobre o custo de energia no País, conferir a campanha da FIESP: Energia a Preço Justo (www.energiaaprecojusto.com.br)
6 Segundo a publicação anual Doing Business 2011 do Banco Mundial, que analisa o ambiente de negócios em 183 países, o Brasil é o 8º País com mais burocracia para se abrir empresas.
7 Para mais informações sobre o custo Brasil, ler entrevista de Paulo Skaf, publicada no site da FIESP no dia 03/04/12.
8 Especificamente no setor de Defesa, a atuação do Governo é essencial: além de ser o principal cliente e de suas compras darem credibilidade às exportações, os governos também são responsáveis por acordos diplomáticos e/ou estratégicos para promover as exportações dos produtos de sua BID.
9 Estratégia Nacional de Defesa (END) – 2008.
10 COUTINHO, Luciano. As oportunidades da indústria de defesa e a segurança para o Brasil e a região do ABC. São Bernardo do Campo, 20 de Outubro de 2011.
11 Embora crie a possibilidade, não a torna obrigatória.
12 Idem
13 Não fixa bases mínimas para as compensações.
14 A desoneração fiscal em questão se refere à isenção de PIS, COFINS, IPI e II, quando aplicáveis.
15 Ao dispor sobre as licitações da União, a Lei 8.666/93 estabelece que todos os participantes devem ter igualdades de condições
16 Para se habilitar como fornecedora preponderante de EEDs, 70% do faturamento total da empresa deve vir de EEDs, Exportações, Ministério da Defesa ou outras fornecedoras igualmente habilitadas no RETID
17 O conceito de tecnologia dual se refere à todos os sistemas, equipamentos e produtos que possam ser destinados tanto ao uso militar quanto ao civil – caso do conhecido sistema de GPS
18. Política de Defesa Nacional (PDN) – 2005
19 De acordo com COELHO, José Ricardo Roriz, Diretor Titular do DECOMTEC – Departamento de Competitividade e Tecnologia da FIESP – em entrevista ao Valor Econômico, 40% do preço dos industrializados nacionais se devem a impostos.
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