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WILLIAM SHAKESPEARE Gasta uma Manhã Inteira Tentando Entender o BRASIL

Texto publicado com permissão do autor
 

WILLIAM SHAKESPEARE Gasta uma Manhã Inteira
Tentando Entender o BRASIL


Bolivar Lamounier


– Meu caro William, agora eu tenho certeza, você atirou no que viu e acertou no que não viu.

– Como assim?

– Aquele negócio que você dizia, como era mesmo? Que entre o céu e a terra, há mais coisas estranhas do que suspeita a nossa vã filosofia.

– Sim, sim, quer dizer, não, não. Não entendi o seu reparo.

– Acontece que, entre o céu e a terra, tem muito, mas MUITO mais coisas estranhas do que você e sua vã filosofia suspeitavam naquela época.

– Eu continuo não entendendo. Eu não disse quantas coisas estranhas havia, eu disse que havia um monte, uma quantidade infinita…

– Certo, certo. Até aí você está certo. Mas a sua sentença é reflexiva. Não denota espanto. Você só atirou no que estava vendo, ou no que queria ver.

– Bom, vá lá. É uma “leitura”, para usar essa expressão meio afrescalhada que inventaram agora.Sou todo ouvidos. Me conte os espantos que está insinuando.

– Tudo começou quando eles chegaram à cidade…

– Hi, Caracas, vai começar desse jeito? Subliteratura de suspense?

– Não, não, muito pelo contrário; suspense nenhum. Eles chegaram, imagine, disfarçados de anjos. Era pra não dar bandeira. E atrás deles veio mais um monte de gente que não entendia do que se tratava e, pelo sim pelo não, resolveu se comportar como anjo. Se comportar não é bem o termo, não é? Resolveu fazer cara de anjo. Imitar a turma da frente.

– Tá, tá. Mas quem eram “eles”? Você começa uma história sem o “dramatis personae”? Nunca vi isso.

– Já te explico. Num instante você vai ver. Eles chegaram disfarçados de anjo e dizendo que iam mudar tudo.

– Mudar para melhor ou para pior?

– Para melhor, claro.

– OK, agora entendi. Aposto que sua história é uma “releitura” (argh!) do Savonarola.

– Olha, você não está totalmente errado. Um certo fanatismo existia mesmo. Mas é uma história moderna, sem,sem…

– Sem retrato e sem bilhete?

– KKKK. Boa. Não, sem fogueira. Pelo menos por enquanto.

– Mas aí, quando eles chegaram, as coisas estranhas começaram a acontecer. Uma série interminável.

– De cara eles tomaram o controle de alguns bairros, e logo depois a própria prefeitura. E mal a haviam tomado – muitos ainda em pele de cordeiro…

– Pu…Cordeiro ou anjo, cara? Tem que padronizar a linguagem, assim não dá.

– OK, anjo, anjo. Muitos ainda em pele de anjo e, pimba, flagram um bicheiro se reunindo com o subchefe, lá no palácio, quero dizer, na própria prefeitura.

– Vem cá, meu chapa, você fez pelo menos um mestrado em literatura? Eu, William Shakespeare, o Bardo do Avon, vou ter que aguentar uma historinha de bicheiro sub…, sub…, como direi, tratando de algum negócio com o subchefe?

– Não, Bill, calma. Posso te chamar de Bill, não posso? Os tempos agora são outros, se você se apresentar por aí como “bardo”, ninguém vai te entender. Diga que é roqueiro, funqueiro, um negócio assim. Mas vou deixar o bicheiro para trás para não perdermos tempo. Estamos chegando a um ponto importante. Eles escantearam um cara e aí você já viu, não é, o cara apareceu lá na prefeitura e pagou geral. Rodou a baiana. Chutou tudo quanto era balde.

– Historinha mixa, essa sua, hein? Escantearam um cara e ele pagou geral. E aí, fizeram o que com ele? O cadáver apareceu boiando no rio? Tem rio nessa cidade?

– Cadáver nada. Deu o maior fuzuê. O enredo é o de sempre, não preciso recontá-lo ao Bardo do Avon. Corrupção, meu lindo. Corrupção da grossa. Você queria que fosse o quê?

– Uái, sei lá. Não dá para escalar uma Lady Macbeth na ponta esquerda não?

– Dá não, dá não. Você já vai entender. Minha história se passa em dois níveis e dois momentos do tempo…

– Ai Ca…racas! James Joyce? Dá para simplificar um pouco ?

– No fundo, é muito simples. No primeiro momento, como eu estava para explicar quando você…No primeiro momento, há um nível abstrato, o da corrupção, que eu não preciso recapitular. Grana, compra de Members of Parliament, projeto de permanência no poder etc. Mas tem o outro nível, como é que vou chamá-lo, espera aí…

– Oh meu Deus, como o estudo faz falta. Se um é abstrato, o outro é concreto, não é não, cara?

– Sim, sim…Sim e não. O outro é fenomenológico. Eu quero te contar o concreto por meio de algumas manifestações visíveis, que podemos apreender sem mediações, entendeu? Manifestações do primeiro grau, se assim o posso dizer.

– Zu den Sachen selbst: “às próprias coisas ». Sim, meu irmão, eu li o meu Husserl. Vai em frente.

– Manifestações imediatas e, me apresso a acrescentar: supersaborosas. Os moradores começaram a descobrir que o cara escanteado tinha mesmo mostrado o mapa da mina. E que mina! Era só dar um chutinho, revirar um pouco a terra e apareciam pepitas e mais pepitas.

– Ah ah, até que enfim uma coisa interessante.

– Foi aí que o sub…

– Aquele que se reunia com o bicheiro?

– Não, outro, abaixo dele.

– Porra, então padroniza. Se é abaixo do sub, é o sub do sub.

– Pois então, primeiro os moradores descobriram que esse subdosub assinava promissórias e cheques sem saber do que se tratava…

– Mas e daí, cara? Os sheiks do petróleo fazem isso na Europa o tempo todo. Você se lembra da época áurea da Argentina? Em Paris havia um ditado: “riche comme un Argentin”, rico como um argentino. Mas por que um sheik hipermilionário haveria de assinar uma promissória? Tinha torrado tudo com mulher? Jogo? Impossível…

– Exatamente, Bill. Exatamente. Esse é o busílis. De sheik o subdosub não tinha nada. Não tinha onde cair morto. Era dirigente partidário, do partido dos trabalhadores. Assinava empréstimos tomados pelo partido, compreende? Mas vez por outra aparecia um cheque voando e ele dizia que não era com ele. Cheque, que cheque? Tira esse cheque daí! Mas era com ele mesmo…

– Put…, cara, eu acho que você resvalou de novo para o trivial, sabe? Sua história está piorando de novo. Se o cara assina pelo partido e diz que não assinou, ou que não sabia o que assinou, qual é o mistério? Era prá lá de incompetente, ou estava roubando, ou as duas coisas. Então tudo bem, esse aí já foi, apareceu boiando no rio, certo? E você não disse que é um partido de trabalhadores? Nesse tipo de partido volta e meia tem cadáver boiando; se for intelectual então…veja lá no Lenin, O Estado e a Revolução, bem no finalzinho.

– Que nada, Bill, que nada…Mas eu vejo que você está impaciente, vou saltar alguns pontos. Conversa vai, conversa vem,você sabe o que que acontece? O tal banco começa a entregar pacotaços de dinheiro para mulheres de MPs. Pacotaços mesmo: 300, 400 mil reais a cada uma, de cada vez…

– ???

– …de cada vez, mas prestenção, cara, controla esse seu humor horroroso de inglês: pacotaços de 400 mil EM ESPÉCIE, está entendendo? EM ESPÉCIE !!!

– Porra, cara, essa sua história não fica de pé não, viu? Arranja outra. Toda história política que se preza tem que ter corruptos, isso é óbvio. É o beabá. Mas corrupto burro, não adianta, compreende? Corrupto burro é roubado por outro corrupto ou vai para a cadeia antes do início da peça. Não dá. Você já inventou um cara, sei lá, um sub de não sei quantos subs, que assinava promissória sem ler. Agora me inventa umas mulheres que pegam 250 mil dólares na boca do caixa? Devem ser umas piradas! Com certeza foram assaltadas já no estacionamento, não é? Elas nunca ouviram falar em cartão de crédito não? E precisavam desse cash todo pra quê, pro supermercado?

– Há, há, gostei, gostei. Vá matutando essa que eu vou pular pra outra; afinal cabeça de bagre, perdão, cabeça de bardo também precisa trabalhar um pouco. Vou te contar a do cara poderosíssimo que nem jardim em casa tinha, morava em apartamento, e mesmo assim se encalacrou com um jardineiro…

– Elementar, Watson: no meio disso aí tem mulher. Nem precisa continuar. Me conta só mais uma que eu estou ficando aflito. Suas histórias são muito ruins, é tudo sobre corrupção e mulher e só dá cara burro. Preciso pegar o próximo trem para Avon.

– Tá. Nessa altura, o poderoso…

– O poderoso? Você então vai falar do sub do cara que se encalacrou com o jardineiro, certo? Ele era “poderosíssimo”, esse agora é “poderoso”, então é sub. Tudo bem, vai em frente.

– Não, não, desculpe. Muda a ordem. Poderosíssimo é o de agora. O prefeito. Nessa altura da história, como comecei a dizer, ele teve uma ideia fantástica. Resolveu colocar uma faxineira em seu próprio lugar. Deu pra entender? Largou a prefeitura e deu um jeito de pôr uma faxineira como prefeita. Não é o máximo?

– O máximo? Você chama isso de “máximo”? Chããão prá você. É o máximo do lugar comum, isso sim. Se era um partido de trabalhadores, pelo menos um trabalhador ou uma trabalhadora eles tinham que botar lá em cima, qual é o mistério? Isso acontece em todo partido de trabalhadores. Não dá prá dar bandeira o tempo todo prá cima de todo mundo. Vem cá, rapidinho: só me explique aquela merda do segundo momento do tempo, essa eu não entendi direito e não posso perder o trem que sai agora às 11 horas.

– Ha ha, agora é a pièce de resistance, você não vai acreditar. Agora o chefão, morou, o super dos supers, o poderosíssimo, está querendo dar uma de Stalin. Quer dizer que foi tudo sacanagem da imprensa, entendeu? “Atenção, atenção, meus concidadãos e concidadoas: mensalão é feito Minas Gerais, não há mais. Nunca ocorreu, é finita, the end, Kaput”. Ou seja, ele quer deletar a história toda.

– Deletar a história toda? Pois faz ele muito bem!!! Finalmente, alguém diz coisa com coisa. Esse é um gênio. Você quer saber, meu amigo, esse aí é o cara. KKKKKKK. Mas, com licença, vou correr se não eu perco o trem.

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