Devido aos constantes bombardeios russos, milhares de pessoas na cidade sitiada de Mariupol tiveram que se esconder em porões desde o início da guerra na Ucrânia. De acordo com informações de Kiev, 95% da cidade estão destruídos.
A DW conseguiu contatar três residentes de Mariupol. Os três, que não se conhecem, conseguiram sair da cidade, que fica na região de Donbass, no leste ucraniano. Mas, para isso, tiveram que passar pelos chamados campos de triagem organizados pelos militares russos − campos onde são selecionados ideologicamente antes de serem deportados para a Rússia.
Campos do tipo foram estabelecidos pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, para localizar "suspeitos de traição" entre os soldados que retornavam do conflito.
O assessor do prefeito de Mariupol, Petro Andryushchenko, disse à mídia ucraniana que agora existem quatro campos desse tipo em torno da cidade. Os nomes dos entrevistados pela DW foram alterados por razões de segurança.
"Escreva o que lhe é dito e não faça perguntas"
Dmitry, de 31 anos, deixou Mariupol em 21 de março com a esposa e seu bebê.
"Nos primeiros dias da guerra, a rede telefônica caiu e não tínhamos nenhuma informação. A partir de 8 de março, nos refugiamos no porão e por volta de 15 de março soldados inimigos apareceram em nossa casa. Eles disseram ser possível uma evacuação para a chamada 'República Popular de Donetsk'.
Mas essa evacuação foi bastante estranha: as pessoas fugiram sob fogo, o caos era total. Caminhamos cerca de 8 quilômetros e após quatro horas finalmente pudemos passar pelo posto de controle. Todos os homens tiveram que ficar nus da cintura para cima.
Documentos foram controlados e pertences, revistados. Depois fomos levados de ônibus para uma escola em Novoazovsk. Três dias mais tarde, deveríamos ser levados à força para algum lugar para triagem e depois para a Rússia, o que definitivamente não queríamos. Duas semanas depois, fomos informados por amigos de que no vilarejo de Besymyannoye poderíamos fazer essa verificação por conta própria.
Ela ocorreu em três etapas. Na primeira tenda, um soldado exigiu que eu me despisse, ficando só de cueca. Ele procurou por tatuagens e armas. Depois ele verificou todos os meus contatos e fotos no celular. E perguntou: 'Onde você morava e trabalhava? Você conhece alguém do regimento Azov? O que você acha das políticas russa e ucraniana?' Na segunda tenda, eles controlaram novamente meu telefone, pegaram minhas impressões digitais e tiraram fotos.
A parte mais desagradável foi a última etapa, na terceira tenda. Um soldado me disse para escrever uma declaração de acordo com um modelo. Ali dizia que eu conhecia algum artigo da Constituição da chamada 'República Popular de Donetsk'.
Quando perguntei sobre o conteúdo do artigo, me disseram: 'Escreva o que lhe é ditado e não faça perguntas desnecessárias.' Daí me perguntaram sobre meu local de trabalho e minha atitude em relação à Rússia, e se eu tinha conhecidos no Exército ucraniano. Eu escrevi minhas respostas na declaração.
Tudo correu bem, talvez porque eu tenha respondido 'corretamente'. Ouvi gritos e insultos contra os homens que perguntavam por que a Rússia havia invadido [a Ucrânia], destruído suas casas e suas vidas.
Finalmente recebi um pedaço de papel confirmando que eu havia concluído a triagem. Isso me permitiu permanecer no território da chamada 'República Popular de Donetsk' e entrar na Rússia. Por fim, um motorista particular nos levou de Donetsk para a Polônia via Rússia.
Na fronteira russa, vi folhetos com os dizeres 'O Extremo Oriente da Rússia está esperando por você'. Ouvi de pessoas que quem aceitasse a oferta receberia 10.000 rublos e algum tipo de emprego. Finalmente, conseguimos atravessar a fronteira entre Rússia e Letônia e respiramos aliviados. Agora estamos na Polônia e queremos prosseguir até amigos na Áustria."
"Tive muito medo de que não me deixassem sair"
A jornalista Anna deixou Mariupol em 24 de março com o marido e o filho.
"Depois de passar dias no porão, no dia 24 de março decidimos descobrir como escapar. Encontramos um soldado com uma faixa branca no braço. Ele disse onde ficava o ponto de evacuação. Um ônibus nos levou para Volodarsk e de lá para Donetsk, onde fomos abrigados em uma escola. Meu marido teve que se despir, eles procuravam tatuagens e armas.
Ele teve que informar seu local de trabalho e se era contra a Rússia. Perguntaram-me se o diretor da minha emissora de TV tinha opiniões pró-Ucrânia e se ele nos forçou a falar mal da Rússia.
Tive que dar os números de todos os meus colegas de trabalho, explicar minha posição política, em que língua apresentava os programas e que língua falavam meus convidados.
Quando eu já estava viajando há cerca de uma hora em direção à fronteira russa, os mesmos militares me tiraram do ônibus novamente. Tive muito medo de que não me deixassem sair. Depois me fizeram mais perguntas sobre meus conhecidos e copiaram todos os meus contatos.
Da fronteira russa, outro ônibus nos levou até Taganrog, onde nos disseram que poderíamos ir aonde quiséssemos se tivéssemos acomodações. Como meu marido precisava urgentemente de medicamentos que não estavam disponíveis na Rússia, partimos para a Europa."
"Eu me envergonho do ódio que brota em mim"
Varvara, de 67 anos, passou mais de um mês sob fogo em Mariupol. Em 25 de março, ela e seu marido deixaram a cidade.
"Meu marido e eu economizamos por 40 anos para ter uma vida digna na velhice. Agora tudo está perdido. Em 25 de março, soldados russos apareceram perto de nossa casa. Estávamos escondidos em um abrigo antiaéreo. Eles disseram: 'Se vocês não saírem em dez minutos, atiramos uma granada e explodimos vocês.' Eles nos mandaram para a igreja. Lá, homens uniformizados verificaram nossos passaportes e nos levaram para o lugarejo de Berdyanskoye. As mulheres não foram examinadas, mas ombros, braços, pernas e costas dos homens foram controlados.
Um ônibus nos levou a uma escola na vila de Besymyannoye. Ali nos deram comida, mas tivemos que dormir no chão. Pela manhã, um ônibus nos levou à cidade de Tores, onde tiraram nossas impressões digitais e medidas do corpo, nossos passaportes foram copiados e nossos telefones verificados. Os homens armados davam medo.
Eles nos levaram à delegacia de polícia, onde várias pessoas me interrogaram. Ali perguntaram sobre meu local de trabalho e residência, e onde eu gostaria de morar. Eu disse: 'Na Ucrânia'. Eles riram: 'Não existirá mais um país assim.'
Como soube mais tarde de outras pessoas, é possível se candidatar a viver na Rússia. Para isso se recebe 10.000 rublos. Mas, supostamente, então não se pode deixar a Rússia por dez anos.
Um mineiro nos levou de volta a Besymyannoye, onde estava nosso sobrinho, e com ele atravessamos a fronteira russa de carro até Rostov. Lá fomos recebidos por voluntários, graças a quem pudemos nos lavar e trocar de roupa. Continuamos nossa viagem de trem até Belarus. Em Minsk, fomos apanhados por conhecidos, que nos levaram até a fronteira ucraniana.
Não consigo entender o que a Rússia fez, nem perdoar, nem esquecer. Antes da guerra, eu era leal à Rússia, mas agora o ódio brota em mim, algo que até me envergonha. A irmã de 88 anos de meu marido foi morta em Mariupol. Ela havia dito que nem mesmo os alemães na Segunda Guerra Mundial bombardearam a cidade dessa maneira."