Dr.ª Eduarda Hamann
Os especialistas civis têm desempenhado funções cada vez mais importantes nas operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas isso nem sempre foi assim.
Desde os anos 1950 e, com muito mais força a partir dos anos 1990, a maioria dos conflitos armados passou a ocorrer não mais entre Estados soberanos, mas sim dentro do território de um Estado.
São conflitos com características que incluem, entre outros, combates em áreas urbanas e densamente povoadas, amplo envolvimento de grupos não estatais como atores e como vítimas, fácil acesso a armas e munições e engajamento de uma juventude frustrada, muitas vezes sem acesso à educação e/ou ao mercado de trabalho.
As causas e os objetivos são de várias naturezas e isso acaba levando, invariavelmente, a conflitos de longa duração. Nesse contexto, ao lado de militares e policiais, há um número cada vez maior de civis especialistas nas mais diversas áreas de atuação.
Segundo os dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (em inglês: Stockholm International Peace Research Institute – SIPRI) e da ONU, em 2000, havia cerca de 3.500 civis nas 16 operações de manutenção da paz então ativas.
Dez anos mais tarde, esse número alcança 7.000 civis, com um expressivo aumento de 100%. Em 2021, onze anos depois, há mais um significativo aumento de quase 90% e, hoje, são cerca de 13.200 civis trabalhando nas 12 operações de manutenção da paz ativas, número que inclui os civis de carreira e os Voluntários das Nações Unidas (em inglês: United Nations Volunteers – UNV). Uma vez contratados como funcionários de uma missão de paz da ONU, os civis contribuem para as atividades-meio – como logística, recursos humanos, licitações, traduções, etc. – e também, cada vez mais, para as atividades-fim, desempenhando tarefas essenciais para o bom cumprimento do mandato advindo do Conselho de Segurança.
São atividades sob a responsabilidade do componente civil de uma missão de paz: assessoria jurídica; apoio à retomada das atividades econômicas; apoio a reformas institucionais; gestão de processos eleitorais; políticas de proteção a crianças e outros grupos vulneráveis; agenda de mulheres, paz e segurança; cuidados com saúde pública; análises políticas; negociação com autoridades e população locais; coordenação de algumas células de integração entre os três componentes (civil, militar e policial); entre outras.
Os mandatos do Conselho de Segurança são tão complexos que nenhum componente, sozinho, tem todos os recursos ou as competências necessárias. Assim, a fim de aumentar a eficácia das ações da ONU no terreno, garantir melhores resultados no curto, médio e longo prazos, e ainda falar em uma só voz, há cada vez mais incentivos à coordenação e à integração entre os três componentes das operações de paz.
Nesse contexto, quando o Brasil foi convidado pelas Forças Armadas da Suécia para participar do VIKING 22, a Direção-Geral do Exercício convocou um ator que pode contribuir para o êxito da iniciativa pelo lado civil: a Rede Brasileira de Pesquisa sobre Operações de Paz (REBRAPAZ).
Criada em março de 2016, a REBRAPAZ tem o objetivo de ampliar e qualificar o debate sobre operações de paz no Brasil, por meio de ensino e de pesquisa. Hoje, a Rede já tem mais de 75 colaboradores civis, militares e policiais, e a integração é um dos valores que orientam as suas estratégias e principais ações.
Para atuar no VIKING 22 de maneira integrada aos componentes militar e policial, a REBRAPAZ recebeu a incumbência de desenvolver o componente civil (“Equipe Civil”) e de desempenhar uma série de atividades que contribuem para que o Site Brazil alcance os objetivos de treinamento e os próprios objetivos estratégicos do Exercício.
Tais atividades foram organizadas em quatro grandes pilares:
(1) apoio à Direção Operacional do Exercício pelo lado civil;
(2) apoio às atividades de treinamento pelo lado civil;
(3) elaboração/revisão de incidentes civis (e integrados); e
(4) seleção de profissionais para desempenhar funções como jogadores civis e como mentores civis.
Diante de tão grande desafio, a REBRAPAZ montou uma equipe de 9 profissionais voluntários (6 civis, 2 militares e 1 policial) que dispõem de competências variadas, inclusive experiência no terreno, e são grandes entusiastas da participação do Brasil nas operações de paz da ONU.
Entre novembro de 2021 e março de 2022, parte dessa equipe dedicou-se à elaboração e revisão dos incidentes, de maneira que fossem relevantes, que estivessem de acordo com os objetivos de treinamento e com a linha do tempo do Exercício e que fossem coerentes com os mandatos das entidades civis simuladas.
Fundamental importância foi conferida à escolha de incidentes cuja resposta dos jogadores envolvesse a ação de outros componentes, a fim de estimular a integração entre eles.
Com a proximidade do Exercício, outra parte da equipe fez uma vasta pesquisa documental, resultando na compilação e na produção de alguns materiais pedagógicos com utilidade para o preparo dos jogadores e mentores e também como fonte de consulta durante do Exercício.
Paralelo a isso, desde agosto de 2021, alguns colegas da equipe da REBRAPAZ também se envolveram em dezenas de conversas e trocas de mensagens para fins de articulação e comunicação entre os diversos envolvidos no VIKING 22, tanto dentro como fora da REBRAPAZ, e dentro e fora do Brasil.
Nesse período, por exemplo, as reuniões da Direção Operacional do Site Brazil, tanto presenciais como remotas, realizadas entre os principais integrantes dos componentes civil, militar e policial, são evidência de que a integração, que é um dos principais objetivos de treinamento, esteve presente nos últimos oito meses da fase de planejamento.
E os resultados dessa fase foram tão positivos que certamente trarão impactos benéficos para a fase da execução do Exercício: já se antecipa, por exemplo, que o jogador buscará a integração com outros componentes, não só porque assim preza a doutrina da ONU, mas também porque é assim que ele vê trabalhando toda a Direção Operacional do Site Brazil.
Assim, em 2022, o Brasil escreve um capítulo importante em sua trajetória nas operações de paz, ao convidar uma Rede de ensino e pesquisa, de natureza eminentemente civil, para ocupar um lugar de destaque, ombreando com militares e policiais nas ações de planejamento e de execução de um Exercício com a envergadura política e operacional do VIKING 22.
E é importante deixar registrado que a integração entre os três componentes, tão almejada pela ONU, se fez presente em todo o processo. Isso indica que os especialistas civis brasileiros estão cada vez mais preparados para assumir papéis mais relevantes, não só em outras simulações das Forças Armadas, como também em espaços nacionais de debate e análise de questões de defesa e de segurança internacional.
Além disso, a integração, tão presente no Site Brazil do VIKING 22, também reforçará as credenciais do Brasil junto ao Sistema ONU, aumentando, ainda mais, o seu capital político no momento em que o país ocupa, pela 11ª vez, um assento não permanente no Conselho de Segurança da Organização.
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