São Paulo – Quem passa pelo centro de São Paulo e pede informação aos policiais para achar uma rua localizada na região da Cracolândia vai ouvir como resposta, além da orientação, uma correção, com ênfase na palavra “era”. “Onde 'era' a Cracolândia”. A resposta do policial passa longe de retratar com precisão o que está acontecendo no local, que ainda conserva as marcas e os problemas pelos quais é conhecido há anos, após apenas uma semana e meia de ocupação pela Polícia Militar. Mas também é verdade que alguma coisa mudou.
De acordo com o último balanço feito pela PM, cerca de 70 toneladas de lixo foram removidas da área. Aproximadamente 600 pessoas foram encaminhadas para albergues e outras 330 para atendimentos de saúde. Nas ruas, há mais de um poicial a cada esquina. Mas há também usuários de droga perambulando e pequenos grupos sendo formados e logo desmantelados, em uma coreografia que vem se repetindo desde o início da operação.
A estratégia dos agentes públicos agora, ao que parece, é tentar vencer o problema pelo "cansaço”. A Polícia Militar deve manter um efetivo de 120 homens na região ao longo dos próximos seis meses para evitar que novos pontos de concentração se formem, trabalhando em conjunto com as órgãos de saúde e assistência social.
“Falou-se em dor e sofrimento para convencer o usuário de crack a procurar ajuda, mas não é o que queremos. Dor e sofrimento é o que eles tinham antes, nas ruas, morrendo por causa da droga. Nossa intenção agora é eliminar a zona de conforto”, afirma Rosangela Elias, coordenadora da área de saúde mental, álcool e drogas da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.
Segundo a Secretária, nos últimos dois anos e meio, eram feitas, em média, 90 internações por mês na região. Agora, em uma semana e meia de atuação dos policiais, 47 pessoas foram internadas. E a tendência é que os números continuem aumentando. “No segundo dia de ação policial, houve um pico de procura e 23 adolescentes foram voluntariamente o CAPS Infantil. Adolescente é o grupo mais complicado de trabalhar. Não esperávamos que um grupo tão grande viesse até nós”, diz
Para o tenente coronel Wagner Rodrigues, comandante da operação, a presença de usuários de crack vagando pela área tende a diminuir com o tempo. “Sem a droga chegando lá, eles começaram a andar por ali. Eles estão no direito deles de ir e vir e devem continuar fazendo isso por um tempo ainda. Acredito que por mais 40 a 50 dias essa situação deva permanecer, mas a partir daí deve diminuir bastante. Vendo que não tem como chegar à droga, eles vão procurar o tratamento ou ir para outro lugar”, acredita ele.
Um aumento sensível no número de usuários procurando ajuda já é sentido pelos voluntários do projeto Cristolândia, mantido por missionários evangélicos da Convenção Batista Brasileira. Há dois anos atuando bem no coração da Cracolândia, o projeto costumava atender, em média, 60 dependentes químicos por dia. “Depois que a polícia ocupou as ruas, temos recebido mais de 120 pessoas diariamente”, diz Shirley Inojoza, missionária em tempo integral, e secretária no projeto.
A média de internações nas clínicas de recuperação mantidas pelo Cristolândia também subiu. Antes da operação, em um mês, cerca de 40 dependentes químicos eram encaminhados às clínicas. Agora, apenas nesta semana, a entidade espera conduzir mais de 50 usuários de crack para tratamento. “Eles veem que não têm onde achar a droga, não têm sossego para usar, e isso aumenta a vontade de procurar ajuda.”
De acordo com o tenente coronel Rodrigues, o cerco à “zona de conforto” na Cracolândia não tem data para terminar. “Não esperamos resolver a situação do dia para a noite, mas o governo não pode tolerar a existência de uma zona livre de consumo de drogas na cidade.”
Do bate-papo à recuperação
Com o respaldo da polícia garantindo a segurança e a limpeza da área, os órgãos de saúde e assistência social prometem intensificar o atendimento aos usuários, dando continuidade a um trabalho que já vinha sendo feito antes da operação.
“Nós oferecemos todas as ações de saúde que o usuário de drogas precisarem. Em muitas situações, o agente faz papel de família e amigo. Às vezes as pessoas querem apenas sentar para conversar, e fazemos isto. Mas o esforço sempre é o de encaminhar, conforme a necessidade, para as unidades de saúde”, explica Rosangela Elias, da Secretaria Municipal de Saúde.
As unidades a que ela se refere são seis: duas de Atendimento Médico Ambulatorial (AMA), três Unidades Básicas de Saúde (UBS) e um Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS AD), todos na região central.
As internações voluntárias e, em alguns casos, compulsórias estão entre as opções de tratamento, mas não são as únicas nem necessariamente as mais eficazes, segundo a secretária. “Se for preciso internar, então faremos isto. Mas trabalhamos com a certeza de que a internação não faz milagre. Temos que trabalhar pelo convencimento de que a pessoa precisa de ajuda. Não podemos cair numa loucura higienista, nem todo caso é de internação”, diz.
Ela explica que tanto os agentes de rua quanto os médicos, enfermeiros e psicólogos que atuam nos CAPS e ambulatórios tem como base de seu trabalho o relacionamento com os dependentes químicos. A estratégia é construir junto com o paciente qual será o projeto terapêutico a ser seguido. “Também criamos ação para reinserir as pessoas na sociedade. Sem isso, o processo não termina.”
Portas abertas
Mas não são só os orgãos públicos que propõem assistência aos usuários. ONGs e grupos religiosos atuam na área há bastante tempo, ofercendo soluções alternativas.
“Para nós, a operação (policial) foi ótima. Estamos com as portas abertas 24 horas e recebemos cada vez mais pessoas. E elas gostam da nossa abordagem, que não é só clínica. A fé em Jesus é nosso carro chefe, e os dependentes sabem que aqui não vão receber tratamento só para o corpo, mas para a alma”, diz Shirley Inojoza, do Cristolândia.
O projeto é apenas um entre dezenas que atuam na região da Cracolândia para trabalhar com os usuários de drogas. Durante os cultos diários, que acontecem antes do café da manhã e logo após o jantar, os voluntários do Cristolândia costumam perguntar aos cerca de 60 espectadores se algum deles quer deixar as drogas. Os que atendem ao apelo são levados para uma casa de recuperação no município de Itaquaquecetuba, no interior de São Paulo.
Lá o Cristolândia oferece assistência psicológica e psiquiátrica, além de atendimento médico aos encaminhados para a internação. Esta é a primeira fase do tratamento, onde geralmente os internos lidam com a “fase mais dura” da abstinência. Nela, os dependentes são acompanhados por médicos, psicólogos, psiquiatras, e pela equipe eclesiástica.
As outras duas fases complementares do tratamento acontecem nas clínicas mantidas pelo projeto nas cidades de Bauru e Cajobi. Nestas etapas, além do acompanhamento clínico, há ainda um projeto de capacitação profissional e curso supletivo, com o objetivo de reinserir os ex-internos na sociedade. “Queremos que as pessoas se livrem e possam dizer a seus colegas da Cracolândia que, se elas saíram, os que ainda estão lá podem sair também”, afirma Shirley.