Anat Procianoy tinha 19 anos quando deixou seu país natal, a Argentina, e se mudou para Israel.
Era fevereiro de 2002, e o país sul-americano atravessava a pior crise econômica, política e social da sua história recente.
O presidente do país — o quinto, em menos de duas semanas — havia ordenado a conversão em pesos argentinos dos depósitos bancários em dólares, provocando uma desvalorização repentina que, de um momento para outro, eliminou três quartos do valor das economias de milhões de pessoas.
Dezenas de milhares de argentinos deixaram o país durante a chamada "crise de 2001". Muitos, como os pais de Anat, haviam perdido seu trabalho ou precisaram fechar seus empreendimentos comerciais, o que os levou a começar a vida novamente em outros países.
Quando a Argentina conseguiu recuperar sua economia, alguns anos depois, e se estabilizou politicamente, alguns dos emigrantes começaram a voltar. Foi o caso de Anat, que se mudou novamente para a Argentina em 2011, já com 29 anos de idade, e hoje, passados mais dez anos, vive nas redondezas da capital Buenos Aires com seu marido e filho.
Embora seu país esteja mergulhado em uma nova crise econômica, com uma inflação anual de mais de 50% e uma das moedas mais desvalorizadas do mundo, ela garante que não se arrepende de ter voltado e afirma que, enquanto continuar a ter trabalho, pensa em permanecer na Argentina.
Mas ela destacou para a BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) que, nos últimos tempos, vem observando uma tendência que traz muitas lembranças do que ela viveu duas décadas atrás. "Tenho vários amigos e conhecidos que estão indo embora", ela conta. "Alguns já foram, outros planejam ir neste ano."
Anat não tem dúvidas de que o país está atravessando outra grande onda migratória — um fenômeno que boa parte da imprensa local vem chamando de "êxodo".
Quantos são os emigrantes?
A BBC News Mundo consultou a Direção Nacional de Migrações (DNM) da Argentina sobre qual seria os números mais recentes de emigrantes, mas um porta-voz do organismo explicou que não poderia fornecer essa informação.
Ele destacou que o motivo é "proteger os dados pessoais" dos viajantes, depois de supostas inserções irregulares no banco de dados migratórios durante o governo anterior, algo ainda sob investigação.
Mas o site de notícias A24 publicou, em outubro de 2021, estatísticas obtidas da DNM após um pedido de acesso a informações públicas, que indicam que, entre setembro de 2020 e junho de 2021, quase 60 mil pessoas emigraram do país — o que equivale a cerca de 200 emigrantes por dia.
Esse número é o total das pessoas que preencheram "mudança" como motivo de viagem na sua declaração juramentada, antes de saírem do país. Mas especialistas indicam que o número de migrantes poderá ser muito maior, já que nem todos que planejam mudar-se de forma definitiva declaram essa situação nos seus documentos de viagem.
"Não são só os que declaram mudança que se vão. Existem outros que declaram viajar para turismo ou estudos, mas que podem também ser emigrantes", alertou ao site A24 o diretor do Instituto de Políticas de Migrações e Asilo (IPMA) da Argentina, Lelio Mármora.
Mais de 445 mil argentinos viajaram para "turismo" naqueles 10 meses e quase 15 mil saíram do país para "estudo". Outros 180 mil declararam "residência" como motivo da sua viagem, enquanto mais de 142 mil afirmaram que viajavam a "trabalho" no mesmo período.
A Espanha é o destino de um quarto dos viajantes que reconheceram estar se mudando do país, segundo as informações fornecidas pela DNM ao site A24. Os outros destinos mais populares foram países vizinhos — Paraguai, Brasil, Chile e Uruguai — e outros 5% mudaram-se para os Estados Unidos.
O êxodo atual é maior que o de 2001?
Não é fácil fazer comparações entre o êxodo atual e a emigração de 2001 porque, naquela época, não existiam as declarações juramentadas indicando o motivo da viagem. Além disso, a população argentina, duas décadas atrás, era menor.
Mas é possível usar como referência um trabalho publicado em 2003 pelo sociólogo Fernando Esteban, que estimou que "118.087 argentinos abandonaram o país" entre 2000 e 2001. A partir desse parâmetro, é possível estimar que, naquela época, a média foi de cerca de 160 emigrantes por dia — o que leva algumas pessoas a advertir que a onda atual de emigração não tem precedentes na Argentina.
Fuga de cérebros
Mais importante que os números é o fato destacado por grande parte da imprensa de que o fenômeno migratório atual é protagonizado por jovens profissionais, muitos deles com alta qualificação, o que significa uma perda considerável para a Argentina.
Esse panorama é diferente do ocorrido em 2001, quando a emigração era muito mais heterogênea, tanto do ponto de vista etário quanto profissional — e até socioeconômico.
Outra diferença é que, duas décadas atrás, muitos foram embora com o pouco que tinham. Um grande número de pessoas havia perdido a maior parte das suas economias no chamado "corralito" financeiro. Mas, agora, os emigrantes parecem estar viajando muito mais bem preparados, tanto logística quanto economicamente.
E Anat percebeu isso. "O que se vê agora está muito longe do contexto que vivíamos em 2001", destaca ela. "As pessoas que estão saindo agora são diferentes. Elas têm tempo de planejar. Não estão fugindo para poder dar de comer aos seus filhos."
De fato, Anat ressalta que todos os seus amigos que já saíram ou planejam sair do país têm (ou tinham) boa posição econômica na Argentina. É o caso, por exemplo, da sua amiga Daniela Mansbach, engenheira com 38 anos de idade que se mudou para a Espanha em julho de 2021, com seu marido e os dois filhos pequenos.
Embora ela tenha documentos europeus graças à sua ascendência alemã, Daniela sabe que conseguir trabalho na Espanha não será fácil. "Nós vendemos nossa casa na Argentina e viemos dispostos a viver de nossas economias por algum tempo", ela conta à BBC News Mundo, em Madri.
Questionada sobre o motivo de todo esse sacrifício se a família tinha uma boa vida em Buenos Aires, Daniela responde: "Viemos pelos nossos filhos", citando o aumento da pobreza em sua terra natal — e o temor de que essa pobreza continue crescendo. "Não queremos viver assim e não queremos que nossos filhos vivam assim no futuro."
"Economicamente, nós estávamos bem por lá", reconhece Daniela. "Tínhamos a vida que queríamos. Eu havia até deixado de trabalhar durante a pandemia para cuidar da minha filha, que tinha três meses."
Daniela conta que outro fator que os influenciou foi a decisão do governo argentino de fechar as escolas por cerca de um ano e meio durante a pandemia de coronavírus. Esse fechamento afetou centenas de milhares de crianças de famílias humildes, que não tiveram possibilidade de prosseguir com sua educação de forma virtual.
"Como eles vão recuperar o tempo que ficaram sem aulas? É uma situação que, no futuro, terá consequências muito sérias para o país", afirma ela.
Daniela conta que, no bairro onde moram, nas redondezas de Madri, existem muitas famílias de argentinos recém-chegados como a sua, com crianças pequenas.
"Você não imagina a quantidade de pessoas de nossas relações que chegaram um mês antes ou depois de nós e que também vieram com suas economias, dispostas a gastá-las até que se estabeleçam", afirma ela.
Daniela acrescenta que a maioria tem cidadania europeia e alguns começaram a procurar trabalho na Espanha antes de mudar-se. Outros chegaram dispostos a iniciar seus próprios empreendimentos.
Mas todos compartilham do mesmo pessimismo sobre o seu país de origem. "Perdemos totalmente a esperança de que algo possa mudar na Argentina", lamenta ela.
'Não temos futuro'
Muitos dos que decidem sair do país expressam essa mesma desesperança. Mas, no caso dos mais jovens, além da preocupação sobre o futuro, soma-se a exaustão sobre o presente.
"Há muitos anos eu vinha ouvindo que o país estava cada vez pior: a inflação, o dólar que disparou. Meus pais estavam estressados, meus avós estavam estressados", conta Alexis Lewin, de 26 anos, que vivia com a família em Buenos Aires.
"Todos me diziam que, quando eram mais jovens, as coisas não eram assim. E, além de ouvi-los, eu estava vivendo isso", destaca o jovem, que é formado em administração de negócios globais.
Embora ele tivesse um bom emprego em uma empresa conhecida, Alexis afirma que o salário não cobria o aluguel do seu próprio apartamento, nem o custo de viagens para o exterior.
"Eu não via luz no fim do túnel, não via possibilidade de viver sozinho. Eu e minha companheira tínhamos que nos matar para pagar o aluguel e nem sonhávamos em ter filhos", contou ele à BBC News Mundo. "Eu me levantava todo dia e perguntava: 'Para quê? Para que continuo aqui se o meu objetivo é aproveitar a vida?'"
"Eu me reunia com meus companheiros de ensino médio e da faculdade e todos estávamos na mesma [situação]: adoramos a Argentina, amamos o país, amamos as pessoas e o grupo de amigos que criamos, mas não temos futuro", conta ele.
Foi isso que fez com que Alexis, em abril de 2021, aproveitasse as facilidades oferecidas pelo Estado de Israel para os judeus que desejam mudar-se para lá. E, quando chegou ao aeroporto para embarcar para Tel Aviv, em Israel, encontrou um grande número de jovens compatriotas na casa de 20 anos de idade como ele, dispostos a enfrentar a mesma aventura.
Alexis confessa que emigrar foi muito mais difícil que ele pensava. Ele precisou aprender hebraico e — como acontece com muitos recém-chegados em todo o mundo — o primeiro trabalho que conseguiu estava longe de ser o ideal para alguém com diploma universitário.
"Trabalhei em um call center. Foi péssimo", reconhece ele. "Muitos dos meus colegas argentinos trabalharam como garçons ou limpando residências. Também passeavam com cachorros."
Mas Alexis destaca que, três meses depois de concluir seus estudos do idioma hebraico, ele conseguiu emprego em uma empresa israelense de alta tecnologia. "Tive muita sorte. É um luxo. O salário é muito bom e também as condições", ressalta ele, orgulhoso.
"Israel oferece muitas oportunidades", afirma Alexis. "Na Argentina, tudo era para sobreviver. Era muito frustrante. A única saída era ir para o aeroporto, tomar um avião e ir viver em outro país."
'Boa velhice'
Camila Levin, produtora teatral argentina com 28 anos de idade que também tem passagens compradas para mudar-se para Israel em maio, expressa sentimentos similares.
"Aqui é trabalhar, trabalhar, trabalhar e não chega", afirma ela. "Não estou saindo feliz da vida, dói muito ter que me mudar. Tenho uma história aqui, meus amigos estão aqui. Mas não tenho possibilidade real de desenvolvimento."
Diferentemente de Alexis Lewin, ela não emigrará sozinha. Camila irá com seus pais, ambos psiquiatras, com quem vive no bairro nobre de Belgrano, em Buenos Aires. Ela conta: "hoje não consigo pagar um aluguel sozinha e essa é uma das razões por que decidi me mudar".
"Meus pais também querem ir porque sentem que não vão ter uma boa velhice por aqui", destaca ela. "Por mais que amem sua profissão, eles vão querer se aposentar algum dia, como qualquer pessoa, mas aqui terão que morrer trabalhando para poder sobreviver."
Camila menciona outro motivo para querer sair do país, além do econômico: a insegurança. "Em 2019, fui assaltada com um revólver em plena rua, depois de me roubarem o celular", ela conta.
Camila afirma que esse tipo de violência a preocupa muito mais que o que pode eventualmente enfrentar em Israel, que vive um dos conflitos armados mais prolongados do mundo. "Tenho mais chances de que me matem nas ruas de Buenos Aires por um celular do que um míssil cair na minha cabeça em Israel", opina.
A insegurança é algo que todos os entrevistados mencionaram. Patrícia — que preferiu não informar seu nome verdadeiro porque ainda atende pacientes virtualmente na Argentina — é uma psicóloga de 34 anos que viajou para a Europa em maio de 2021 "por amor". Seu romance não seguiu adiante, mas ela decidiu tentar a sorte em Barcelona, na Espanha, onde reside atualmente.
"Existem coisas que mudaram muito minha cabeça", conta ela. "Já não dou meia volta quando alguém vem correndo ao meu lado por medo de que irá me assaltar. Na Argentina, isso era muito natural."
Ela, Alexis Lewin e Daniela Mansbach também ressaltam que, fora da Argentina, podem organizar um orçamento, sem precisar levar em conta uma inflação galopante. "Aqui, as coisas não aumentam [de preço]", ressalta Patrícia, que estava acostumada a conviver com preços que aumentavam cerca de 4% por mês no seu país.
"Temos previsibilidade, você sabe quanto ganha, quanto gasta e isso diminui muito o estresse", concorda Daniela. "[Consigo] ir ao supermercado quando quero e não só nos dias de desconto com meu cartão de crédito, como na Argentina."
"Aqui, o dinheiro chega [para as despesas]", comenta Alexis, que se sente "tranquilo" por saber que "o queijo custa tanto e o frango, tanto — e que , daqui a dois meses, custará o mesmo".
Todos esses motivos explicam por que diversas pesquisas publicadas na imprensa local demonstram que um grande número de jovens — mais da metade, em todas as consultas — decidiria mudar-se da Argentina, se pudesse. Mas aqueles que se mudaram reconhecem que emigrar não é fácil e que sentem falta de muitas coisas do seu país.
"Eu não voltaria neste momento, mas existe algo 'romantizado' sobre morar fora… é muito difícil o desapego, não entender coisas por mais que seja o mesmo idioma, uma porção de coisas", afirma Patrícia.
"Quando você conta que está na Europa, as pessoas na Argentina dizem 'que lindo!'. Sim, é lindo, mas é difícil", conclui ela.