Paula Schmitt
Jornalista, escritora e tem mestrado em Ciências Políticas e Estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção "Eudemonia" e do de não-ficção "Spies". Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos. Escreve semanalmente para o Poder360.
Poder 360
13 Janeiro 2022
.Que o mundo está se imbecilizando rápido demais é algo evidente –a não ser, claro, para os próprios imbecis. Uma das coisas que difere os humanos dos animais é a capacidade de autocontemplação, de pensar em si mesmo, de questionar seu propósito e buscar seu lugar no mundo. A grande vantagem, portanto, em ser um completo idiota, é não ter noção da própria idiotice.
Existem infinitos exemplos da idiotização coletiva: preços terminando em 99 centavos; o perdão presidencial ao peru de Ação de Graças nos Estados Unidos; jornalistas norte-americanos saudando a temporada de Pumpkin Spice Latte do Starbucks; debates políticos anunciados como eventos de luta livre; concurso para ver quem come mais cachorro-quente em menos tempo; o aviso de que água “não contém glúten”; e, para usar um caso recente de idiotice coletiva e autoflagelante, temos o CEO da Pfizer desmerecendo a eficácia da sua própria vacina contra as novas variantes, ainda que continue sendo aplicada.
Enquanto isso, ao seu lado, um gráfico mostra a subida vertiginosa das ações da empresa. A frase de Albert Bourla não deixa margem a dúvida: “Sabemos que as duas doses da vacina oferecem uma proteção muito limitada, se houver. As 3 doses, com o reforço, oferecem proteção razoável contra hospitalização e óbito”.
Existe um tipo de idiotismo, contudo, do qual até quem se considera inteligente vira presa fácil. Aliás, é geralmente quem se considera inteligente que cai na armadilha. Eu vos apresento, então, esta que vos fala, Paula Schmitt, como um exemplo dessa palermice. Eu passei anos –mais de uma década, talvez duas– acreditando que o sol fazia mal. Aqui está uma foto que não me deixa mentir: em pleno Líbano, morando no Oriente Médio por anos, é possível notar a completa ausência de sol (e pudor, thank you very much) naquele corpinho emburrecido.
Nessa época de sombra, eu comecei a apresentar uma série de sintomas similares aos da esclerose múltipla. Fiz vários exames, e para não dizer que minha estupidez se restringiu a evitar o sol –o elemento mais natural e essencial da vida na Terra– faço questão de contar que me submeti a um exame de punção lombar –um procedimento que por si só pode acarretar vários problemas de saúde. Aproveitem esse momento para pesquisar o significado da palavra iatrogenia.
Mas como eu me enganei de tal maneira? Ora, eu achava que o sol fazia mal porque eu era “bem informada”. Jornalista, e assídua leitora de jornal, eu fui a 1ª da família a parar de comer gema de ovo (por causa do colesterol), a usar protetor solar (por causa do câncer de pele), a substituir o açúcar pelo aspartame (um erro que não perdurou muito porque posso até ser burra mas não tanto), a 1ª a comer verdura cozida no vapor, a cortar o sal, a evitar gordura na carne, a eliminar frituras (e usar panela de teflon para não precisar de óleo). Sem dúvida, uma coleção invejável de asneiras.
Até eu ler o estupendo “Consciência – Guia do Usuário”, do neurologista Adam Zeman, o sol era uma ameaça, mais do que uma fonte crucial de energia e vida. Não me lembro com exatidão, mas recordo que Zeman mostra que a pele faz com o sol algo similar ao que as plantas fazem com a fotossíntese.
Outra coisa que aprendi, e que mudou minha vida, é que meu uso constante de óculos escuros era outra tolice. Nosso relógio biológico é em grande parte guiado pela entrada de luz na retina, e é a partir daí também que produzimos um dos hormônios mais importantes pra saúde, a melatonina. Quem fica de óculos escuro o dia inteiro deixa de avisar ao corpo que o sol está baixando, e que chegou a hora de produzir o hormônio do sono.
Aliás, é também através da luz do sol nos olhos que o corpo se prepara para se proteger dos raios. Nosso mecanismo é extremamente complexo, e funciona com infinitas variáveis, muitas das quais nem conhecemos. É tolice acreditar que é possível subtrair ou adicionar uma etapa nesse processo intricado sem provocar consequências imprevisíveis em efeito dominó.
Quem come adoçante, por exemplo, está avisando ao pâncreas através das papilas gustativas que o corpo vai receber açúcar, e começa a produzir insulina quando de fato nenhum açúcar está entrando no corpo. Eu me dei conta de que isso poderia não fazer bem à saúde por pura especulação mental e falta do que fazer, porque foi a explicação mais natural que me ocorreu para entender a epidemia de diabetes nos EUA — um país onde quase toda comida processada tem versão diet.
Hoje me espanta que eu tenha levado tanto tempo para me dar conta dessa obviedade. Como pode eu não ter suspeitado que algo fatalmente daria errado quando se interfere de um dia para o outro num mecanismo que chegou até aqui depois de milênios evoluindo e se ajustando à natureza que o rodeia?
Meus erros são muitos, e eu ainda os cometo bastante. Um desses erros foi com meu cachorro. Antes de eu continuar, gostaria de lembrar: não sou especialista em nada, e você, leitor, deve desconfiar de tudo que eu escrevo aqui. Dito isso, aqui vai uma historinha.
Antes de adotar meu cachorro, li tudo que pude sobre alimentação canina. E como fiz comigo mesma no caso da gema de ovo e do sol, “me informei muito bem”. Em outras palavras, vivenciei a eterna recorrência de Nietzsche, filósofo, com o Nietzsche, meu cão. Assim, munida de informação (deformação) que contradizia toda a minha experiência pessoal, passei 2 anos quebrando ossos de frango orgânico com a boca, dando só as pontas redondas e cheias de cartilagem para o meu Nieztsche. Quase quebrei os dentes, mas prometi que não assassinaria meu cachorro. Até que um dia fui jogar xadrez na casa do meu amigo Andrea.
Depois de me destruir no tabuleiro, e de amenizar a 1ª de várias derrotas com um jantar, Andrea tentou matar meu cachorro dando a ele os ossos que sobraram da comida. Falo isso brincando, claro, porque, apesar do meu medo absurdo, meu cachorro não só sobreviveu, como passou a adorar Andrea, O Aliciador de Cães.
Naquela noite eu fui lembrada de uma verdade com a qual eu cresci, mas que obliterei da minha mente: a realidade de que cachorro come osso. Pode procurar qualquer desenho animado das décadas passadas –não existe cachorro sem osso. Pode procurar as decorações que ainda existem até hoje em produtos caninos: enfeites em forma de osso. E pergunte aos seus pais qual era a cor do cocô de cachorro que se encontrava em canteiros nas ruas até poucos anos atrás: branco ou bege, resultado do cálcio ingerido com o osso.
Motivada pelo instinto de maternidade de pet, em algumas semanas de autodoutrinamento também fui convencida de que cebola mata cachorro, mesmo eu tendo crescido vendo os cachorros da minha avó, e da minha própria casa, viverem vidas saudáveis e longevas sendo alimentados com restos de comida que invariavelmente continha cebola.
Esta aqui é a Shakira, nossa vira-lata adotada, semi-aleijada, que viveu com saúde até os 17 anos comendo cebola quase todos os dias. Sim, cebola e osso podem matar, aposto que sim. Por outro lado, tenho certeza que a cebola é um dos ingredientes mais comuns em comida do mundo inteiro, e que até recentemente quase todo cachorro domesticado comia restos de comida caseira. Aliás, surgiu aqui uma ideia, não contem para ninguém: quando eu for dona de uma fábrica de comida canina, vou financiar um estudo que mostra que cebola faz mal.
Ou alho. Nada mais será necessário para garantir que cachorro jamais venha a comer comida caseira de novo. Com esforço suficiente, tenho convicção que eu vou encontrar um jeito de mostrar um resultado favorável num gráfico. Vou até ler este livro que o Bill Gates recomendou, “Como Mentir com Estatísticas”.
Sim, cebola mata, osso mata, tudo mata. Vacina mata. Água também mata. Até a cloroquina mata, se for usada em doses maiores do que a dose tóxica conhecida, como foi o caso do “experimento” em Manaus que matou participantes. A ivermectina que eu carrego no bolso também é capaz de matar, apesar de 400 comprimidos do remédio não terem sido suficientes para um suicídio de sucesso.
O que me interessa saber é: como a exceção do risco virou a regra? Como o osso virou anátema para a alimentação canina? Como eu fiquei com medo da gema de ovo? Por que errei tantas vezes? De onde vieram erros tão similares?
Eu tento evitar explicações absolutas, teorias simplistas que se atrevam a abarcar em uma única explicação coisas que dificilmente têm uma causa singular. Mas existe sim algo comum a todas essas inverdades nas quais eu acreditei: um interesse comercial por trás.
Faltou a mim em todos esses anos uma heurística básica para guiar meus passos na ausência de conhecimento mais profundo, em especial uma pergunta: cui bono –quem se beneficia. Na próxima semana pretendo falar sobre como o mundo caminha para uma vida patenteada, mediada por empresas, onde a realidade natural é substituída por “soluções” artificiais e bastante lucrativas, e o homem interfere em tudo que a vida nos presenteou de graça. Até no sol.