Humberto Trezzi
18 Julho 2021
GZH – Zero Hora
Visitou o Centro de Instrução de
Blindados, em Santa Maria, a convite do Exército Brasileiro
Em agosto o Alto Comando do Exército deve indicar qual cidade considera mais apropriada para sediar a futura Escola de Sargentos, um empreendimento de R$ 1,2 bilhão. A academia vai concentrar os cursos para esses profissionais das armas, hoje dispersos em 13 lugares país afora. É provável que a decisão tenha algum componente político e o presidente Jair Bolsonaro opine a respeito, mas também é possível que só os critérios técnicos imperem na escolha – e, nesse quesito, o município gaúcho de Santa Maria desponta. Estão também no páreo Ponta Grossa (PR) e Recife (PE).
O favoritismo de Santa Maria ocorre porque, além de ser a segunda maior concentração de tropas das Forças Armadas no país, é a Capital Nacional dos Blindados. O Rio Grande do Sul é o paraíso dos carros de combate e os veículos santa-marienses formam o epicentro desse tipo de arma.
Dos 2,2 mil blindados e 32 mil militares ligados às tropas mecanizadas no Exército Brasileiro, metade estão aquartelados em território gaúcho. Isso tem a ver com estratégia, mas também com história e geografia, como GZH constatou, em visita às principais unidades blindadas do RS.
O soldado gaúcho, celebrizado na literatura como “centauro dos Pampas”, já não combate a cavalo, mas a Cavalaria continua sendo a sua arma por vocação. A montaria foi trocada por blindados de até 46 toneladas, dotados de canhões capazes de aniquilar inimigos a quatro quilômetros de distância. E até a Infantaria — dos soldados a pé — possui seus veículos artilhados, para apoio das tropas.
Se os séculos passaram e a modernidade chegou, o cenário gaúcho predominante é o mesmo. Coxilhas a perder de vista, a serem vigiadas do alto — com as torres dos carros de combate a substituir o lombo dos animais.
Santa Maria conta com o maior número de blindados do país e, provavelmente, da América do Sul. São 303 (entre carros de combate com lagartas, blindados sobre rodas, viaturas de transporte de pessoal, veículos pesados de engenharia, obuseiros autopropulsados e viaturas antiaéreas). Monstros que cospem fogo e aço, uma mistura destinada a dissuadir vizinhos ambiciosos, mesmo quando não há ameaça perceptível.
Um dos grandes saltos para que o Rio Grande do Sul concentrasse o maior número de veículos encouraçados das Forças Armadas ocorreu em 2004, quando o Centro de Instrução de Blindados do Exército foi transferido do Rio de Janeiro (onde estava desde 1996) para Santa Maria. Foi o típico caso de adequação de uma arma (e dos experts nela) para o território mais apropriado a seu uso. Os santa-marienses já contavam com o Centro de Adestramento Sul, também voltado para simulação de batalhas com blindados.
Desde então, o número de carros de combate em território de Santa Maria não para de crescer — e, por impulso, em outros quartéis gaúchos. Nada menos que 18 cidades do Rio Grande do Sul possuem força blindada, seja ela da Cavalaria ou da Infantaria.
A preferência dos militares pelo uso de carros de combate no Estado é uma mistura de fatores geopolíticos. Do ponto de vista territorial, Santa Maria fica no centro do território gaúcho, a meio caminho entre o mar e as nem sempre tranquilas fronteiras com Uruguai e Argentina.
— No pampa, a arma ideal é o blindado, pela velocidade com que consegue avançar sobre o terreno, seja no campo ou nas estradas — resume o especialista em assuntos militares Nelson Düring, editor do site DefesaNet.
Tanques de 42 toneladas, como o Leopard 1A5Br, podem disparar projéteis mesmo correndo a 65 km/h, por exemplo. É o contrário da selva amazônica, onde só a Infantaria e os marinheiros têm condições de combater, a pé e com uso de técnicas de guerrilha e antiguerrilha.
Em termos estratégicos, Santa Maria é uma das mais importantes e aparelhadas cidades gaúchas. Além de ampla estrutura de ensino e saúde, a cidade gaúcha conta com a segunda maior concentração de tropas das Forças Armadas brasileiras, com 22 quartéis do Exército e Força Aérea.
Por tudo isso, Santa Maria é a favorita para sediar a futura Escola de Sargentos. Caso a academia vá para a cidade, o ciclo se completa. A formação técnica (sargentos e instrutores de blindados em geral) se somará ao maior número de carros de combate do país e, também, a uma fábrica de componentes para esse tipo de veículo militar, a KMW do Brasil (inaugurada em 2016).
Muita gente se pergunta: mas para que precisa tanto investimento bélico? Os militares gostam de dizer que a resposta está nas palavras de um célebre pacifista brasileiro, o jurista Ruy Barbosa. “O Exército pode passar cem anos sem ser usado, mas nem um minuto sem estar preparado”. Em resumo, nunca se sabe a hora em que será preciso usar o poder de fogo
Cada tiro economizado vale um Fusca
Adestramento na área de defesa custa caro. Cada tiro de um canhão de 105 mm, o mais usado em carros de combate, custa cerca de US$ 1,2 mil (R$ 6 mil). O valor de um Fusca em estado razoável. E num treino real são feitas centenas de disparos. Como driblar esse gasto?
Com simuladores computadorizados. Em Santa Maria, nove em cada 10 atividades no Centro de Adestramento Sul e no Centro de Instrução de Blindados se situam entre o teórico e o virtual. Antes de dar qualquer tiro verdadeiro, o “boina preta” (como é chamado o combatente que atua em blindados) treina milhares de vezes em sistemas de informática.
São como jogos de computador avançados. A condução dos tanques e o disparo dos canhões são feitos por meio de cliques no joystick (controle). O cenário na tela é convincente. Coxilhas, matas e riachos parecem verdadeiros e, inclusive, podem ser cópias de cenários conflituados mundo afora, captados por meio do Google Earth. Os fones de ouvido reproduzem o ruído dos motores e das lagartas dos carros de combate. Quando há acerto do tiro, os blindados explodem em chamas. Nada muito difícil para jovens acostumados a games virtuais. Esse tipo de adestramento é chamado Simulação Construtiva.
Só que na vida real não é assim. O “boina preta” precisa calcular a influência da velocidade do vento sobre a trajetória do projétil. Deve levar em conta o clima e as dificuldades do terreno. Esse tipo de treino é feito também com tropas, orientadas por computador. É a Simulação Virtual (que mistura orientação por computador e pessoas reais, no terreno).
Numa última etapa, ocorrem os combates mais realistas possíveis, com tiros e explosões. Mas aí os militares já estão treinados — essa, pelo menos, é a ideia. É a Simulação Viva.
— O recruta é treinado em panes, acidentes e situações reais de combate. Economizamos de 2017 para cá 191 mil tiros, o equivalente a R$ 1,1 bilhão em 27 exercícios, que adestraram 4,6 mil militares. Após os confrontos é possível conferir o grau de acerto — resume o comandante do Centro de Adestramento Sul, coronel Daniel Fornazari.
Carro de combate com cem anos ainda roda
O primeiro veículo de combate utilizado pelas tropas brasileiras completa cem anos em 2021 e ainda roda, acredite. É um Renault FT-17, construído em 1921 e que, no Brasil, recebeu o nome de Guararapes.
Estacionado no pátio do Centro de Adestramento Sul, ele recebe manutenção cuidadosa, ao ponto de ligar e rodar, se for preciso. O carro de combate francês foi trazido ao Brasil pelo capitão José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, que rende um capítulo à parte na história dos blindados brasileiros.
O paraibano Pessoa era sobrinho de Epitácio Pessoa (então presidente da República) e irmão de João Pessoa (que daria nome à capital da Paraíba). Com a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial, Pessoa foi enviado à França, como oficial da cavalaria. Lá, ele liderou um pelotão do Exército francês e foi condecorado por bravura. Terminado o conflito, ele serviu num regimento de carros de combate em Versailles, onde aprendeu a utilizar o Renault FT-17. Convenceu os superiores a adotarem esse como o primeiro blindado do Exército Brasileiro — algo que não deve ter sido difícil, já que seu tio era o presidente da República.
Pessoa escreveu obras fundamentais sobre a história dos tanques e também foi idealizador e patrono da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende. Em 1953, virou marechal, um dos raros nas Forças Armadas.
Blindados na América do Sul
O Brasil é o país que mais investe em carros de combate, tanques artilhados e viaturas de transporte de pessoal na região:
Blindados no Brasil e no Rio Grande do Sul
A frota de blindados em geral é composta de carros de combate (com lagartas), blindados sobre rodas, viaturas de transporte de pessoal, viaturas de engenharia, obuseiros autopropulsados e viaturas antiaéreas. Abaixo, os números totais: