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Especial – O fantasma de Geisel assombra Washington

O fantasma de Geisel assombra Washington

 

Lorenzo Carrasco

Resenha Estratégica

O discurso do presidente Jair Bolsonaro no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, em 4 de junho passado, acionou um sonoro sinal de alerta vermelho nos círculos de poder de Washington, pela sinalização de uma aproximação com a Federação Russa de Vladimir Putin.

Na ocasião, depois de agradecer o convite de Putin, Bolsonaro qualificou o Fórum de São Petersburgo como “a caixa de ressonância da nova paisagem geopolítica e geoeconômica em construção na Eurásia, região de importância decisiva e crescente, no epicentro das grandes transformações do mundo de hoje”.

E colocou as possibilidades de um estreitamento das relações econômicas e tecnológicas entre os dois países: “O comércio entre Brasil e Rússia pode e deve incorporar o alto grau de desenvolvimento de nossas economias, de modo a abranger produtos de maior valor agregado em proporções crescentes. (…) Continuemos trabalhando juntos para desenvolver a parceria tecnológica entre nossos países e expandir as parcerias nas áreas de defesa, espaço, energia e saúde. O Brasil está aberto a novas oportunidades de cooperação em alta tecnologia, a exemplo da nanotecnologia e materiais avançados, da inteligência artificial e da biotecnologia (grifos nossos).”

A até certo ponto surpreendente guinada diplomática se deu em meio às ostensivas pressões estadunidenses contra a política ambiental brasileira, evidenciadas com a ofensiva de “lawfare” contra o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e altos funcionários do setor, as operações Handroanthus e Akuanduba da Polícia Federal (PF).

Ambas tiveram uma forte influência da embaixada dos EUA, em Brasília, e foram autorizadas monocraticamente pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, resultando na demissão de Salles.

A inusitada presença de um mandatário brasileiro no Fórum de São Petersburgo, certamente, recordou em certos gabinetes de Washington a dimensão do peso estratégico do País, sobretudo, em um momento de instabilidade geral na América do Sul.

Neste contexto, pressionar o Brasil com a agenda ambiental, em especial, na sensível região amazônica, em parceria com nações europeias cada vez mais agressivas nesse métier, equivale a brincar com fogo contra o sentimento nacionalista brasileiro, especialmente, quanto ao seu estamento militar, fortemente presente no atual governo.

Sem dúvida, o fantasma do presidente Ernesto Geisel (1974-79) tem visitado aqueles gabinetes e escritórios da capital estadunidense, lembrando que em seu governo o Brasil rompeu o acordo militar com os EUA, em resposta às impertinentes ingerências do presidente Jimmy Carter (1977-1981) na política interna brasileira, sob a bandeira da “defesa dos direitos humanos”. E sem se deixar de lado o fato de que a atual relevância estratégica global dos EUA é muito inferior à da época.

Vale recordar que esta não foi a única ação de Geisel para reafirmar a tradicional política externa independente brasileira, nela incluindo o reatamento de relações diplomáticas com a China, o pronto reconhecimento da independência das antigas colônias africanas portuguesas e o crucial acordo nuclear com a Alemanha, causa de violentos surtos de urticária em Washington. 

Talvez, não tenha sido coincidência que, poucos dias depois do discurso de Bolsonaro, o embaixador estadunidense Todd Chapman tenha anunciado ao sua aposentadoria, “por razões pessoais positivas”, a despeito da proximidade que mantinha com a família Bolsonaro. Outro evento relevante ocorreu em 15 de junho, no anúncio da adesão do Brasil ao Acordo Artemis, uma missão espacial coordenada pela Agência Nacional de Aeronáutica e Espaço (NASA) estadunidense, para futuras missões à Lua.

Na oportunidade, o administrador da NASA, Bill Nelson, enviou a Bolsonaro uma elogiosa mensagem em vídeo, afirmando que a decisão “de juntar-se à comunidade das nações comprometida com a exploração do espaço de forma pacífica, segura e transparente, demonstra a liderança do Brasil no cenário internacional” – um tom bastante diferente do das declarações anteriores de funcionários estadunidenses, nos últimos meses.

Entre parênteses, será preciso bem mais que uma adesão ao programa da NASA para tirar o programa espacial brasileiro da estagnação em que se encontra há décadas – e não por falta de recursos humanos e capacitação técnica, mas de compreensão sobre a sua relevância estratégica e, por conseguinte, de prioridade.

Entretanto, a evidência mais relevante da apreensão do governo do Joe Biden com o Brasil foi a surpreendente visita-relâmpago ao País do diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William J. Burns, em uma evidente missão de “controle de danos”, que, dificilmente, seria conferida ao chefe de uma agência de inteligência. Por isso, o seu perfil alto de divulgação só responde a uma preocupação diplomática com a posição que o Brasil pode adotar em um cenário internacional altamente mutante e volátil.

As lições para o Brasil nesse entrevero diplomático são absolutamente claras. O País não pode engessar-se com uma visão de que os EUA são os garantes da estabilidade estratégica global ou os “salvadores da civilização cristã ocidental”, percepção que motivou um recente alinhamento automático com Washington, no marco de um hipotético e equivocado prolongamento da Guerra Fria. Evidentemente, isto não implica em oscilar diplomaticamente de uma região a outra.

O Brasil não pode fazer continência a nenhuma bandeira ou a quaisquer interesses que não sejam os seus, sempre que estes não atropelem os de outras nações. O País tem que sair da sua hibernação diplomática e recuperar o seu destino de grandeza, superando a perda de autoestima que o caracteriza há algum tempo, para participar positivamente da reconfiguração da ordem mundial em curso, no marco da construção de um mundo de cooperação pacífica e não hegemônica. Só assim poderá preservar a sua própria soberania.

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