Eugênio Moretzsohn (1)
Coronel R1 de Infantaria pela Academia Militar das Agulhas Negras, Mestre em Operações Militares, especialista em Gestão de Pessoas pela UFSC e em Avaliação da Gestão Pública pelo Ministério do Planejamento. É professor, palestrante e consultor sobre inteligência, segurança, contraespionagem e compliance em grupos privados e instituições públicas, civis e militares. Coordenou ações de Inteligência na repressão às organizações criminosas narcoterroristas na Amazônia (Brasil – Colômbia) e na Tríplice Fronteira (Paraguai – Argentina – Brasil)
Ilustração: munições de fuzil (2)
Introdução:
Caro leitor.
As “balas perdidas” são os projéteis anônimos de armas de fogo que atingem alvos aleatórios, sejam pessoas, animais, vegetação, estruturas físicas e áreas alagadas; não são fenômeno exclusivo do Brasil e ocorrem em todo o mundo, evidentemente com maior incidência nos países em conflito e naqueles que abrigam perigosas organizações criminosas mafioides, como o nosso.
Nas cidades brasileiras e, em especial no Rio de Janeiro, a origem das balas perdidas é sobejamente conhecida – as armas de guerra utilizadas por bandidos, por milicianos (também bandidos) e pelas Forças da Lei e da Ordem (FLO); nessas localidades, a ocorrência de vítimas atingidas por balas perdidas é, infelizmente, bastante frequente após confrontos armados entre bandidos e as forças de segurança, assim como entre grupos rivais de traficantes.
Alguns números:
Em 2021, segundo a plataforma Fogo Cruzado, somente no Estado do Rio de Janeiro já teríamos chegado a 63 (sessenta e três) pessoas atingidas por balas perdidas, das quais 17, infelizmente, vieram a óbito (3).
O número de crianças atingidas por balas perdidas na capital carioca cresceu 267% em 2020, segundo a mesma plataforma (Fogo Cruzado), em matéria ventilada na CNN (4).
Desde 2017, ainda segundo a plataforma Fogo Cruzado, 15 (quinze) mulheres grávidas foram atingidas por tiros, sendo 6 (seis) delas pelas balas perdidas5.
É legítimo e saudável questionar fontes, e respeito a opinião dos que divergem das citadas neste artigo; porém, gostando-se ou não delas e concordando-se ou não com os números, creio que todos têm a impressão – talvez a anuência – que há mortos e feridos demais.
É legítimo e saudável questionar fontes, e respeito a opinião dos que divergem das citadas neste artigo; porém, gostando-se ou não delas e concordando-se ou não com os números, creio que todos têm a impressão – talvez a anuência – que há mortos e feridos demais.
Mocinhos X bandidos:
Antes de prosseguirmos, é imperativo deixar claro que um preparado agente da lei, quando faz correto uso de seu armamento, especialmente em áreas densamente povoadas como os morros cariocas, tem a consciência que poderá responder pelas consequências de seu ato; os bandidos, ao contrário, se isentam dessa responsabilidade e não hesitam em disparar a esmo, imunes a dores de consciência e sem qualquer compromisso com os resultados de sua ação.
Saindo um pouco do Rio de Janeiro – e reforçando meu veemente repúdio sobre a nefasta prática de criminosos atirarem a esmo -, na madrugada de 01 Dez 20, cerca de 40 bandidos paralisaram Criciúma, uma das maiores cidades de Santa Catarina, estado onde prazerosamente resido, num ataque a um entreposto do Banco do Brasil; um insuspeito morador local, conhecedor de armas, testemunhou para a polícia haver escutado “mais de 500 disparos efetuados pelos criminosos”6; boa parte desses tiros foram aleatórios para intimidar a população, conforme constatado posteriormente pelos policiais ao recolherem das ruas centenas de estojos vazios de munição de fuzil nos calibres 7,62 e 5,56. Durante a ocorrência, o Soldado da PMSC Esmeraldino – a quem presto minha respeitosa continência – num ato de bravura indômita enfrentou os bandidos, mas, infelizmente, foi atingido por um tiro de fuzil e está com sequelas graves.
Há, ainda, um fator pouco lembrado, mas, relevante, a considerar: muitos integrantes das polícias militares de todo o país são originários dessas comunidades vulneráveis reféns do tráfico, onde ainda residem seus familiares e amigos – o que evidencia o caráter democrático da centenária instituição, aberta ao acesso e à progressão funcional dos que nela se abrigam profissionalmente; essa origem em comum eleva a responsabilidade de o agente fazer uso discriminado de seu recurso letal, um fuzil cujo alcance supera facilmente mil metros e cuja munição transfixa as paredes de meio tijolo dos barracos como se elas não existissem.
Portanto, ao menos para mim e à luz dessas afirmações, é muito mais provável que as balas perdidas tenham origem nas armas de meliantes, mas, admito sinceramente que não tenho, neste momento, provas técnicas que sustentem meu argumento, pois, demandaria um mutirão pericial e investigativo robusto, isento, custoso e que gerasse números confiáveis.
Arregaçando as mangas:
A fim de contribuir de alguma forma para a elucidação das graves ocorrências de balas perdidas – e considerando sempre como muito importantes o aperfeiçoamento das práticas policiais, o treinamento continuado e a atualização de seu equipamento – este texto pretende lançar uma luz para a melhoria dessas difíceis investigações; para tal, decidi ler a respeito de munições marcadas (microstamping ammunition, em inglês), projéteis normalmente de fuzis que recebem uma camada de um produto seguro, extremamente aderente e que, sempre que “riscar” uma superfície, deixará um indubitável rastro, passível de rastreamento por peritos.
A ideia central é a polícia utilizar somente munições marcadas, e gostaria de sugerir estudos sobre a pertinência de distribuí-las às forças de segurança em substituição às munições convencionais, a fim de possibilitar a identificação da Corporação responsável pela posse e guarda do projétil a partir da “assinatura” que este deixará em roupas, tecidos humanos (incluindo cabelos e ossos), madeira e estruturas diversas, bastando ao perito ter o material adequado.
A foto do início desta matéria não representa as munições marcadas cuja adoção estou sugerindo nestas linhas, e confesso ter sido apenas uma ilustração para chamar a atenção dos leitores; a marcação moderna dos projéteis é imperceptível a olho nu, somente detectável por peritos qualificados e com equipamento adequado. Se não fosse assim, os bandidos também pintariam as munições deles em cores vivas e a confusão estaria feita.
E como se dá a marcação de munições de forma a permitir a responsabilização de seu detentor e, até mesmo, do usuário dela? Na fábrica, valendo-se de técnicas já comprovadamente seguras e eficazes, quase todas baseadas no pólen das plantas7. Sim, pólen, uma das substâncias mais aderentes da natureza, ao qual são adicionadas outras substâncias que permitirão a diversificação de marcações, ao ponto de, se desejado, não haver sequer uma repetição.
O pólen “batizado” adere fortemente ao projétil que o computador da linha de montagem determinar graças ao domínio industrial da nanotecnologia; outra boa notícia é que o projétil disparado, ao percorrer o cano em velocidade supersônica, deixa marcas indeléveis de sua passagem no raiamento da arma, o que atrela o fuzil àquela munição e a seus efeitos.
Vantagens:
“Tecnologias de marcação de projéteis têm potencial de reduzir a violência armada, melhorando a taxa de resolução de crimes relacionados a balas perdidas”8, segundo a ativa parlamentar Gabriele Giffords, representante do Estado do Arizona (EUA), pesquisadora sobre mortes de civis em confrontos urbanos, líder da organização humanitária Giffords. (9)
Alguém foi, infelizmente, atingido por uma bala perdida? A perícia realizaria seu trabalho e comprovaria se o projétil “deixou sua assinatura” no alvo. Deixou? Muito provavelmente aquela munição era de reponsabilidade da polícia, e periciando-se o raiamento interno dos canos dos fuzis utilizados pela patrulha, será possível afirmar de qual arma partiu o tiro; sendo cada fuzil previamente distribuído a seu operador (policial) mediante controles já existentes e sedimentados, chegaremos à autoria do disparo – os estudiosos denominam esse emprego do pólen na balística como “Polinologia Forense”.
O projétil não deixou qualquer “assinatura” no corpo da infeliz vítima, nas suas roupas, nem estruturas próximas onde pode ter raspado ao longo de sua mortal trajetória? As investigações deverão tomar outro rumo, pois, projéteis fabricados com marcação de pólen sempre deixam marcas, inclusive nos dedos de quem os manuseia durante o municiamento do carregador (pente) de fuzis, submetralhadoras ou pistolas – e não adianta lavar as mãos, pois, o microscópico resíduo tinge a pele humana por semanas, embora não consigamos ver (10).
Desvantagens:
Não há dúvidas que os críticos de plantão irão alegar que, havendo desvio dessas munições de dentro dos quartéis e das delegacias, o tráfico poderá utilizá-las e responsabilizar a polícia; outras formas de os bandidos se apossarem de munições marcadas – como de qualquer outra munição – seriam, por exemplo, se algum policial deixasse cair seus carregadores sobressalentes durante uma operação em terreno acidentado, algum agente abatido no combate ficar para trás (muito pouco provável) e ter seu equipamento subtraído, e até uma viatura ser emboscada com a guarnição dentro, sendo seu armamento e munição tomados.
Esses desastres poderão vir a ocorrer, pois ser policial é profissão de risco; porém, logicamente, se espera que haja segurança nos paióis das forças legais, controle no momento de “pagar a munição” ao usuário (mediante rubrica), protocolos de segurança durante as operações, zelo pelo material e, mais ainda, pelos companheiros de Corporação; desvios infelizmente podem vir a acontecer, sim, porque não há instituição perfeita, mas, se pensarmos dessa forma derrotista a polícia também não poderia sequer ter fuzis, coletes, rádios, computadores e nem mesmo papel higiênico, pois, tudo pode ser desviado, afinal.
Há possibilidade de um policial ser desonesto e desobedecer às ordens recebidas utilizando, indevidamente, uma munição não marcada numa operação? Sim, há – especialmente se houver falhas nos controles e falta de ação de comando, qualidade de liderança que precisa ser desenvolvida pelos condutores de homens em combate. Mas, não tratemos as exceções como regra; contra elas, existem os bons policiais, os canais de denúncia, a Contrainteligência, a investigação e a punição após o devido processo legal.
O processo de distribuição e controle de munições marcadas pode ser aperfeiçoado a ponto de se chegar às pequenas frações (pelotões), por delegacias, por grupos táticos, por batalhões etc e, até mesmo, à identificação individual dos projéteis (o policial X receberá somente projéteis marcados com X); porém, logicamente, isso tudo tem custos e é compreensível sua adoção experimental, inicialmente.
Curiosidade:
Forças Aéreas de todo o mundo (inclusive a nossa) utilizam munições marcadas – neste caso, com suas pontas coloridas – para o treinamento de caçadores (pilotos de caça), que perseguem um avião-alvo que reboca uma longa faixa de tecido a boa distância de sua cauda. Trata-se de outro tipo de marcação, mas, funciona para eles: o caça A é municiado com projéteis amarelos, enquanto, o B, com azuis (por exemplo); assim, o caçador mira na faixa e dispara seu canhão-metralhadora de bordo quando chegar a vez dele.
Ao encerrar-se o treinamento, já em terra, a arbitragem irá conferir os impactos na faixa, pois, os projéteis deixam sua assinatura colorida nos orifícios no tecido, e esse exercício aparentemente divertido é conhecido por “fogo na biruta” – foi observando essa prática que me inspirei a pesquisar sobre sua adequação ao emprego policial.
Fazendo benchmarking com países que já dominam o processo:
O que não há dúvidas é sobre a real possibilidade de se chegar à autoria de um disparo de arma de fogo por meio desse tipo de marcação na munição, e países desenvolvidos já estão fazendo experiências bem-sucedidas a respeito. Equipes de químicos, engenheiros balísticos, nanotecnólogos e sociólogos das universidades de Brighton, Brunel, Cranfield, Surrey e York, todas no Reino Unido, estão desenvolvendo adiantadas experiências para a New Scotland Yard (11).
Equipes das SWAT estadunidenses também estão utilizando essas munições para contrapor provas de não autoria de disparos, num país onde praticamente qualquer cidadão pode ter um fuzil em casa.
Reconheço que serão grandes os desafios de distribuição e guarda das munições marcadas a fim de garantir sua posse e utilização estritamente pelas forças da lei e da ordem e, para tal, a Contrainteligência Interna e a Corregedoria precisam agir de maneira a identificar e anular ameaças que possam sabotar o processo e comprometer sua credibilidade; a boa notícia é que, havendo desvio de munições com determinada marcação, estas poderão ser consideradas prejudicadas para fins periciais e constituir em aprendizado para o aperfeiçoamento das boas práticas de segurança.
Finalização:
A vida das pessoas de bem precisa seguir em frente e não ser interrompida abruptamente por balas perdidas cujos autores permanecerão impunes enquanto não fizermos nada a respeito – mais fácil, como sempre, é simplesmente deixar as coisas como estão, principalmente quando as mídias condenam antecipadamente a polícia.
No dia 8 de junho de 2021, a jovem de 24 anos Kathlen Romeu foi atingida por um disparo de fuzil de origem ainda controversa quando caminhava pela comunidade de Lins de Vasconcelos, na Zona Norte do Rio de Janeiro; ela estava grávida e não resistiu ao ferimento, assim como o bebê no 4º mês de gestação12.
As discussões desse caso ainda giram sobre a possibilidade de o disparo ter sido perpetrado por um policial militar ou por bandidos que a PM alega estarem perseguindo, e que a morte da jovem foi mais um funesto efeito colateral de ação policial que resultou na perda de outra vida que, simplesmente, caminhava pelo lugar errado naquele errado instante.
A munição marcada não traria de volta a mãe e o seu bebê; mas, poderia dirimir a dúvida que insiste em resistir: quem atirou?
Obrigado por sua leitura. Fiquem com Deus e com saúde.
1) Coronel de Infantaria pela Academia Militar das Agulhas Negras, Mestre em Operações Militares, especialista em Gestão de Pessoas pela UFSC e em Avaliação da Gestão Pública pelo Ministério do Planejamento. É professor, palestrante e consultor sobre inteligência, segurança, contraespionagem e compliance em grupos privados e instituições públicas, civis e militares. Coordenou ações de Inteligência na repressão às organizações criminosas narcoterroristas na Amazônia (Brasil – Colômbia) e na Tríplice Fronteira (Paraguai – Argentina – Brasil).
Fontes:
2) Ilustração: youtube.com/watch?v=BVclb7gbBHw
7) theguardian.com/science/2008/aug/06/gun.crime
8) giffords.org/lawcenter/gun-laws/policy-areas/crime-guns/microstamping-ballistics/
10) http://aboutforensics.co.uk/2015/06/04/forensic-palynology/
11) phys.org/news/2008-08-nanotechnology-tagging-gun-crime.html
12)