Andrea Jubé
De Brasília
Valor
01 Junho 2021
Na primeira crise militar de seu governo, em 1999, o presidente Fernando Henrique Cardoso demitiu o comandante da Aeronáutica, Walter Braüer, acusado de quebra de hierarquia após criticar publicamente o ministro da Defesa, Élcio Álvares, primeiro titular da pasta.
O presidente do Superior Tribunal Militar (STM), Carlos de Almeida Baptista, foi então escolhido para o lugar de Braüer. Passados 22 anos, o tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Júnior repete a trajetória do pai ao ser nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro para o Comando da Aeronáutica, e, por ironia do destino, também numa conjuntura de tensão política, ante a substituição simultânea dos três comandantes das Forças Armadas e do ministro da Defesa.
Na primeira entrevista desde sua posse, há dois meses, o comandante Baptista Jr considera a turbulência superada: já voltamos ao voo de cruzeiro." Ele observa que a troca conjunta não era "desejável-, mas não causou inquietude entre os militares porque são cargos de livre provimento do presidente.
Nesta conversa com o Valor, o comandante detalha os motivos que o levaram a renegociar com a Embraer o contrato de aquisição de 28 aeronaves KC-390 Millenium. O potente cargueiro da Força Aérea Brasileira (FAB) foi desenvolvido em parceria com a empresa, em projeto iniciado em 2009, e subsidiado (Nota DefesaNet o termo correto seria financiado), pelo governo brasileiro, em negócio estimado em US$ 1,3 bilhão na ocasião.
O número de 28 aeronaves inicialmente contratadas ficará entre 13 a 16, em decisão a ser tomada nos próximos três meses. Até agora, quatro aviões foram entregues à FAB. O avião foi estratégico na reação ao colapso do sistema de saúde em Manaus no começo do ano, porque transportou oxigénio no dobro da velocidade dos antigos C-130 Hércules. Baptista Jr também falou sobre a necessidade de compra de um segundo lote de caças Gripen — os primeiros aviões começam a ser entregues no fim do ano o malabarismo para tocar os projetos estratégicos ante a restrição orçamentária, a implantação da nova estatal NAV Brasil, prevista para o fim do Inês, e a movimentação dos militares russos na fronteira com a Venezuela. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Por que foi necessário re-ver o contrato COM a Embraer para fabricação dos cargueiras KC-390 Millermium?
Carlos de Almeida Baptista Jr:. Primeiro quero relembrar que, apesar de ser uma empresa privada, mantemos o carinho com a Embraer, que nasceu da FAB e hoje é nossa parceira estratégica: 70% dos aviões operados pela Força Aérea são fabricados pela empresa. Tínhamos uma expectativa orçamentária por uma cadencia de entrega maior e que pudéssemos chegar nos 28 aviões em sete anos. Mas não só pela pandemia, também pela situação económica do país nos últimos anos. Estamos vendo que nossa capacidade de pagamento não atingirá os compromissos.
Nosso cronograma de desembolso anual não está adequado aos recursos que temos recebido nos últimos cinco anos. Por responsabilidade, eu, como gestor máximo da Força Aérea, sou obrigado a ajustar o contrato.
Valor: Essa revisão contratual era esperada?
Baptista Jr: É normal no mundo todo quando se compram aviões, principalmente aviões novos, sendo lançados, que a compra seja feita em lotes. Nós decidimos comprar 28 aviões, poderiam ter sido lotes de quatro, oito ou dez aviões. Mas decidimos por esse número com base na confiança no produto, que é vencedor. Não estamos dizendo que a Força Aérea não terá os 28 aviões. Estamos dizendo que, com essa redução, teremos talvez mais de uns contratos para atingir essa quantidade.
“Na defesa, os governos têm procurado fazer o máximo dentro dessa equação orçamentária, mas isso se mostra abaixo"
Valor: Haverá prejuízo para a Embraer?
Baptista Jr: A Força Aérea desenvolveu o projeto junto com a Embraer e pagamos 100%, não há ideia de prejuízo à Embraer. A lei não permite e não é nosso objetivo. O poder público pode reduzir unilateralmente qualquer contrato administrativo até 25% e não pode dar prejuízo, Podemos reduzir unilateralmente para 21 aviões.
Valor: E o que acontece agora?
Baptista Jr.: Eu informei à Embraer que gostaria de uma renegociação consensual porque pretendo reduzir a encomenda abaixo de 21 aviões. Estamos estudando o número, mas deverá ficar entre 13 a 16. Eu informei a Embraer que será uma redução de 50% do contrato.
Valor: Qual foi a resposta da Embraer?
Baptista Jr: A Embraer já aceitou. Duas equipes, uma da FAB e outra da empresa, vão renegociar as condições contratuais pelos próximos três meses.
Valor: Por que isso está sendo feito agora?
Baptista Jr: Porque a Embraer está induzindo a fabricação da 12ª aeronave. Se eu pedir menos de 12 aviões, vou gerar prejuízo para a empresa, porque ela já começou a comprar peças, motor, para esse avião.
Valor: Essa redução de aviões não gera prejuízo puro a estratégia nacional de defesa?
Baptista Jr: Logicamente que, independentemente do pais ou da riqueza dele, as necessidades parecem sempre maiores do que as possibilidades. O Brasil é complexo, tem enormes demandas na saúde, na educação e também na área da defesa. Esse é o jogo: qual é a capacidade que o pais consegue aportar para cada um desses problemas. Na defesa, os governos têm procurado fazer o máximo dentro dessa equação orçamentária, mas isso se mostra abaixo, e já tem se mostrado abaixo há algum tempo. Não falo de governos, falo de realidades orçamentárias.
Valor: A limitação orçamentária afeta projetos das três Forças?
Baptista Jr: Na Marinha, o almirante [Almir] Garnier está com problemas para manter o ritmo do PROSUB (programa de desenvolvimento de submarinos), o Exército, para tocar o ASTROS2020 (unidade de foguetes e mísseis) e o SISFRON (sistema de monitoramento de fronteiras). Passamos muito tempo relegando a segundo plano o reequipamento das Forças. Levamos 20 anos para decidir que o caça brasileiro seria o Gripen. Uma força aérea é feita de pessoal, treinamento, infraestrutura, mas o principal é o avião. Para este ano, temos somente 50% dos recursos para pagar o financiamento do KC-390 e do Gripen.
Valor. Mas este governo se apresenta como lona gestão que valoriza as Forçar Armadas.
Baptista Jr: No ano passado, teve a necessidade de se colocar recursos no combate à pandemia e isso tem que sair de algum lugar, até porque temos a PEC do teto dos gastos. Há necessidade de se priorizar. Isso não é uma crítica, é um problema de difícil solução da sociedade diante de necessidades como educação, infraestrutura, saúde e Forças Armadas.
Valor: Dentro do restrição orçamentária, quais os planos para sua gestão?
Baptista Jr: A prioridade é a atividade-fim, então, estamos fazendo um programa sério de redução do custeio da máquina. A FAB já voou 170 mil horas por ano, agora voamos 120 mil. Não tem mais como reduzir o treinamento dos pilotos nem o número de aeronaves.
Valor: Como a FAB está atuando no combate à pandemia?
Baptista Jr: A FAB foi o primeiro ator estatal a atuar na pandemia com a Operação Regresso: enviou quatro aviões e seis tripulações para resgatar os brasileiros em Wuhan (China) e depois fizemos a quarentena do grupo na base aérea de Anápolis. Nenhum dos nossos tripulantes se contaminou. Foi uma operação de guerra de pronta resposta.
Valor: E depois dessa operação, o que veio?
Baptista Jr: Operamos junto com os demais ministérios. Com o Ministério das Relações Exteriores, contatamos empresas para contratar aviões civis para repatriar brasileiros de vários países. Transportamos ventiladores de todas as cidades para dar manutenção. Tiramos mais de 900 pacientes de Manaus e os redistribuímos pelo Brasil.
Valor: Como a FAB atuou no colapso do oxigénio em Manaus?
Baptista Jr: Eu era o comandante logístico e participei muito (do episódio), inclusive em contato direto com o Ministério da Saúde, em contatos pessoais com o ministro (Eduardo) Pazuello. Tivemos uma explosão na demanda impossível de se prever. Estávamos usando os C-130 para transportaras cilindros de oxigênio, que é o oxigénio gasoso. Mas o líquido é 960 vezes mais eficiente e exige cilindros maiores de alta pressão. Ainda não havíamos concluído toda a certificação do KC-390. Existe a válvula de alívio da pressão e havia conexões, para isso que não estavam prontas. Com o apoio da Embraer, a gente fez isso de uma quinta-feira para sábado, e o KC-390 entrou na operação.
Valor: O KC-390 teve papel estratégico nessa missão?
Baptista Jr: Fizemos uma ponte aérea para transportar oxigénio de São Paulo para Manaus. Levávamos oxigênio e devolvíamos o cilindro vazio. Existe uma equação logística muito difícil São Paulo-Manaus é mais longe do que Paris-Moscou, O KC-390 voa no dobro da velocidade do C-130, e se mostrou mais eficiente no que planejávamos. Foi uma parceria muito bonita com a White Martins. Só me lembro de uma operação como essa, nos meus 46 anos de FAB, no terremoro do Haiti.
Valor: Como está a execução do contrato dos caças Gripen?
Baptista Jr: O primeiro protótipo chegou no ano passado. A previsão de entrega dos quatro primeiros da série (de 36) é no fim do ano, começo do ano que vem. Mas depois que a aeronave fica pronta existe o processo de recebimento, o treinamento dos pilotos de prova. Mas já temos os recursos para isso.
Valor: Há previsão de ajustes também no contrato do Gripen?
Baptista Jr: Compramos o primeiro lote, mas nossa expectativa e que seja alga em torno de 60 ou 70 aeronaves. Esse contrato contempla 36. Em breve, estará na hora de começarmos a falar de um segundo lote. Com um país do tamanho do Brasil, não dá para se falar em apenas 36 aviões de caça.
Valor: Esse novo contrato pode mirrara indo na sua gestão?
Baptista Jr: Gostaria muito que fosse.
Valor: A NAV Brasil foi criada a pedido dos militares, mas vai na contramão do programo de privatizações do Ministério da Economia. Qual a necessidade da riam estatal?
Baptista Jr:A FAB faz a grande maioria do controle de tráfego do Brasil, mas algumas torres de controle, algumas estações, estão dentro de uma divisão da IBFRAERO. A criação da NAV retirou da INFRAERO essa atividade de navegação aérea para centralizá-la no Ministério da Defesa. Com isso, a IBFRAERO vai se ocupar de sua missão: a infraestrutura aeroportuária.
“Para este ano, temos somente 50% dos recursos para pagar o financiamento do KC.-390 e do Gripen"
Valor: Quando a NAV Brasil entra em operação?
Baptista Jr:Deve ser criada até 30 de junho. Antes tem que ser feita a cisão da Infraero, a assembleia de criação, o balanço da cisão, e aguardar o parecer da PGFN (Procuradoria-Geral da Fa-zenda Nacional).
Valor: As Forças Armadas estão acompanhando as operações de militares russos no fronteira com a Venezuela?
Baptista Jr: As Forças Armadas logicamente monitoram a conjuntura da nossa região. A Venezuela tem uma dependência grande da Rússia para manutenção dos equipamentos militares. Com os bloqueios, o País optou por equipamentos russos, como os jatos Sukhoi, radares, artilharia antiaérea. É muito constante a presença russa na Venezuela. É nossa missão de defesa acompanhar esses movimentos, mas não é nada de atípico.
(Nota DefesaNet – O Brigadeiro Baptista Jr participou da Audiência Pública onde o Ministro da Defesa Braga Netto confirmou artigo de DefesaNet)
Valor: Seu pai assumia o comando da Aeronáutica numa crise política. Que analogia faz com a sua nomeação para o mesmo cargo, 22 anos depois, em outra conjuntura de turbulência?
Baptista Jr: Eu atribuo isso à roda da fortuna. Meu pai era presidente do Superior Tribunal Militar (STM) quando o presidente Fernando Henrique Cardoso resolveu trocar o ministro da Defesa, Élcio Álvares, e o comandante da Aeronáutica. Meu pai era o membro mais antigo do Alto Comando, e o presidente julgou que, por ele ser ponderado e o mais antigo, seria uma maneira de facilitar o voo de cruzeiro. Na época, havia inquietude nas Forças com a criação do Ministério da Defesa. Hoje há respeito entre as Forças e a pasta, as linhas de responsabilidade das autoridades estão muito estabelecidas. Talvez na época não estivessem.
Valor: Voltando ao presente, o senhor acredita que a zona de turbulência foi ultrapassada?
Baptista Jr: Agora nós já voltamos ao voo de cruzeiro depois da substituição (dos três comandantes militares). Logicamente, isso não era desejável mas não nos inquieta, porque entendemos que são cargos de livre provimento do presidente da República.
Valor: Esse movimento gerou inquietude na sociedade e até rumores sobre intervenção militar. O senhor vê algum risco de ruptura institucional?
Baptista Jr: Não vejo qualquer possibilidade fora da Constituição. Por vezes, parece que queremos continuar convivendo com alguma possibilidade de intervenção militar, de golpe militar. Não haverá isso, e isso é repetidamente passado para o povo. Mas às vezes parece que temos ainda uma desconfiança, ou que precisamos disso para justificar alguma coisa. Todos os presidentes da República, todos os ministros da Defesa, todos os comandantes, repetidamente, dizem que não haverá qualquer ação fora da Constituição. O povo não precisa desse fantasma.
Valor: Mas ainda há setores da sociedade que pedem intervenção militar.
Baptista Jr: Isso não reverbera dentro das Forças Armadas. Eu nem poderia sugerir isso. Na minha ordem do dia (no dia da posse), eu disse ao presidente: o senhor acaba de me dar autoridade e responsabilidade, e me manterei dentro das quatro linhas da Constituição (do artigo 142, que define as atribuições das três Forças).