O ex-ministro da Defesa Celso Amorim, que ocupou a pasta no primeiro mandato de Dilma Rousseff, acredita que os governos petistas erraram ao ter "condescendência” com posturas consideradas inadequadas de generais da ativa.
Sem especificar quais teriam sido os comportamentos acima do tom, Amorim defende que uma posição mais firme deveria ter sido tomada em situações de desrespeito à prevalência do poder civil.
"Deixaram pessoas com uma visão menos afinada com a prevalência do poder civil. É uma dificuldade intrínseca deles, que se expressou não por ser governo do PT”, afirma, em entrevista à DW Brasil.
Em entrevista à DW Brasil, o ex-ministro afirma que não teria indicado o general Villas-Bôas para o comando do Exército. A nomeação ocorreu em fevereiro de 2015, quando já havia deixado o cargo.
"Menos por uma percepção política de que ele ia fazer o que fez, e mais por eu ver nele uma pessoa que queria aparecer um pouco demais”, comenta. "Acho que a discrição é uma qualidade de um general. O militar não pode falar muito, pois está armado”.
Aos 78 anos, Amorim acompanha com preocupação o movimento "arriscado” do presidente Jair Bolsonaro que resultou na saída conjunta dos três comandantes das Forças Armadas. Ressaltando a dificuldade de decifrar as movimentações internas dos militares, ele não vê qualquer sinalização golpista entre os generais até agora.
Tendo chefiado o Itamaraty entre 1993 e 1995, no governo Itamar Franco, e nos dois mandatos do governo Lula, o ex-ministro diz acreditar que levará muito tempo para que o Brasil consiga reconstruir sua imagem internacional após os danos diplomáticos provocados no governo Bolsonaro, assim como se observou no pós-ditadura.
"Agora, o problema é mais grave, porque se trata de um governo eleito. Certas posições afetam a credibilidade do país. Quando um representante nosso, seja um jovem embaixador ou secretário, levanta a plaquinha nas assembleias, ali não está escrito ‘governo Bolsonaro', está escrito ‘Brasil'”.
DW: O livro de memórias do general Villas-Bôas explicita que havia um desconforto interno com os governos petistas, que atingiu seu ápice com a Comissão Nacional da Verdade. Isso era sentido por você à frente da Defesa?
Celso Amorim: A Comissão da Verdade realmente mexeu muito com as pessoas da reserva, sobretudo por ser um tema que lida com relações humanas e parentesco. Tem muitos formados da mesma família, às vezes o professor. Sem querer de forma alguma justificar, foi um assunto que pegou nervos expostos em vários setores. Eu não sentia nos comandantes uma oposição à Comissão.
Obviamente que eles talvez não fossem elogiar. Mas a questão principal deles era a barganha por um equilíbrio a partir da Lei de Anistia, de investigar a verdade sem punir. A lei que criou a Comissão da Verdade reafirma a Lei de Anistia. Eu acho que eles absorviam, mas sofriam pressões externas, de ex-chefes, e deixavam a coisa delicada.
Mas nunca perdemos o diálogo a esse respeito. Eu fui intermediário entre a Comissão e eles em alguns momentos. A coisa me parecia bem manejada, mas isso tudo aflorou porque as instituições civis se debilitaram, sobretudo com o impeachment da Dilma. Uma parte importante da elite econômica e da mídia brasileira foi atrás deles, aí eles apoiaram.
Não acho que nasceu lá. Podia haver descontentamento, mas, pouco antes do fim da Comissão, os jornais trouxeram como manchete um documento muito importante, em que eles admitem que violações de direitos humanos podem ter ocorrido nas organizações militares. Não é tudo, quem conhece um pouco de psicanálise sabe que a não negação é o primeiro passo para você chegar ao entendimento.
Houve ingenuidade dos governos petistas em relação aos militares e ao próprio general Villas-Bôas, nomeado comandante do Exército pela então presidente Dilma?
Não vou criticar a Dilma nem meus sucessores, mas eu não teria indicado o Villas-Bôas. Menos por uma percepção política de que ele ia fazer o que fez, e mais por eu ver nele uma pessoa que queria aparecer um pouco demais.
O comandante do Exército naquela época, assim como o chefe do Estado Maior e o comandante de Operações Terrestres eram pessoas muito discretas. E acho que a discrição é uma qualidade de um general. O militar não pode falar muito, pois está armado.
Mas é uma questão de julgamento, as pessoas podem errar, assim como podem ter visto outros méritos que eu pessoalmente não veria. Ao mesmo tempo, não teria certeza, não diria "não ponha de jeito nenhum”. Não tivemos qualquer problema pessoal. Quando ele era comandante da Amazônia e eu tiver que ir lá, fui muito bem tratado.
Fui surpreendido quando o general Sérgio Etchegoyen assinou um manifesto contra a inclusão do pai dele no relatório da Comissão, sem por o nome como general, e sim como familiar. Deixaram pessoas com uma visão menos afinada com a prevalência do poder civil. É uma dificuldade intrínseca deles, que se expressou não por ser governo do PT.
Acho que muitos realmente guardaram um ranço, mas o governo do Lula e da Dilma investiram muitíssimo. É só pegar projetos como o submarino nuclear, os caças Gripen, tudo aconteceu no governo do PT. Não houve falta de atenção na tarefa organicamente importante deles que é defender o país.
No conjunto da obra, sem pensar em uma ação específica, acho que o nosso erro foi ter tido um pouco de condescendência nesses aspectos. Não em temas como a remuneração e condições adequadas para defender o país. Isso é justo e tinha que ser reivindicado. Mas, em algum momento, você tem que adotar uma posição mais firme.
Como ex-ministro de duas pastas importantes em que ocorreram trocas no início da semana, como você observa essas mudanças?
Pensando internacionalmente, até, eu não me lembro de ver a demissão dos ministros da Defesa e das Relações Exteriores no mesmo dia. São dois pilares do Estado. E ainda trocaram o ministro da Justiça, o terceiro pilar. Este foi numa espécie de dança de cadeiras, mas não deixa de ser um fato importante. É um movimento muito ousado, que deve ser lido com atenção.
O Bolsonaro é uma pessoa que luta principalmente pela sobrevivência. Seu objetivo, como ele mesmo enunciou, é desconstruir a realidade. Não é só contra os governos petistas. O chanceler que acaba de sair critica a política externa dos últimos 45 anos, do período Geisel para cá já não serve. O presidente fala o que agrada ao clã.
Ele fez isso num momento em que se sentiu enfraquecido, com o manifesto dos banqueiros, a volta do Lula, os efeitos da pandemia e a derrubada do ministro das Relações Exteriores pela unanimidade do Senado. Era uma pessoa de quem ele gostava, e não teve uma voz que se levantasse para o defender.
Com esse movimento super arriscado, o Bolsonaro pode achar que ganha tempo. E, talvez, tenha razão. Para ele chegar a 2022, tem que passar pelos meses que faltam. Nesse período, pode ser que a pandemia arrefeça, por força da natureza ou avanço da vacinação.
A economia mundial pode progredir, já há um crescimento da China e há muita expectativa sobre os EUA. Tudo isso pode fazer o preço das commodities subir, o que já está ocorrendo. Na expectativa dele, pode ser que a situação não seja tão ruim após uns cinco, seis meses.
Com que grau de preocupação você acompanha a crise entre o comando das Forças Armadas e o presidente Bolsonaro?
É complicado, entrar lá exige uma senha especial. Como estive lá por três anos e meio, tive alguns desses códigos, mas é sempre um pouco difícil. Por exemplo, eu não tenho certeza sequer se eles foram demitidos porque se sabia que iriam renunciar, ou se renunciaram porque sabiam que seriam demitidos. É uma coisa intrincada. Seja como for, é uma crise muito grande. Nunca houve um fato como este na história do Brasil.
Ele sentiu que precisava ter uma iniciativa, numa área que para ele é fundamental, a da segurança. O Bolsonaro tem muita confiança que poderá usar as polícias e outras forças que possam surgir. Ele próprio mencionou que poderia haver no Brasil um episódio como a invasão do Capitólio, nos EUA.
O Bolsonaro precisa das Forças Armadas para agirem em seu favor, em face de uma dessas situações, ou para ao menos estarem neutralizadas. Foi esse conjunto de coisas que o levou a esse gesto totalmente inusitado, que não ocorreu nos governos militares nem em qualquer governo civil.
Você concorda com a leitura de que o comando das Forças Armadas sinalizou que não haverá endosso a iniciativas golpistas?
Sim, mas só estou falando com base em informações que saem na imprensa. Não fico chateando os poucos militares que conheço, pois sei que é uma situação muito difícil para eles. Uma das coisas que dizem é que o Bolsonaro esperava uma manifestação da Defesa, do Alto Comando ou do Exército crítica ou manifestando preocupação sobre a decisão do Supremo que trouxe o Lula de volta ao cenário político. Aparentemente, teria havido uma negativa do general Pujol de ir nessa direção. Obviamente, é algo que o incomoda muito e denota o respeito à institucionalidade.
Por um lado, é verdade que muitos militares se deixaram envolver pelos cargos, benefícios, e isso obviamente acaba tendo um reflexo na postura deles, mas o Alto Comando teve a preocupação de manter uma certa independência. Minha leitura até agora é de que iria acabar como na fábula em que o coelho começa a bater para pegar o melado e, no final, acaba grudado no melado, sem ter mais como sair. Mas a visão que eu tenho com esses últimos acontecimentos é que ele não estava totalmente grudado.
Qual é o legado deixado pela política externa conduzida pelo ex-ministro Ernesto Araújo ao longo de mais de dois anos?
É um desastre absoluto, de qualquer ângulo que você puder olhar. A própria percepção do Senado, de que uma má diplomacia estava tendo efeitos danosos para a vida das pessoas, nunca se viu antes. Havia interesses específicos. Às vezes, a agricultura achava que você podia fazer uma coisa, e a indústria não. Mas nunca houve uma unanimidade como desta vez em relação ao efeito danoso. E este é só o efeito interno. Em termos de substância e posicionamentos internacionais, o Brasil vai levar muito tempo para recuperar a credibilidade. Eu digo isso com muito pesar, porque queria que recuperasse rápido. Mas não é assim, no dia seguinte.
Após a ditadura militar, até o Brasil voltar a ter um papel importante na área de direitos humanos e voltar a ter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, levou um tempo. E olha que a ditadura, em matéria de política externa, não foi tão ruim assim, sobretudo do Geisel para cá. Basta lembrar o Acordo Nuclear com a Alemanha, à revelia dos EUA. Com um governo militar de direita, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo auto-proclamado marxista-leninista em Angola, pensando nos seus interesses estratégicos com este país, entre outros aspectos.
Agora, o problema é mais grave, porque se trata de um governo eleito. Certas posições afetam a credibilidade do país. Quando um representante nosso, seja um jovem embaixador ou secretário, levanta a plaquinha nas assembleias, ali não está escrito "governo Bolsonaro”, está escrito "Brasil”.
A política externa adotada pelos governos petistas, na qual você teve papel central, também é apontada como "ideológica” por grupos mais moderados, de centro-direita. Como você reage?
Não se trata apenas de uma interpretação errada. É uma mentira. Dizem que o Brasil virou as costas para os EUA e a Europa. O Brasil assinou uma parceria estratégica com a União Europeia em 2007, a convite deles, uma coisa que a Europa só tinha com quatro ou cinco países.
Tomamos inciativas conjuntas com França, Noruega, Portugal e Espanha. Mantivemos, ainda, uma excelente relação com a Alemanha. A Angela Merkel me recebeu para conversar sobre a Organização Mundial do Comércio (OMC). Vá perguntar quantas vezes um chefe de Estado da Alemanha recebeu um ministro brasileiro. Não deve ter havido muitas. Eu não tenho registros. É porque davam importância ao Brasil nas negociações da OMC. O Brasil era central em muitas coisas que estavam acontecendo no mundo.
Com relação aos EUA, o Bush veio aqui duas vezes nos seis anos de coincidência de mandato, uma frequência incomum. E convidou o Lula também duas vezes, além das demais ocasiões em que o presidente foi lá por outros motivos. Um dos convites foi para Camp David, casa de campo do presidente norte-americano. Eu nem ligo para esses símbolos, mas quando as pessoas dizem que a gente virou as costas, é preciso lembrar essas questões.
No governo Dilma, por um bom trabalho feito pelos meus sucessores e ela própria, reflexo de um capital acumulado, elegemos os diretores-gerais da OMC e também da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). São inclusive organizações que se chocam, mas do primeiríssimo time do sistema internacional. Se você olhar, não vai encontrar com frequência duas pessoas da mesma nacionalidade exercendo esses dois cargos ou equivalentes ao mesmo tempo. Isso reflete o peso imenso que o Brasil tinha entre os países da África, Ásia e América Latina, sem perder prestígio com a Europa.