Em dezembro passado, Angela Merkel estava na defensiva. Enfrentava críticas no Parlamento alemão sobre sua iniciativa emblemática na China, um amplo tratado de investimento entre a União Europeia e Pequim. "Estamos vendo em Hong Kong que a China nem mesmo cumpre tratados sujeitos ao direito internacional", afirmava Margarete Bause, porta-voz para direitos humanos da bancada parlamentar do Partido Verde – um dos mais críticos em relação ao regime chin~es.
A resposta de Merkel deixava transparecer sua abordagem para a China, que vem sendo cada vez mais criticada. "Observamos com grande preocupação que, em Hong Kong, no momento, a questão de 'um país, dois sistemas' seja muito frágil, para dizer o mínimo", disse Merkel. "E, no que diz respeito a essa contradição entre os valores que compartilhamos e os interesses que temos, repetidamente temos que pesar as compensações conforme tomamos decisões políticas."
A repressão de Pequim às liberdades políticas em Hong Kong e aos muçulmanos uigures em Xinjiang destruíram todas as esperanças de que a China estivesse no caminho da abertura política. E a crescente assertividade da China fortalece a perspectiva de uma confrontação com os Estados Unidos que pode definir este século.
Negócios para a UE
Apesar dessas preocupações, Merkel avançou com o fortalecimento dos laços econômicos, culminando com o acordo de investimentos alcançado pela União Europeia e pela China no final de 2020. Para Merkel, a questão é garantir um negócio melhor para as empresas da UE que fazem negócios na China. Mas isso lhe trouxe uma enxurrada de críticas – não apenas por ignorar as preocupações com os direitos humanos, mas por ignorar um apelo do novo governo Biden para esperar e consultar, garantindo assim à China uma vitória diplomática na manobra da parceria transatlântica.
Noah Barkin, pesquisador do instituto German Marshall Fund especializado em relações entre Alemanha e China, crê que este foi um movimento consciente de Merkel. "Acho que há um desejo de se evitar uma segunda Guerra Fria. Ela está claramente determinada a desempenhar um papel moderador no confronto entre EUA e China, para evitar o isolamento da China e tentar vinculá-la à ordem global baseada em regras."
Embora as críticas estejam crescendo, a própria Merkel não dá sinais de mudança de curso em seus últimos meses no cargo. "Não considero muito sensato olhar para trás 15 anos e considerar os resultados de hoje", disse ela a repórteres no ano passado. "Acredito que seja certo e importante buscar boas relações estratégicas com a China. Mas você não pode ter ilusões. Você tem que comparar as coisas com a realidade."
Início ousado
Essa estratégia contrasta com os primeiros dias de Merkel como chefe de governo alemã. Seis meses após assumir o cargo, ela foi a Pequim em maio de 2006 com uma nova e ousada mensagem. Ao contrário de seu antecessor Gerhard Schröder, ela falava em público sobre os direitos humanos – e tentava ativamente produzir mudanças.
“Não só acompanharemos o desenvolvimento da sociedade civil na China, mas também usaremos formas de diálogo para tentar desenvolvê-la em uma direção que signifique mais abertura e mais liberdade”, disse ela.
Eram tempos otimistas. "Ainda havia muita esperança de que a China estivesse no caminho para um Estado menos autoritário", lembra Barkin.
Visita do dalai lama
No início de 2007, Merkel fez sua ação mais ousada de todas, convidando o dalai lama para uma reunião em Berlim. "Isso foi visto em Pequim como um verdadeiro tapa na cara", diz Barkin. "As relações diplomáticas com Berlim ficaram essencialmente congeladas por seis meses." Refletindo sobre a reunião mais tarde, Merkel disse que ela desencadeou um debate saudável. "O bom é que nós nunca permitiremos que valores e interesses entrem em competição inaceitável entre si, mas sempre tentamos encontrar o equilíbrio certo", ressaltou.
Mas Barkin avalia que aquela experiência teve um impacto. "Acho que foi uma espécie de alerta para Merkel. Ela mudou seu tom em público ao falar sobre direitos humanos." Segundo ele, o início da crise financeira global acabou alterando ainda mais o equilíbrio entre valores e interesses.
"A economia da China se tornou uma muleta vital", frisa Barkin, afirmando que as empresas alemãs a transformaram em algo mais parecido com uma catapulta. As exportações da Alemanha para a China aumentaram mais de 70% em dois anos, de 2009 a 2011. E, à medida que a crise financeira se transformava em crise do euro, a China se tornou um investidor valioso em títulos da zona do euro.
"Acho que isso influenciou a visão de Merkel sobre a China", acredita Barkin. "Ela ainda fala sobre a ajuda da China neste momento de crise existencial para a Europa."
Parceria estratégica
À medida que os laços econômicos cresciam, também crescia o engajamento político. As primeiras consultas intergovernamentais em grande escala entre a Alemanha e a China ocorreram em 2011, com o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, vindo a Berlim com uma comitiva de ministros.
Wen sugeriu um acordo com vantagens para ambos os lados. "A China espera de todo coração tomar uma direção, com a Alemanha, onde os grandes países se respeitem para que possamos criar uma situação win-win", disse ele.
Para Barkin, a mensagem era clara: "Quando a China fala em respeito nas relações bilaterais, o que realmente significa é que não quer que outros países interfiram, como diz, nos assuntos internos."
O equilíbrio de poder no relacionamento estava mudando rapidamente a favor da China quando, em 2012, um novo líder ascendeu em Pequim. Xi Jinping iria moldar uma nova era, fortalecendo o autoritarismo.
Dependência dupla
Se o confronto entre os EUA e a China continuar, a Alemanha pode entrar numa posição insustentável: dependente dos EUA para sua segurança, dependente da China para sua prosperidade.
"Acho que está ficando cada vez mais difícil ficar em cima do muro", diz Barkin. "Haverá uma série de escolhas muito difíceis para países como a Alemanha."
É uma escolha que pode recair sobre o sucessor de Merkel – os mais prováveis são Armin Laschet, presidente recém-eleito da CDU de Merkel, ou Markus Söder, atualmente governador da Baviera. Nenhum dos dois parece que buscará uma mudança significativa na política em relação à China. Mas eles podem ser forçados a mudar de curso, seja por seus prováveis futuros parceiros de coalizão, os verdes, ou por realidades geopolíticas.
O otimismo da primeira viagem de Merkel à China em 2006 já se foi. Mas, segundo Barkin, foi a aliança com Pequim entre 2009 e 2011 que colocou a Alemanha em seu curso atual. "Acho que Merkel se agarrou ao que muitas pessoas agora veem como uma abordagem antiquada em relação à China."