Nos últimos anos, a maneira como os líbios vinham celebrando o aniversário da revolução de 17 de fevereiro de 2011 era mais uma indicação do que deu errado no país do que uma comemoração festiva do fim de mais de quatro décadas de ditadura.
Por mais de seis anos, o país ficou dividido entre leste e o oeste, com os dois lados controlados por autoridades diferentes: o Exército Nacional da Líbia, liderado pelo militar rebelde Khalifa Haftar a leste, e, a oeste, o governo internacionalmente reconhecido de União Nacional, liderado por Fayez al-Sarraj.
Embora celebrações da revolução de 2011 fossem comuns nas cidades do oeste do país, muitas vezes não havia nada disso no leste. No ano passado, na cidade oriental de Bengasi, durante o nono aniversário da revolução popular que acabou com a ditadura de 42 anos de Muammar Kadafi, houve apenas um protesto em frente a um tribunal.
Novo governo, nova esperança
Este ano, no décimo aniversário, alguns esperam que as coisas sejam diferentes. A trégua negociada em outubro pela Nações Unidas entre as principais facções beligerantes vem se mantendo. E, em janeiro deste ano, 75 delegados, selecionados pela ONU para representar uma ampla gama de setores da Líbia, se reuniram na Suíça para escolher quem estabeleceria um novo "governo de unidade". Este novo governo deve substituir as atuais desunidas autoridades orientais e ocidentais e administrar o país até que novas eleições possam ser realizadas, em dezembro.
Os delegados escolheram Mohammad Younes Menfi, um diplomata líbio com apoio no leste, para liderar o conselho presidencial, e o empresário Abdul Hamid Mohammed Dbeibah, que é apoiado por líbios ocidentais, como primeiro-ministro interino.
Será que, após uma década de caos, os dois lados estão prontos para celebrar a data em conjunto? "Espero que sim", diz Tarek Megirisi, um analista especializado em assuntos da Líbia junto ao Conselho Europeu de Relações Exteriores. "Em todo o país, as pessoas querem lembrar que este foi um dia de mudança."
Celebração e supressão artificiais
Megirisi também aponta que os líbios do leste e do oeste já tinham algo em comum durante as comemorações da revolução. "As tentativas artificiais de celebração em Trípoli [oeste] e as tentativas de suprimir qualquer tipo de celebração em Bengasi [leste] ocorriam pela mesma razão política", explica.
Em Trípoli, as autoridades se apresentaram nos últimos anos como "guardiãs da revolução", que teriam livrado o país de Kadafi e defenderam a cidade contra os ataques de Khalifa Haftar vindos do leste, explica Megirisi. "Fazem isso mesmo quando as pessoas as acusam de serem eles próprias pequenos tiranos."
Já em Bengasi, a mensagem das autoridades orientais que tentaram evitar qualquer comemoração nos últimos anos é que a revolução de 2011 abriu as portas ao extremismo islâmico. A facção do leste também aponta que Haftar e suas milícias é que deveriam ser celebrados, pois supostamente protegeram o leste da Líbia dessa ameaça.
Interferência internacional
Isso é apenas parte da história complexa com a qual os líbios têm lidado desde que realizaram suas primeiras eleições, em 2012, depois que revolucionários derrubaram Kadafi do poder, em 2011.
Em 2014, depois que resultados eleitorais acirrados desencadearam um novo conflito, as potências internacionais passaram a ser envolver mais nos assuntos líbios, com países fornecendo apoio para o leste ou o oeste dependendo das suas próprias motivações políticas. Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, por exemplo, apoiaram Haftar no leste, em parte por causa da oposição do militar rebelde à Irmandade Muçulmana na Líbia. Todos esses países se opõem às versões dessa organização em seus territórios.
A Turquia entrou na briga ao apoiar o governo ocidental de União Nacional em Trípoli, por razões econômicas e políticas – e porque seus rivais regionais apoiavam o outro lado. O Catar teve motivações semelhantes para apoiar as forças em Trípoli.
O potencial geopolítico da Líbia e sua riqueza em petróleo também atraíram outros países, como a Rússia. O papel da Líbia como ponto de partida para refugiados que se dirigem à Europa e sua proximidade com bases da Otan na península italiana também levaram a França e a Itália a se envolveram no conflito.
Dúvidas sobre a saída dos atores estrangeiros
Ao negociar o cessar-fogo de outubro passado, a ONU pediu para que os cerca de 20 mil combatentes estrangeiros, apoiados por Turquia, Egito, Rússia, Emirados Árabes Unidos e Catar, deixassem o país. Mas isso parece altamente improvável, diz Arturo Varvelli, chefe do escritório do Conselho Europeu de Relações Exteriores em Roma, que pesquisa a política líbia desde 2002.
"A Líbia se tornou uma espécie de guerra por procuração", disse Varvelli à DW. "Acho que esse é o maior problema da Líbia no momento: tentar conter os atores regionais, muitos dos quais têm visões diferentes em relação à Líbia."
Varvelli acredita que muitas das potências estrangeiras, como a Turquia e a Rússia, que têm "botas no chão", planejam ficar: "Infelizmente, temo que é improvável que partam após um simples telefonema da ONU, ou por causa do novo governo de unidade nacional."
Nenhuma lição aprendida?
O novo conselho presidencial estabelecido para formar esse novo governo também já recebeu críticas. O fórum que elegeu o conselho "é amplamente visto como uma reunião de políticos oportunistas e gananciosos com pouca legitimidade ou influência", escreveram Wolfram Lacher, do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança, e Emadeddin Badi, do Programa do Conselho do Atlântico para o Oriente Médio, em uma análise recente.
"É difícil ser otimista", comenta Badi. "Muitos associam o desejo da maioria dos líbios por uma mudança positiva – em muitos aspectos, um subproduto da fadiga do conflito – com uma suposta perspectiva positiva para o novo governo." Mas, na verdade, acrescenta Badi, ninguém parece ter aprendido algo com o último governo de união, formado em 2015 com apoio da ONU e que falhou em unir o país.
"O fato de estarmos exatamente no mesmo ponto – com apenas mais algumas dezenas de milhares de vidas perdidas, mais alguns milhões de vidas arruinadas e o país em frangalhos – não é realmente motivo de celebração”, afirma Megirisi, que trabalhou na Líbia entre 2012 e 2014.
Às vezes, diz ele, parece que a Líbia está apenas andando em círculos. Ele avalia que os próprios líbios se sentem impotentes e se tornaram bastante fatalistas.
"Mas é a oportunidade que dá esperança a mim e a outros", diz Megirisi, referindo-se ao novo governo de união nacional. "Enquanto as oportunidades continuarem a se apresentar, pelo menos temos a opção de mudar. Venho dizendo isso desde 2011 e parece que perdemos essas oportunidades rotineiramente. [Depois de Kadafi], pela primeira vez em 50 anos, os líbios se tornaram livres para traçar seu próprio caminho", diz. "O fato de terem traçado um caminho que levou diretamente à guerra não é o resultado mais positivo. Mas, apesar disso, o fato de que a liberdade existe e que a esperança persiste é o verdadeiro presente da revolução."