Moisés Naím
O Estado de São Paulo
07 Dezembro 2020
A internet global, descentralizada, não governamental, aberta e gratuita que existiu no início da rede, tem desaparecido. Não é nem global, nem aberta. Mais de 40% da população mundial vive em países onde o acesso à internet é controlado pelas autoridades.
O governo chinês, por exemplo, impede que, de seu território, seja possível acessar Google, Youtube, Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, CNN, Wikipédia, Tiktok, Netflix ou New York Times, entre outros. Há, com certeza, versões chinesas desses produtos digitais. Na Índia, no Irã, na Rússia, na Arábia Saudita e em muitos outros países, o governo bloqueia sites da rede e censura seus conteúdos.
A internet também não é descentralizada. É verdade que a rede empoderou indivíduos e grupos que agora têm mais possibilidade de ser ouvidos e influenciar os demais – e seus governos. Mas também é verdade que tanto os governos como as grandes empresas de tecnologia, como Google, Microsoft, Amazon ou Facebook, concentram um imenso poder sobre a internet. Uma tecnologia de libertação política se converteu em uma tecnologia para a repressão.
A rede não é gratuita. As buscas no Google, os encontros no Facebook, as mensagens de Twitter ou as tertúlias via Whatsapp não são grátis, ainda que pareçam. Pagamos por isso permitindo que aqueles que nos “dão de presente” esses serviços saibam quase tudo sobre nós. Essa informação lhes permite dominar o negócio global da publicidade. Mas talvez a tendência mais importante que está transformando a internet seja sua divisão em três blocos. O mundo está a caminho de ter uma internet chinesa, outra americana e outra europeia.
A internet chinesa é fechada, censurada, protecionista e tem grandes barreiras para a entrada de empresas dos países que estão fora de suas fronteiras digitais. Essas ciberfronteiras transcendem as fronteiras geográficas do país e incluem aliados com Coreia do Norte. Sua principal vantagem competitiva são 1 bilhão de usuários que há na China. Seu protagonista mais influente é o governo central e seus serviços de segurança nacional, inteligência e controle de cidadãos. Sua grande vulnerabilidade é resolver usar barreiras do passado (protecionismo e censura) para impedir a entrada de inovações que chegam em grande velocidade.
A internet americana, por outro lado, é anárquica, inovadora, comercial e com altas tendências monopolistas.
Os protagonistas centrais são as grandes empresas de tecnologia. Seu acesso a enormes volumes de capital, talento tecnológico e capacidade de inovar lhe conferem um dinamismo para o qual não há rivais.
A vulnerabilidade da internet americana está no fato de o modelo de negócios com base na oferta de serviços digitais gratuitos em troca de dados pessoais dos usuários não ser sustentável.
Também não é sustentável o grau de monopolização que as empresas de tecnologia desenvolvem. Nem sua indiferença diante do uso que atores malignos fazem de suas plataformas digitais para acentuar divisões sociais e influenciar eleições. Isso já está começando a mudar.
O epicentro do ataque contra os defeitos da internet americana e os abusos da China está na Europa. A internet europeia é mais regulada, se preocupa em proteger os usuários, enfrenta os monopólios e defende valores democráticos. A Comissão Europeia impôs multas bilionárias a Google, Apple, Microsoft e a outras empresas de tecnologia.
Em 2018, a UE adotou o Acordo Geral de Proteção de Dados (AGPD), que define os parâmetros para coleta, armazenamento e gestão de dados pessoais. Esse acordo é a manifestação concreta de um enfoque jurídico que considera a proteção dos dados pessoais um direito humano fundamental.
Enquanto a China baseia sua influência em seu tamanho e em seu regime autocrático, e os EUA em seu dinamismo empresarial e inovação tecnológica, a Europa tratará de exercer influência exportando regras baseadas de valores democráticos e humanísticos. Esses três blocos já estão batalhando ferozmente para manter o controle de sua área de soberania digital, e os atritos entre eles são evidentes.
Além de aplicar suas leis de combate à formação de monopólios às empresas americanas, a ameaça dos europeus é restringir acesso ao seu mercado às empresas de tecnologia que não adotarem suas regras. De sua parte, os EUA impõem sanções e bloqueiam empresas como Huawei, e, naturalmente, a China contra-ataca.
Teremos três internets, mas a batalha definitiva é entre EUA e China. E os confrontos entre essas superpotências digitais não se restringirão ao ciberespaço e à proteção e ampliação de sua soberania digital. Já os vemos nos esforços de Washington e Pequim para garantir que suas empresas dominem as tecnologias de 5G, a nova geração de telefonia móvel que revolucionará as comunicações e transformará a internet. Isso, entretanto, são somente escaramuças, já que o grande combate envolve quem será líder no campo da inteligência artificial, a tecnologia que transformará o mundo. Essa revolução está no começo.