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Fábio Pereira – O Crime, o Criminoso e a Revolução Molecular

O Crime, o Criminoso e a Revolução Molecular

Fábio Costa Pereira

Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, atua no Tribunal de Justiça Militar do RS. É Presidente da Associação Brasileira de Estudos de Inteligência e Contrainteligência- ABEIC.

 

 

 

Tenho escrito, palestrado e debatido, nos últimos anos, um conceito tão importante quanto desconhecido pela maioria dos brasileiros, o de Guerra Civil Molecular.

 

Apenas para ficar claro do que se trata, é importante recordar que, no ano de 1993, o poeta, ensaísta, escritor, editor e tradutor alemãoHans Magnus Enzensberger, dileto filho da Escola de Frankfurt, escreveu um ensaio que nominou como PERSPECTIVA DE UMA GUERRA CIVIL[1].

 

Segundo Hans Magnus, sem que a sociedade se aperceba, a Guerra Molecular se inicia quando surtos de violência espontânea, sem uma origem definida ou natureza política específica, começam a eclodir recorrentemente em seu interior.

 

Não há, a princípio, diferentemente do que ocorre nas guerras convencionais, um objetivo final a ser atingido, é o puro exercício da violência pela própria violência.

 

É chamada de molecular porque pode se manifestar em qualquer lugar e a qualquer momento. Em exemplo dado pelo autor, mesmo um vagão de trem pode ser o palco de uma guerra desta natureza, por esse o motivo do nome.

 

Da normalidade à anormalidade, o caminho da degradação do tecido social é muito rápido. O Estado, ao não conseguir conter as manifestações de violência que começam a se proliferar e a se disseminar como se um vírus letal o fosse, infectando e debilitando o seu hospedeiro, perde, perante os seus tutelados, a qualidade de garante da lei e da ordem, fragilizando-se e desacreditando-se em sua capacidade de atuação protetiva.

Nesse contexto de indiscriminada violência, sem um nexo causal claro, o cenário urbano muda radicalmente, deteriorando-se pelas constantes pichações e depredações do espaço público e privado.

 

As residências, por sua vez, são fortificadas por seus moradores, assumindo feições de casas prisionais, e estas, ao seu turno, tornam-se locais de recrutamento de novos “guerreiros moleculares”.

 

Os tutelados, em razão da impotência do Estado, passam a nuclear as suas relações interpessoais, buscando proteger-se, devidamente entricheirados em seus lares, do outro que, em seu entender, constitui-se em um potencial perigo aos seus e a si mesmo.

 

Em seu apogeu, a Guerra Civil Molecular transmuta-se, tornando-se a regra e não mais a exceção. Com esta transmutação, a Guerra Molecular assume as feições de macro e o Estado deDireito, como o conhecemos, entra em colapso, a ele se sucedendo a anarquia, antessala de regimes autoritários que, ao prometerem a restauração da lei e da ordem, às custas das liberdades individuais, ascendem ao poder e nele buscam se manter de qualquer maneira.

 

A liberdade, os direitos, as garantias individuais e sociais que matizam todas as sociedades ditas democráticas, em nome da segurança destroçada, são entregues, pela população cansada da violência, aos aspirantes a tiranos sem maiores senões.

 

Ao final da Guerra Civil Molecular, portanto, o que resta é apenas um simulacro do Estado Democrático de Direito que existia antes do processo de sua destruição se iniciar.

 

É importante se verificar que, nos “guerreiros moleculares”, há um perfil em comum que os une mais além do que as suas diferenças. Não sabem estes guerreiros aceitar um não como resposta, o cumprimento das normas inerentes à vida em sociedade não é algo que os impeça de fazer o que querem fazer, na hora que bem entendem e da forma que lhes for mais conveniente, bem como não há limites para a realização de seus desejos, mesmo quando esta satisfação importe no sofrimento alheio ou no atentado aos direitos de outrem.

 

Imagine-se, agora, que estes “guerreiros moleculares”, na satisfação de seus imedidos desejos, encontrem estímulo externo à concreção de todas as suas pulsões, sem qualquer limitação, como, e também, ao mesmo tempo, sejam tratados, por assim agir, como heróis da resistência, em uma verdadeira significação positiva do que, em qualquer contexto social ordeiro, é negativo.

 

A partir desse momento, que podemos chamar de turning point, a Guerra Civil Molecular, espontânea por sua própria natureza, assume o perfil revolucionário, passando a ser meticulosamente orquestrada para que atinja os fins objetivados por seus idealizadores e patrocinadores.

 

O “front” do desejo, bem representado pelos “guerreiros moleculares” na luta revolucionária, assume igual dimensão que a dos conscientes ideais que impulsionam o movimento a rebelar-se contra o que acreditam ser o status quo opressor.

 

Esta via revolucionária, onde a marginalidade dos “guerreiros moleculares” é explorada e estimulada como instrumento de luta, infelizmente não é algo novo, ela foi alinhavada, tal qual como um nefasto roteiro a ser seguido, pelo desconstrutivista francês Félix Guattari há quase quarenta anos.

 

No livro REVOLUÇÃO MOLECULAR: PULSAÇÕES POLÍTICAS DO DESEJO[2], Guattari descreve, passo a passo, como, através do “front” do desejo, da apropriação e da instrumentalização das pulsões dos grupos marginais (aqui eu me refiro àqueles que militam à margem do sistema) pôde-se fazer com que a revolução triunfe.

 

 Segundo o autor:

“A luta de classes não passa mais simplesmente por um front delimitado entre os proletários e os burgueses, facilmente detectável nas cidades e nos vilarejos; ela esta igualmente inscrita através de numerosos estigmas na pele e na vida dos explorados, pelas marcas da autoridade, de posição, de nível de vida; e preciso decifrá-la a partir do vocabulário de uns e de outros, seu jeito de falar, a marca de seus carros, a moda de suas roupas, etc. Não tem fim.” (p. 15)

 

O crime singularmente considerado, nesse universo discursivo, nada mais é do que uma lídima expressão da Revolução Molecular e cada ato criminoso, por si só, tem o potencial de desestabilizar e gerar, no tecido social, generalizada sensação de insegurança que à revolução interessa.

 

Guattari vai mais além, diz que: “A marginalidade é o lugar onde se podem ler os pontos de ruptura nas estruturas sociais e os esboços de problemática nova no campo da economia desejante coletiva” (p. 46).

 

Dessa forma, o crime e o criminoso, adequadamente explorados em seu potencial revolucionário, são poderosos instrumentos para que os objetivos finais sejam atingidos.

 

Na ótica de Guattari, a destruição do “tira” interno (p. 13), censor maior do que a própria sociedade e do que as suas leis, pode gerar o caos, a revolução e, após, a instalação do totalitarismo que ele crê como libertário.

 

E quem melhor do que o criminoso, aquele que não segue as regras e que há muito já “matou o seu tira interno” (não raras vezes os externos também) para representar os ideais revolucionários moleculares?

 

Há uma lógica revolucionária, portanto, por de trás da exaltação da figura do criminoso e da idealização do crime por ele praticado, por mais que a nós cause espécie e repudio.

 

Se, do lado da Revolução Molecular, a implosão dos freios inibitórios inerentes a todos quantos vivam em sociedade, com o respeito a estritos limites, é fundamental para que revolução triunfe, do outro lado, o nosso, a exata compreensão do fenômeno é fundamental para que seja eficazmente combatido.

 

Por esse motivo, toda a vez que alguém lhe disser que “há uma lógica no assalto”, não se surpreenda, repudie e rebata, pois ideias como esta, quando transpostas para o mundo real, têm o poderoso efeito de revolucionar, negativamente, a sociedade e arrebatar os mais caros  valores de democracia e liberdade que professamos.

 

 

 


[1] ENZENSBERGER, Hans Magnus. PERSPECTIVAS DE GUERRA CIVIL. Barcelona: Editorial Anagrama S.A, 2001.

 

[2] GUATTARI, Félix. REVOLUÇÃO MOLECULAR: PULSAÇÕES POLÍTICAS DO DESEJO. São Paulo: Editora Brasiliense, 2ª Edição, 1985.

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