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J.R. GUZZO – O crime acima de todos

J.R. Guzzo

Nos parágrafos a seguir é descrita uma série de fatos que mostram talvez melhor que quaisquer outros como está funcionando neste momento a vida pública do Brasil — não como ela aparece no noticiário, disfarçada de coisa séria e merecedora de mesas-redondas na televisão, e sim como ela é na sua realidade.

Não se iluda. O episódio de demência em que um ministro do STF soltou um chefe do PCC, outro cancelou a soltura e o plenário decidiu dar razão ao segundo quando não adiantava mais nada, pois a essa altura o bandido já tinha sumido do mapa, não é apenas a mais recente comprovação de que o país vive num estado de anarquia legal — criado pelos deputados e senadores, de um lado, e turbinado pelo Sistema Judiciário, de outro.

É, na verdade, um certificado definitivo de que o Brasil chegou até onde poderia ir com as regras do jogo que estão valendo hoje. Melhor que isso aí não fica. O Legislativo não deixa. O Judiciário não deixa. O Executivo está fechado com os dois, porque precisa de um e do outro para sobreviver. Game over.

 

É o caso, visto que as coisas estão assim, de fazer um jogo: ganha o leitor que conseguir achar uma única coisa certa ao longo dessa história toda. Ou, então, talvez seja mais prático ir pelo caminho contrário: ganha quem descobrir o maior número de erros praticados ao longo do desastre todo — desde o seu parto na Câmara dos Deputados até a sessão de fogos de artifício em que o Supremo Tribunal Federal, nada menos que a mais alta corte de Justiça da nação brasileira, parou tudo para resolver se um traficante de drogas, que atende pelo nome de “André do Rap”, deveria continuar solto ou ser preso de novo. Tempos atrás, o STF discutia se quem deveria estar na prisão, ou fora dela, era o presidente da República. Hoje é o “André do Rap”. É onde vieram amarrar o nosso burro.

 

Vamos aos fatos francamente miseráveis que formam essa calamidade; faça o seu jogo.

 

1) No ano passado, durante a discussão do “Pacote Anticrime” proposto pelo ex-ministro Sergio Moro, um deputado de Minas Gerais, Lafayette de Andrada, infiltrou no texto uma regra que poderia ter sido escrita diretamente pelo PCC. (Esse Lafayette é um jurista à altura de qualquer Antonio Dias Toffoli ou Kássio Nunes: o ponto alto do seu currículo é um doutorado — só que incompleto — numa universidade do interior da Argentina. Também não completou um curso de agronomia, este em Minas mesmo.)

 

Pelo contrabando enfiado no pacote de Moro, através da introdução de um novo dispositivo no Código Penal, a Justiça brasileira passou a ser obrigada a rever a cada 90 dias a prisão de criminosos com dinheiro para pagar advogados caros — mesmo que tenham sido presos em flagrante por matar o pai e a mãe no Viaduto do Chá e na frente de 50 testemunhas. Se o juiz não “justificar”, a cada vez, por que o sujeito está preso (o fato de ter matado pai e mãe, apenas, não é suficiente), o acusado terá de ser solto. É um caso único, em todo o planeta, de uma Lei Anticrime que tem um artigo de proteção aos criminosos.

 

2) Esse dispositivo pró-crime foi aceito sem problema algum, na Comissão e no plenário, pela “Bancada da Bala” — o grupo de deputados que se elegem dizendo que “bandido bom é bandido morto”. (O único voto contrário na Comissão foi da deputada Adriana Ventura, do Partido Novo. O relator, homem da “bala”, disse que não gostou, mas também não brigou. Falou em corrigir “depois”, no plenário; não houve “depois”.) Teve a bênção, como sempre, do presidente da Câmara, que não falha nunca nessas coisas. É mais um caso sem paralelo no mundo: uma bancada de parlamentares contra o crime aprova um dispositivo de incentivo ao crime.

 

3) O presidente da República vetou 25 pontos da nova lei. Esse não: ficou exatamente como foi enfiado lá dentro. Uma vez sancionado, o projeto aprovado pela Câmara e pelo Senado se transformou em lei e está valendo. No embalo, o presidente também sancionou a criação de mais um mecanismo para travar a prestação de justiça e proteger os criminosos: o “juiz de garantias”. O atendido, aqui, foi um deputado que se apresenta como um “puro-sangue” da esquerda carioca.

4) O traficante de drogas André Macedo, um dos chefes do PCC de São Paulo, pediu a sua soltura ao STF assim que soube que a invenção da Câmara dos Deputados em seu favor tinha sido sancionada e estava em vigor. Por uma dessas coincidências da vida, seu recurso caiu justo com o ministro Marco Aurélio, vejam só. Por uma coincidência mais notável ainda — e põe notável nisso —, a advogada que assina o pedido de habeas corpus é sócia imaginem de quem? De outro advogado que até pouco tempo atrás era assessor — isso mesmo, assessor — do ministro Marco Aurélio em pessoa. Que tal? Eis aí mais uma coisa que não acontece em nenhum outro país.

Marco Aurélio, é claro, tomou a precaução de decidir sozinho o caso, em vez de apresentá-lo ao julgamento coletivo do tribunal. Sabia que se dividisse a decisão com os colegas iria perder, como efetivamente perdeu no plenário logo depois; com o seu decreto solitário (eles chamam isso de “monocrático”), quis garantir, com certeza, que o chefe do PCC seria solto na hora. (Tanto faz, depois, que a sessão plenária decidisse o contrário, pois a essa altura o cliente da sócia do assessor já estaria longe.) “Monocracia”, como se pode ver, é o tipo da coisa que funciona.

5) O ministro, como sempre, alegou que “lei é lei” — se está na lei, ele tem de cumprir, e a lei é isso aí que a Câmara aprovou. (Na verdade, a lei só é lei quando o STF gosta do que está escrito. Quando não gosta, a lei não vale, como ocorre no caso dos jornalistas de direita que têm blogs nas redes sociais; o STF acha que não se aplica a eles a liberdade de expressão estabelecida no artigo 5º da Constituição Federal.) Mas isso é coisa que a baderna jurídica criada pelo STF já tornou normal no Brasil de 2020. Mais curioso é notar como, em certos casos, os ministros são capazes de tomar decisões com a velocidade de um raio.

O STF está sentado em cima de muitos processos há mais de 20 ou 30 anos; há pouco, um cidadão esperou tanto tempo por uma decisão da ministra Rosa Weber que acabou morrendo antes da sentença. O novo ministro Kássio também é promissor: responde a 30 queixas no Conselho Nacional de Justiça por não resolver os seus processos.

 No caso desse habeas corpus, Marco Aurélio foi fulminante: mandou soltar o preso no ato, assim que o advogado pediu. O chefe do PCC, obviamente, fugiu tão logo colocou o pé na rua; já tinha, segundo a polícia, um jatinho à sua espera. Resumo da ópera: a ordem de soltura valeu, porque o criminoso foi solto; a brava decisão do plenário de mandar prender não valeu nada, porque o homem não ficou esperando o Excelso Pretório chegar a uma conclusão sobre o seu caso.

6) O STF, o mundo político e os vigilantes da moral, da democracia e da virtude consideram perfeitamente lícito que familiares, agregados e amigos (além de assessores) dos 11 ministros e dos magistrados dos tribunais superiores ganhem fortunas como advogados de causas que serão julgadas por eles próprios. A mídia acha normal. Os cientistas políticos, os sociólogos e os filósofos acham normal. O “campo progressista”, em peso, acha normal.

 

Quem consegue levar a sério “instituições” que funcionam desse jeito? Não é que elas estejam funcionando mal, ou passando por alguma anomalia — ao contrário, elas são organizadas de maneira a tornar inevitáveis resultados como esse. É um sistema. A melhor demonstração disso é que todos estão felizes: o deputado Lafayette, que emplacou o seu presente ao crime organizado, o deputado da esquerda carioca, o presidente da Câmara, que diz que todo esse “problema” é da “Justiça”, a “Bancada da Bala”, o Palácio do Planalto, o ministro Marco Aurélio, o ex-assessor do ministro Marco Aurélio, a “governabilidade”, o plenário do STF, os parentes da alta magistratura, os advogados, o PCC e “André do Rap”. Quando fica assim, é muito claro quem é que foi escolhido para pagar a fatura.

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