Coronel Eduardo Bittencourt Cavalcanti
A legalidade das operações militares é um dos centros de gravidade das Forças Armadas. Essa premissa está relacionada à estrita observância dos marcos legais consolidados, aos preceitos éticos institucionais e às virtudes tipicamente militares. Portanto, intimamente ligada à preservação da dignidade humana.
A regulação do uso seletivo da força exige operar sempre nos limites da lei, permitindo a ação eficaz para o cumprimento da missão atribuída às Forças Armadas e a conquista de parâmetros de confiança da opinião pública. Portanto, é mister a identificação desse marco legal aplicável, com os princípios e as leis de regência, para o desencadeamento das operações militares.
O Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA), igualmente conhecido como Direito Internacional Humanitário (DIH)[1], visa proteger pessoas e bens em situação de conflitos armados e limitar os meios e métodos na condução das hostilidades. Sua integração aos produtos doutrinários e procedimentos militares propicia sua implementação pragmática na atividade castrense.
Como consta do Artigo 1º Comum às quatro Convenções de Genebra de 1949 – os mais conhecidos instrumentos de normatização do DICA – respeitar e fazer respeitar o contido no texto das convenções, em todas as circunstâncias, atesta o caráter especial das normas que regem os conflitos armados, muitas das quais expressam considerações elementares de proteção à humanidade.
O Artigo 1º Comum não é uma mera cláusula estilística, mas é investido com força imperativa. Seu compromisso faz mobilizar os recursos necessários para garantir o cumprimento das Convenções de Genebra, que bem expressam a essência do conjunto normativo do Direito Internacional dos Conflitos Armados. Ao se comprometerem a respeitar e garantir o respeito pelas Convenções, os Estados também reconheceram a importância de adotar todas as medidas razoáveis ??para impedir que violações aconteçam[2].
Ocorre que hodiernas modalidades de conflitos intimidam a paz mundial. Após o fim da Segunda Grande Guerra, mais de uma centena de disputas violentas em vários países fizeram o Direito Internacional Humanitário se adaptar às peculiaridades exigidas pelas guerras de libertação nacional, guerras de descolonização e guerras revolucionárias, que não estavam contempladas pelo escopo das Convenções de Genebra. Nem sempre os combates se davam de forma convencional e entre forças armadas identificadas, haja vista a ação subterrânea de insurgentes e guerrilheiros, por exemplo.
É fácil examinar que hoje a natureza dos conflitos armados está em mutação e, atualmente, o DICA enfrenta os desafios de ser inserido no contexto dos conflitos assimétricos e na chamada guerra contra o terrorismo.
Os debates sobre a aplicabilidade e atualidade do DICA às guerras do século XXI fazem surgir novos paradigmas desafiadores, entre eles como lidar com a ausência de simetria nos conflitos armados. Nesse sentido, a assimetria não existe somente em relação aos meios, mas também em relação à vontade intrínseca de durar na ação e à capacidade de observar as mesmas regras do marco legal aplicável.
Não é somente a guerra do fraco contra o forte: é a introdução de um elemento de ruptura (tecnológico, estratégico ou tático), de um elemento que muda a ideia preconcebida; é a utilização, sim, de um ponto fraco do adversário, ainda que este seja bem superior. Em relação ao DICA, simetria significa reciprocidade no respeito às normas, ou seja as partes beligerantes respeitam as mesmas regras que limitam meios e métodos de combate.
Não existe, pois, conflito armado assimétrico somente pela desigualdade entre os adversários, senão quando os adversários adotam formas de combate diferentes em sua concepção e desenvolvimento.
Em termos operacionais, então, a assimetria – entendida como desbalanceamento – deriva-se de uma força empregando novas capacidades, que o oponente não percebe, nem compreende, nem espera: capacidades convencionais que sobrepujem as do adversário ou que representem novos métodos de ataque e defesa[3] (SILVA, 2007).
Em tempos atuais, o mundo experimenta conflitos de baixa intensidade, no contexto de guerras de quarta geração e até várias operações militares aparentemente de não guerra, com eleição de objetivos que garantem vantagem, ou negam vantagem ao oponente, ou ainda protegem o atacante. Revela-se uma conjuntura “cinza, nebulosa, imprecisa” e intrincada de perceber.
Na doutrina internacional, a utilização da expressão “zona cinzenta” serve para caracterizar as diversas formas de conflitos assimétricos, dentro dos chamados conflitos de quarta geração, nos quais se situam as várias formas de insurgência e terrorismo que ultrapassam a visão binária de paz-guerra, ou seja, paz e conflito armado internacional ou conflito armado não internacional, por exemplo[4] (PEREIRA, 2019).
A estrutura jurídica internacional pós-Segunda Guerra Mundial pressupõe um mundo centrado no Estado em que os militares convencionais e organizados disputam o controle do terreno físico. Mas em uma guerra cibernética ou em uma guerra contra o terrorismo inexistem limites no tempo ou no espaço físico. Não há como apontar para o campo de batalha em um mapa ou articular circunstâncias nas quais esse conflito pode terminar.
Na “zona cinzenta”, não temos mais certeza do que conta como arma: um avião de passageiros sequestrado? Um login em um computador? Uma notícia falsa, ardilosamente disseminada? Frequentemente, também não podemos definir o inimigo. Atores descentralizados, transnacionais e não estatais se transformam de maneira imprevisível, e os Estados também desenvolveram novos meios de fugir dos métodos tradicionais de atribuição de responsabilização[5] (ROSA, 2018).
A dinâmica contemporânea impende uma transmutação continuada, que dificulta a classificação de civis, membros de grupos armados organizados, pessoas que participam diretamente das hostilidades, etc, ao mesmo tempo que afronta a capacidade de designar um bem protegido no ciberespaço. Quando um hacker, um financiador econômico ou um propagandista podem ser considerados um participante direto das hostilidades? Quando o Estado pode responder a um ataque sem violência cinética, usando a força militar convencional?
Na “zona cinzenta”, não sabemos precisamente o que conta como “conflito armado” ou “uso da força”, e o terreno físico pode ser irrelevante nas batalhas por influência política.
Pode haver as situações de conflitos e enfrentamentos cujas características não se enquadrem nas exigências das categorias que são próprias do DICA, tais como, combatente, participação direta nas hostilidades (PDH), ataque etc. Ou seja, surgem variadas formas de enfrentamento armado que não se amoldam aos rígidos parâmetros normativos sobre o conceito de Conflito Armado Internacional (CAI) ou Conflito Armado Não Internacional (CANI).
O conflito na “zona cinzenta” é verificado como atividade de natureza persuasiva e agressiva, mas que é projetada para permanecer abaixo do limiar do conflito armado convencional, seja quando um Estado estrangeiro age extraterritorialmente ou quando forças estatais atuam no seu próprio território.
Nota-se que há atuações na “zona cinzenta” por agentes que operam na dinâmica da sociedade, com interesses reacionários, procurando modificar algum aspecto político e econômico do ambiente internacional existente. Nesse caso, o objetivo nem sempre é conquistar territórios, o que é normalmente associado à vitória na guerra.
As ações na “zona cinzenta” podem visar aos ganhos sem escalar para a guerra com violência cinética, sem cruzar limites fronteiriços e, mormente, sem expor o ator aos riscos e às penalidades por infrações ao Direito Internacional dos Conflitos Armados – o que não significa obrigatoriamente o livre trânsito pela impunidade. Contudo, a persecução penal é levada a efeito por meio de outro sistema sancionatório, como o Direito Penal interno, por exemplo.
Quando a conduta infratora é caracterizada como sendo de competência do DICA e quando não é? Um dos âmbitos de aplicação do DICA é em razão da matéria (ratione materiae). Significa que para aplicá-lo é mister a existência de conflito armado de fato. Se inexistente a caracterização de CAI ou CANI, estará afastado o Princípio da Especialidade em relação ao DICA.
A imprecisão e ambiguidade geram comportamentos desafiadores, pois a resposta de atores afetados com a atuação na zona cinzenta pode ser desde a inércia até a instauração de um grande conflito aberto. Agressões ambíguas são um recurso estrategicamente utilizado pelos que não têm forças suficientes para arcar com os custos, riscos e obrigações legais da guerra convencional.
De certa forma, também é uma forma de limitar a intervenção externa no ambiente em que se está operando. O beligerante na zona cinzenta pode ter controle do espaço local ao manter a ambiguidade da natureza da sua agressão. A oscilação entre a definição, se é uma ação caracterizada como conflito armado ou não, gera a hesitação se seria cabível a escalada da gravidade ao ponto de ensejar uma intervenção militar de país estrageiro ou mesmo de uma coalizão.
Qualquer semelhança com recentes operações no cenário mundial, ou especificamente no Oriente Médio, com targeted killings[6] não é mera coincidência. Pode ser a forma de buscar justificativas para legítima defesa e para os inevitáveis danos colaterais, com homenagens ao Princípio da Proporcionalidade e as precauções durante o ataque, como estão regrados nos Artigos 51 e 57 do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra de 1949. É uma solução inovadora para a equação Necessidade Militar x Proporcionalidade[7].
A guerra híbrida é concebida como uma estratégia que combina as táticas convencionais de dissuasão e insurgência. Ou seja, o beligerante usa táticas insurgentes contra seu alvo, enquanto usa seu poder militar convencional para impedir uma forte resposta militar.
A eficácia da lei precisa oferecer inovações à proteção das pessoas alcançadas por novos meios e métodos de guerra, como ataques com drones ou no ciberespaço, e contra novas formas de estrutura organizacional, como grupos armados transnacionais.
Isso faz crer que o Direito Internacional dos Conflitos Armados é dinâmico e está se adaptando às possíveis novas formas de violação das normas protetoras, sejam “cinzas ou em alta definição”.
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[1] Faz-se menção ao Direito Internacional dos Conflitos Armados e Direito Internacional Humanitário propositalmente para reforçar a identicidade dos conteúdos a que se referem.
[2] ICRC. Geneva Conventions of 1949 and Additional Protocols, and their Commentaries. International Committee of Red Cross. Geneva, 2016.
[3] SILVA. Carlos A. P. Guerra Assimétrica: adaptação para o êxito militar. PADECEME. N. 15. ECEME. Rio de Janeiro, 2007.
[4] PEREIRA. Carlos Frederico de Oliveira. Zonas cinzentas e repressão penal: entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional dos conflitos armados. Revista do Ministério Público Militar. N. 31. 117-136. Brasília: 2019.
[5] BROOKS, Rosa. Rule of in the Gray Zone.The Modern War Institute at West Point. Disponível em: https://mwi.usma.edu/rule-law-gray-zone/. Acesso em: 10 de Jan. 2020
[6] Uma ação seletiva inserida no processo de “Targeting” – Análise de Alvos, ainda que com antijuridicidade suscitada. Há outras terminologias utilizadas nesse contexto como “precision warfare”, “surgical strikes”, “focused prevention”, “smart bombs”, “distant firepower”.
[7] LATTIMER, Mark; SANDS, Philippe. The Grey Zone: Civilian Protection Between Human Rights and Laws of War. Ed: Hart Publishing. Oxford, 2018.
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Sobre o autor:
Coronel de Artilharia BITTENCOURT é instrutor do corpo docente permanente do International Institute of Humanitarian Law, em Sanremo-Itália. Foi Adjunto da Assessoria de Apoio para Assuntos Jurídicos (A2), do Gabinete do Comandante do Exército. Serviu na 5ª Subchefia do Estado-Maior do Exército, que trata do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA). Possui o Grau de Mestre em Operações Militares e o Curso de Gestão e Assessoramento de Estado-Maior, pela Escola de Comando e Estado – Maior do Exército (ECEME).
É bacharel em Direito, especialista em Direito Militar, Direito em Administração Pública e Gestão em Administração Pública. No exterior, concluiu o Curso de DICA, na Suíça, e os Cursos Básico e Avançado de Direito Internacional Humanitário, onde foi instrutor ad hoc do International Institute of Humanitarian Law, desde 2013. Representou o Brasil nos Encontros de Especialistas Governamentais para Fortalecimento do Direito Internacional Humanitário, em San Jose e Genebra, promovido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, nos anos de 2012 e 2014, respectivamente. Participou da capacitação sobre Dilemas Éticos em Operações de Paz, promovido pelo Ministério da Defesa e o Exército Canadense, 2015.
Possui artigos científicos publicados no Brasil e no exterior sobre o DICA, entre eles o trabalho premiado no Concurso de Artigos Científicos para apresentação no VI Seminário do Livro Branco de Defesa Nacional, em 2011, e o intitulado "Direito Internacional dos Conflitos Armados: Preparação Ética da Força Terrestre", no periódico Doutrina Militar Terrestre em Revista, do C Dout Ex, Edição 005, de junho de 2014. Em 2015, concluiu o Curso de Tutoria em Educação à Distância, na Escola Superior de Guerra, Instituto de Altos Estudos do Ministério da Defesa, do qual é colaborador do Curso de DICA, desde 2012.
Assumiu a relatoria da Diretriz para Integração do Direito Internacional dos Conflitos Armados às Atividades do Exército Brasileiro, aprovada em 2016. Nesse mesmo ano, foi concludente do 37º Curso para Diretores e Planejadores dos Programas de Formação em Direito Internacional Humanitário, realizado no International Institute of Humanitarian Law, vindo a ser nomeado, desde 2017, Vice-Diretor dessa atividade de capacitação de experts nas leis aplicáveis aos conflitos armados.